An edition of Puritanos (2015)

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Last edited by Silvio Dutra
September 2, 2016 | History
An edition of Puritanos (2015)

Puritanos

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Os puritanos viveram em sua grande maioria nos séculos XVII e XVIII.
Eles escolheram a cruz, a porta e o caminho estreito que conduz à salvação, do que negarem ao Senhor e à Sua Palavra.
Aqueles pastores tiveram verdadeiros e grandes gigantes espirituais, homens santos e piedosos como Richard Baxter, Richard Sibbes, John Owen, Thomas Manton, Thomas Watson, Thomas Hokker, Thomas Bostons, Thomas Goodwin, dentre muitos outros cujas vidas foram inspiradoras para muitos homens de Deus do futuro como por exemplo Jonathan Edwards, George Whitefield e Spurgeon.
A partir de anos recentes, o Espírito Santo tem levado muitos crentes a terem um interesse renovado para conhecerem a vida e a obra dos puritanos.
Há editoras que estão traduzindo e publicando em várias línguas, em muitas partes do mundo, os escritos, especialmente os sermões, livros e tratados que os puritanos haviam escrito debaixo da inspiração do Espírito de Deus quanto ao modo de servi-lO, segundo a Sua Palavra.
Sem que soubesse deste movimento que o Espírito estava fazendo no mundo, o Senhor me disse há alguns anos atrás que eu fosse aos puritanos e a D. M. Lloyd Jones, para que fosse melhor instruído quanto aos fundamentos sobre os quais devemos edificar a Igreja e nossas próprias vidas.
A expressão de nosso subtítulo é uma contraparte da que se refere a um grande número de religiosos destes últimos dias, dos quais o apóstolo Paulo diz que têm apenas a forma, a aparência da piedade, mas que negam o seu poder.
Os puritanos, especialmente aqueles que viveram nos séculos XVII e XVIII, não exibiam uma aparência de serem piedosos, mas o eram de fato.
A nós, que não estamos acostumados a ver o testemunho de vidas piedosas, a saber, que sejam devotadas a Deus e ao seu serviço, de modo verdadeiramente santo e segundo uma prática real de Sua Palavra, torna-se muito difícil compreender o que seja esta vida piedosa à qual a Bíblia se refere.
Mas aqueles que tiveram a oportunidade de viver naqueles dias áureos do evangelho quando os puritanos enchiam a Terra com a sua piedade, entenderam muito bem o que esta significava.

Publish Date
Publisher
Silvio Dutra
Language
Portuguese
Pages
511

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Edition Availability
Cover of: Puritanos
Puritanos
2015, Silvio Dutra
Paperback in Portuguese

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Book Details


Table of Contents

Puritanos
Silvio Dutra
DEZ/2015
2
Quando a Piedade
Não Tinha a Forma,
mas o Poder
3
A474
Alves, Silvio Dutra
Puritanos./ Silvio Dutra Alves. – Rio de Janeiro,
2016.
691p.; 14x21cm
Tradução, adaptação e notas de Silvio Dutra
Alves
1. Compilação. 2. Sermões. 3. Tratados.
I. Título.
CDD 252
4
Sumário
1 – Introdução.........................................................
5
2 – Deus nos Cama a Tomar Posição Tal Como Haviam Feito os Puritanos...............
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3 - Deus Chama Hoje a Igreja a Ser Como Foi para os Puritanos...........................
11
4 – John Owen........................................................
18
5 – Richard Sibbes...............................................
490
6 – Thomas Manton...........................................
505
7 – Thomas Hooker.............................................
602
8 – William Bates.................................................
606
5
1 - Introdução
A expressão de nosso subtítulo é uma contraparte da que se refere a um grande número de religiosos destes últimos dias, dos quais o apóstolo Paulo diz que têm apenas a forma, a aparência da piedade, mas que negam o seu poder.
Os puritanos, especialmente aqueles que viveram nos séculos XVII e XVIII, não exibiam uma aparência de serem piedosos, mas o eram de fato.
A nós, que não estamos acostumados a ver o testemunho de vidas piedosas, a saber, que sejam devotadas a Deus e ao seu serviço, de modo verdadeiramente santo e segundo uma prática real de Sua Palavra, torna-se muito difícil compreender o que seja esta vida piedosa à qual a Bíblia se refere.
Mas aqueles que tiveram a oportunidade de viver naqueles dias áureos do evangelho quando os puritanos enchiam a Terra com a sua piedade, entenderam muito bem o que esta significava.
Ora, eles estavam completamente empenhados em viver o Evangelho verdadeiro em toda a sua plenitude até o ponto extremo de renunciar a todo conforto e até mesmo à própria vida, e conforme isto se comprovou na prática, quando centenas de pastores foram expulsos de seus púlpitos e perseguidos por causa deste seu apego à Palavra de Deus.
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A vida cristã era algo tão sério para eles que exploravam exaustivamente todas as doutrinas que podiam ser encontradas na Bíblia e as apresentavam em seus sermões e ensinos com partes dedicadas à aplicação, ou seja, ao que deveria ser feito por todos para que pudessem ser de fato aplicadas às suas vidas.
Então, temos esta miríade de estrelas de mesma grandeza que brilhavam no universo da piedade divina trazendo luz não apenas aos seus contemporâneos, como a nós, a quem o seu testemunho tem chegado, e que por dever de consciência, devemos compartilhar com todos aqueles que estejam interessados em conhecer e praticar a verdade.
Assim, estamos apresentando neste livro partes de obras de alguns pastores puritanos, que traduzimos do texto original em inglês.
Dentre estes se destacam John Owen, conhecido até hoje como o imbatível príncipe dos teólogos; Thomas Manton; Thomas Watson (de quem já publicamos um livro sob o título “As Bem-Aventuranças”); Richard Sibbes; Richard Baxter - o príncipe dos pastores, entre outros.
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2 - Deus nos Chama a Tomar Posição Tal Como Haviam Feito os Puritanos
A partir de anos recentes, o Espírito Santo tem levado muitos crentes a terem um interesse renovado para conhecerem a vida e a obra dos puritanos.
Há editoras que estão traduzindo e publicando em várias línguas, em muitas partes do mundo, os escritos, especialmente os sermões, livros e tratados que os puritanos haviam escrito debaixo da inspiração do Espírito de Deus quanto ao modo de servi-lO, segundo a Sua Palavra.
Sem que soubesse deste movimento que o Espírito estava fazendo no mundo, o Senhor me disse há alguns anos atrás que eu fosse aos puritanos e a D. M. Lloyd Jones, para que fosse melhor instruído quanto aos fundamentos sobre os quais devemos edificar a Igreja e nossas próprias vidas.
Os puritanos viveram em sua grande maioria nos séculos XVII e XVIII e D. M. Lloyd Jones no século XX.
Em 1963 Lloyd Jones havia profetizado acerca da grande igreja mundial ecumênica que será levantada no mundo e que dará apoio para que o Anticristo acesse ao poder. E ele disse que todos aqueles que se mantivessem firmes no Senhor, não negando o Seu nome e Palavra, seriam chamados de cismáticos por aqueles que compuserem a referida Igreja.
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Alguém perguntaria o que os puritanos teriam a ver com isto?
O grande fato é que eles viveram em condições muito parecidas com as quais já estamos vivendo. Eles tiveram que se posicionar em aderirem à grande Igreja Estatal Inglesa anglicana, ou conviverem com práticas antibíblicas das demais denominações, ou então se tornarem independentes e não conformistas àquelas práticas para poderem permanecer apegados ao puro evangelho de Cristo.
Assim eles tiveram, não somente que refletir sobre a natureza da verdadeira Igreja de Cristo, como também assumirem uma posição firme que se traduzisse em atos práticos na vida devocional deles.
Examinando somente as Escrituras e colocando-se diante de Deus com o firme propósito de serem inteiramente fiéis à Sua Palavra eles concluíram que não poderiam continuar servindo ao Senhor fielmente enquanto estivessem se sujeitando às regras ditadas pelo Estado ou pelas organizações denominacionais, que contrariavam as Escrituras.
Assim, a grande maioria dos puritanos veio a se tornar independente.
John Owen, conhecido como o príncipe dos puritanos, por exemplo, era presbiteriano, mas veio a se tornar independente.
Deus usou muito a vida de Owen para defender os princípios do Novo Testamento, de uma
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igreja soberana e independente, somente debaixo das leis de Cristo.
Por isso o Senhor está levando muitos, cerca de 300 anos depois de Owen, como havia levado o próprio Lloyd Jones em meados do século passado, a retornarem aos puritanos, para aprenderem com eles a lutar para edificarem somente sobre o fundamento firme que já foi lançado pelos apóstolos e pelos profetas, de uma Igreja fiel e independente, nestes últimos dias, porque será esta Igreja que Lhe permanecerá fiel à medida que muitos vão se desviando do verdadeiro evangelho para formarem a grande igreja apóstata mundial que apoiará o Anticristo.
Para se manterem fiéis ao evangelho verdadeiro cerca de 2.000 pastores puritanos foram expulsos de suas igrejas, em 1662, pela Lei de Uniformidade que foi promulgada pelo Estado, e que exigia que eles se conformassem às regras do Estado para a igreja ou então perderiam seus salários e púlpitos. Eles fizeram uma opção pelo Senhor e pagaram o preço, e o Senhor exige o mesmo de seus filhos fiéis nestes dias difíceis que estamos vivendo, quando a grande maioria dos púlpitos das igrejas têm se desviado da verdadeira adoração que é devida ao Senhor, e quando os crentes já não buscam mais viver em santidade de vida, por estarem cheios do Espírito em obediência à Palavra de Cristo, sobretudo a que lhes ordena negarem-se a si mesmos, carregarem a cruz e segui-lO.
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Os puritanos escolheram a cruz, a porta e o caminho estreito que conduz à salvação, do que negarem ao Senhor e à Sua Palavra.
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3 - Deus Chama Hoje a Igreja a Ser Como Foi para os Puritanos
Vivemos dias muito parecidos com aqueles em que viveram os puritanos após a Reforma Protestante levada a efeito por Lutero, Calvino e muitos outros no século XVI.
Com os passar dos anos a Reforma não somente perdeu vigor pelo retorno de muitos na Igreja à prática do mundanismo, como também a própria Reforma não havia avançado muito em purificar a Igreja de todas as práticas cerimoniais da Igreja Romana. Os puritanos desejavam e lutaram por uma igreja pura, conforme é apresentada na Bíblia e especialmente no Novo Testamento. Antes e além de quaisquer tradições ou mandamentos de homens eles pregavam e vivam os mandamentos de Cristo, exatamente como estão registrados na Bíblia.
Não admira que tenham se levantado contra eles muitos opositores da parte do Inimigo, que lhes perseguiram implacavelmente, a ponto de 2.000 pastores puritanos terem sido expulsos de suas igrejas pelo chamado Ato de Conformidade promulgado pelo parlamento inglês em 1662.
A mão do Senhor estava em tudo aquilo para manter a pureza do evangelho e da Sua igreja, e em consequência daquele ato muitos saíram como missionários pelo mundo, e particularmente para os Estados Unidos, que na época ainda era uma colônia da Inglaterra.
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Aqueles pastores tiveram verdadeiros e grandes gigantes espirituais, homens santos e piedosos como Richard Baxter, Richard Sibbes, John Owen, Thomas Manton, Thomas Watson, Thomas Hokker, Thomas Bostons, Thomas Goodwin, dentre muitos outros cujas vidas foram inspiradoras para muitos homens de Deus do futuro como por exemplo Jonathan Edwards, George Whitefield e Spurgeon.
Eles tiveram a coragem de manter uma vida santa em defesa do puro evangelho de Cristo contra toda oposição que sofreram da chamada Igreja Institucional. Se uns poucos deles não se tornaram independentes, não por não se associarem fraternalmente a outros pastores, mas por não se sujeitarem a nenhuma organização denominacional, eles viveram, no entanto em suas denominações não segundo as leis dos homens que contrariavam os princípios da Bíblia, mas procurando em tudo serem achados fiéis em não negarem a Palavra de Cristo no menor dos Seus mandamentos.
O liberalismo que invadiu a Igreja em meados do século XIX, por influência do humanismo, e que prevaleceu dali em diante por todo o século XX, fazendo com que a maioria dos protestantes professos assumissem uma mera religiosidade associada a um viver segundo o mundo, foi balançada no início do século com os avivamentos de Gales e da Rua Azuza e com outros avivamentos do Espírito que chamou a Igreja à posição da qual nunca deveria ter saído, mas isto não atingiu a maioria das denominações ditas tradicionais, senão que
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foram formadas novas associações de crentes, em igrejas independentes, e que estavam dispostos a viverem uma vida cheia do Espírito e de acordo com as leis de Cristo e não propriamente com as leis e tradições dos homens.
As chamadas Igrejas que não davam boa acolhida ao Espírito não eram acolhidas por eles, porque afinal a dispensação em que vivemos é dispensação do Espírito Santo, que tem sido derramado em todas as nações desde o dia de Pentecostes em Jerusalém.
Hoje, além de despertar nos crentes piedosos o mesmo desejo por uma vida que seja cheia do Espírito Santo, Deus tem também despertado seus corações para serem como foram os puritanos, isto é, pessoas dispostas a renunciarem a tudo para fazerem valer e manter a verdade das Escrituras.
Para expor um pouco mais este espírito puritano, destacamos a seguir algumas citações de D. M. Lloyd Jones acerca deles:
“É justamente aqui que nos diferenciamos da maioria das pessoas da Igreja Cristã na época atual. Seguramente, então, isso é uma coisa que devemos asseverar, proclamar e defender a todo custo – este evangelho puro, esta palavra do evangelho. E não toleraremos nenhuma concessão com respeito a isto.”.
“Eles não procuravam resolver os seus problemas formando movimentos, cada um deles estava interessado na Igreja.”.
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“É seguramente neste ponto que precisamos aprender esta grande lição dos puritanos – a absoluta importância da pureza da Igreja, especialmente da questão de doutrina. Implícita nisso, naturalmente, está a necessidade de disciplina. Será certo tolerar na mesma Igreja pessoas cujas ideias sobre pontos essenciais da fé são diametralmente opostos? Será certo pertencermos juntamente ao mesmo grupo, que se chama Igreja, com homens que negam quase tudo pelo que lutamos? Seria certo, à luz do ensino do Novo Testamento, que consideremos tais pessoas como “irmãos”, simplesmente porque foram batizados na infância? Seria isso compatível com o ensino do Novo Testamento com relação à Igreja, à sua pureza, à sua disciplina e à sua vida? Tais questões têm que ser matérias de consideração prioritária e primordial para nós, se realmente levamos a sério os puritanos, se damos séria atenção ao seu ensino sobre a consciência, sobre a necessidade de sermos escrupulosos e de levarmos a efeito o que acreditamos ser a verdade, sejam quais forem as consequências.”.
“A consciência puritana não pode ser subornada, não pode ser embainhada pela afabilidade, pela gentileza e pela bajulação dos homens. Ela na diz: “você sabe, alguns destes outros homens são muito mais finos que a nossa gente.”. Ela percebe tudo isso, e enxerga além. Foram feitas tentativas dessa maneira para dividir o grupo puritano, oferecendo primazia a alguns dos seus líderes; mas a oferta foi
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rejeitada e recusada rígida, severa e conscienciosamente. Estes homens não podiam ceder nestas questões; as suas consciências não podiam ser compradas. Preferiam ir para o deserto e submeter-se ao sofrimento que a tantos acompanhou, e de terrível maneira. Isso, digo eu, é a consciência puritana em ação, o escrúpulo, o cuidado, e particularmente o cuidado não somente de ter o conceito certo, e sim, de agir baseado nele, fossem quais fossem as consequências.”.
Veja o que LLoyd Jones escreveu em 1963:
“Cisma (causar divisão) é um termo que é usado invariavelmente por qualquer igreja ou corporação da qual saiu um grupo para formar uma nova igreja.
Chamo a atenção para isso porque já está indo de boca em boca, e podemos estar certos de que, se o movimento ecumênico chegar a desenvolver a “grande igreja mundial” da qual tanto gostam de falar bem, então será este o termo (cismático) que será lançado contra todo aquele que se recusar a ser parte integrante daquela organização gigantesca. Sinto, pois, que é nosso dever preparar as nossas mentes de antemão. Seja qual for a verdade agora, certamente acontecerá então que seremos acusados de cisma, e é certo que devemos ter clara percepção quanto a isso, e que devemos instruir o povo a quem temos o privilégio de servir, sobre esta importantíssima questão. Cisma é um grande pecado, é coisa muito grave.
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Ninguém deveria fazer-se culpado de cisma e, portanto, devemos compreender com clareza o que é exatamente cisma.”
John Owen escreveu um grande tratado sobre cisma para mostrar que não é por sermos uma igreja independente que somos cismáticos, mas por causarmos divisões em igrejas que seguem a verdade do evangelho, de maneira que aqueles que andam desviados da verdade do evangelho, sendo líderes de igrejas, denominações, corporações, não podem acusar a ninguém que saia do meio deles de cismáticos, porque eles próprios que se afastaram de Cristo, por não viverem segundo o evangelho; e a própria Bíblia ordena que todo crente fiel se aparte daquele que andar de modo desordenado contra a doutrina de Cristo. Mais do que defender as igrejas independentes, Owen estava interessado na verdade relativa à natureza da Igreja. Esse era o seu grande interesse, e deve ser também o nosso por causa da necessidade dos dias em que temos vivido, que são muito parecidos aos que Owen havia vivido.
Como as igrejas independentes eram acusadas pelas denominações de serem cismáticas, Owen escreveu para defender os independentes, porque ele mesmo havia sido dantes presbiteriano. Eis alguns de seus argumentos narrados por LLoyd Jones:
“Owen quando mais jovem, publicara uma vez um livro sobre toda a questão da natureza da Igreja, e nessa obra fora favorável ao ponto e vista presbiteriano. Por isso, quando ele
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publicou este tratado sobre cisma, um certo senhor Cawdrey, um presbiteriano, atacou-o violentamente, dizendo que ele estava contradizendo inteiramente o que dissera naquele livro anterior. Owen sentiu profundamente esta acusação.
Todavia não contesta com espírito amargo, mas, ao fazer sua réplica a Cawdrey, dá-se ao trabalho de dizer-nos quando afinal se tornou independente. Ao examinarmos isto, veremos algo da grandeza deste homem. O problema sobre a questão geral o cisma é, como ele assinala repetidamente, que as pessoas defendem a posição em que se acham. Cerram a mente, não se dispõem a ouvir, a receber instrução, a mudar. Owen foi suficientemente grande para mudar de opinião e para mudar de uma posição para outra.”.
“Este modo de examinar imparcialmente todas as coisas pela Palavra, comparando causas com causas e coisas com coisas, pondo de lado toda consideração preconceituosa para com pessoas ou tradições presentes, é um procedimento que eu admoestaria todos a evitarem caso não queiram tornar-se independentes”.
“É pelas Escrituras como nossa regra, entendemos as suas palavras expressas e tudo que delas se pode deduzir, por consequência justa e legítima”.
O Senhor nos tem dado portanto, especialmente pelos puritanos uma firme e excelente defesa do significado verdadeiro das Escrituras.
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4 - John Owen
Nem Toda Separação de Igrejas é Cisma (divisão)
Tradução e adaptação de Citações do Tratado de John Owen sobre cisma feitas pelo Pr Silvio Dutra, com comentários e notas inseridos pelo tradutor.
(Não são poucos os casos presentes em que vários cristãos genuínos, nascidos de novo do Espírito, se encontrem em perplexidade e dor quanto à dificuldade que têm experimentado quanto a encontrarem uma igreja que se empenhe em preservar o culto de adoração a Deus conforme ele se encontra instituído nas Escrituras.
À medida que avança no tempo a apostasia dos princípios bíblicos a tendência desse quadro é a de ser cada vez mais agravado.
Seria então importante, pelo menos, para alívio de nossas consciências, conhecer as condições em que não somos considerados culpados de divisão do corpo de Cristo, segundo Deus e a Bíblia, quando deixamos uma Igreja que não quer e que não pode ser trazida àquela forma que foi instituída por Jesus e seus apóstolos.
Assim, tomamos algumas citações do tratado que John Owen escreveu sobre o assunto, no intuito de acharmos respostas adequadas para esta importante questão.
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OBS.: 1 - A palavra cisma, usada no texto está restringida ao significado de divisão, separação, pela ação deliberada de cristãos que agem contra a unidade de uma igreja verdadeira e fiel. É uma transliteração da palavra usada no original grego, schisma, como em I Cor 11.18: “Porque, antes de tudo, estou informado haver divisões (schisma) entre vós quando vos reunis na igreja; e eu, em parte, o creio.”, e em I Cor 12.25: “para que não haja divisão (schisma) no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros.”
2 - Em razão de serem abundantes as citações que faremos dos textos de Owen, estamos dispensando o uso de aspas para marcá-las, e todas as notas do tradutor se encontram entre parêntesis. – nota do tradutor.)
O término das diferenças entre cristãos é como abrir os selos citados no livro de Apocalipse; não há ninguém capaz ou digno de fazê-lo no céu ou na terra, mas somente o Cordeiro; quando usará a grandeza do seu poder para isto, e então será realizado, e não antes.
Nesse meio tempo, buscar uma reconciliação entre todos os verdadeiros cristãos é nosso dever... Quando os homens estiverem trabalhado tanto no melhoramento do princípio da tolerância, tanto quanto têm feito para subjugar outros homens de opiniões diferentes das suas, a religião de Cristo terá um outro aspecto no mundo.
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(Pode parecer um paradoxo afirmar que não se verá neste mundo o término das diferenças entre os cristãos, mas que é nosso dever buscar a união entre todos os cristãos. Todavia não se trata de um paradoxo, porque aqui se expõe o mesmo princípio do dever da perfeição que nos é imposto por Cristo, e que nunca alcançaremos de modo absoluto neste mundo. O Espírito Santo que habita nos cristãos é quem os leva a buscarem esta perfeição em santificação, e é também quem faz com que amem a todos os demais que também nasceram de novo pelo mesmo Espírito.
Portanto, nosso Senhor orou pela unidade de todos os cristãos como vemos no 17º capítulo de João, e o apóstolo Paulo enfoca repetidamente que somos muitos membros de um só corpo, e que é o amor de Deus em nossos corações o vínculo, o cimento, que nos mantém unidos em espírito.
Nosso Senhor afirma ser o Pastor de um só rebanho, e que ele deve ser e será um único rebanho, e daí decorre o nosso dever de estarmos abertos para a unidade com todos aqueles que se encontram debaixo do senhorio de Cristo, não apenas em palavra, mas de fato e em verdade, por não viver na prática do pecado e por buscar preservar a comunhão na fé, no Espírito e na doutrina.
Unidade pressupõe concordância, de modo que onde não houver acordo na doutrina, ou falta de submissão à influência, direção e instrução do Espírito Santo, e a fé que é sobretudo confiança absoluta em Cristo e nas suas promessas e
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advertências, como poderá ser promovida a unidade pela qual ele orou? – nota do tradutor).
A natureza do cisma deve ser determinada apenas a partir das Escrituras.
O cisma é um transtorno na adoração de Deus instituída nas Escrituras. A sua descoberta e descrição é feita a partir das Escrituras, e é somente nelas que o cisma deve ser estimado, porque há outras coisas que são da mesma natureza e assim chamadas, mas que não são cisma se não têm nas Escrituras nem o nome e nem a sua natureza atribuídos por elas.
(Nota: nenhuma instituição religiosa da cristandade pode atribuir a si a primazia de unidade pelo critério da tradição ou antiguidade da sua organização, e nem considerar todas as demais instituições ou congregações cristãs que não estejam a elas associadas, como sendo cismáticas. Divisões (cisma) reais contra a unidade do corpo de Cristo estão exemplificadas na Bíblia, no comportamento de alguns membros da Igreja de Corinto, e ali se dá testemunho sobre qual era o caráter da referida divisão – nota do tradutor).
As diferentes opiniões sobre os assuntos da Igreja, levaram os cristãos coríntios à confusão das disputas e formação de partidos, e Paulo lhes disse que não convinha que fosse assim, a saber, que houvesse divisões entre eles, que consistiam em tais diferenças, “mas que estivessem unidos na mesma mente e que
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tivessem o mesmo parecer”. Eles não deveriam apenas estar unidos na mesma ordem e companheirismo na mesma igreja, mas também deveriam ter unidade de mente e de julgamento; porque se não procedessem desse modo, embora continuassem juntos em sua igreja, ainda haveria cismas entre eles.
Este era o estado daquela igreja, este era o quadro e procedimento de seus membros, esta era a falta e o mal a respeito dos quais o apóstolo os acusou de cisma, e da culpa em razão da mesma.
Os motivos, pelos quais ele os reprovou são fundamentados, no interesse comum em Cristo, I Cor 1.13; na nulidade dos instrumentos (pessoas) usados por Deus na propagação do evangelho que ele pregou, I Cor 1.14; 3.4,5; na ordem na Igreja instituída por Deus, I Cor 12.13.
Assim sendo, como eu disse, a base principal de tudo que é ensinado na Escritura sobre cisma, temos aqui, ou quase tudo para aprender o que ela é, e em que ele consiste. Quanto às definições arbitrárias dos homens, com suas invenções e inferências sobre isto, não estamos preocupados.
Para mim não há outra reforma de qualquer igreja, nem qualquer coisa numa igreja, que não seja restituí-la à sua primitiva instituição e à ordem a ela determinada por Jesus Cristo. Se alguém pleitear qualquer outra reforma das Igrejas, deverá ser censurado. E quando qualquer sociedade ou agremiação de homens não for capaz de fazer tal restituição e
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renovação, suponho que não provocarei nenhuma pessoa sábia e sóbria, se declarar que não posso considerar essa sociedade como uma igreja de Cristo. Uma igreja que não consegue reformar-se daquela maneira, não é uma igreja de Cristo, e por isso aconselho aqueles que nela estão e que têm direito aos privilégios obtidos por Cristo para eles, quanto às ministrações do evangelho, a tomarem alguma outra medida pacífica para se tornarem participantes desses privilégios.
Alguns estão dispostos a pensar que todos os que não se juntam a eles são cismáticos, e que o são porque não os acompanham; e outra razão não têm, sendo incapazes de oferecer algum sólido fundamento daquilo que eles professam. Não é fácil expressar o que a causa da unidade do povo de Deus sofreu às mãos destes tipos de homens.
Enquanto eu tiver uma consoladora convicção firmada numa base infalível, de que estou unido à cabeça e de que, pela fé, sou um membro do corpo místico de Cristo, enquanto eu fizer profissão de todas as necessárias verdades salvadoras do evangelho; enquanto eu não perturbar a paz da igreja particular da qual, com meu consentimento pessoal, sou membro, nem levantar diferenças sem causa, nem nelas permanecer, com aqueles ou com alguns daqueles com quem ando na comunhão e ordem do evangelho, enquanto eu me esforçar para exercer a fé para com o Senhor Jesus Cristo e o amor para com todos os santos – eu manterei a unidade que é da determinação de Cristo. E,
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com base em princípios totalmente alheios ao evangelho, digam os homens o que quiserem ou puderem em contrário, não sou cismático.
Eu trato, como disse, com os que são reformados; e agora suponho que a igreja, da qual se supõe que um homem é membro, não queira ser reformada – neste caso pergunto se se trata de cisma certo número de homens reformar-se, voltando à prática do serviço divino na forma como fora instituída, embora seja uma parte mínima dos pertencentes à jurisdição paroquial, ou se juntarem alguns deles a outros com esse fim e propósito, deixando de viver sob aquela jurisdição? Direi ousadamente que esse cisma é ordenado pelo Espírito Santo – I Tim 6.5; II Tim 3.5; Os 4.15 etc. Terá sido lançado por Cristo sobre mim este jugo, que, para ir ao lado da multidão entre a qual eu vivo, que odeia ser reformada, devo abandonar o meu dever e desprezar os privilégios que Ele adquiriu para mim com o Seu precioso sangue? Será esta uma unidade da instituição de Cristo, que eu deva associar-me para sempre com homens ímpios e profanos no serviço de Deus, para o indescritível detrimento e desvantagem da minha alma? Suponho que não haja nada que seja mais irrazoável do que imaginar de antemão tal coisa.
(Owen afirma que o caráter da unidade da Igreja é espiritual e daí a ordem apostólica para se manter a unidade da fé pelo vínculo da paz. O conhecimento disto é de suma importância para que saibamos distinguir desvio da verdade de
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prática diferenciada de ordem de culto, normas ou disciplina nas igrejas que não devem ser motivo para que alguém se separe delas. Mas, como são extrabíblicas ninguém pode afirmar também que a unidade da igreja deve consistir na prática destas coisas referidas, como é comum ocorrer. Por exemplo, nenhum pastor pode pretextar que haja falta de unidade na igreja que dirige porque os cristãos não comparecem às festividades que é hábito da congregação comemorar, ou que seja um ato autoritativo da parte dele. E isto se aplica às formas de adoração pública e a todos os demais serviços prescritos, inventados ou ordenados pelo homem e não constantes das Escrituras. – nota do tradutor)
Negamos que os apóstolos tenham feito ou dado quaisquer regras para as igrejas dos seus dias, ou para uso das igrejas das eras futuras, a fim de indicarem e determinarem modos externos de culto, com a observância das cerimônias, das festas e jejuns estabelecidos, além do que é de divina instituição, liturgias ou formas de oração, ou disciplina a serem exercidas nos tribunais subservientes a um governo eclesiástico nacional. Então, de que utilidade elas são ou podem ser, que benefício ou vantagem pode advir à Igreja por meio delas, qual a autoridade dos magistrados superiores com respeito a elas, não podemos pesquisar ou determinar agora. Só dizemos que nenhuma regra para estes fins jamais foi prescrita pelos apóstolos, pois:
1. Não há a mínima insinuação de que alguma regra desse tipo foi dada por eles nas Escrituras.
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2. As primeiras igrejas depois do tempo deles, nada sabiam de qualquer regra dessas dadas por eles; e, portanto, depois que elas começaram a afastar-se da simplicidade em coisas como o culto, a ordem e as normas ou a disciplina, elas se entregaram a uma grande variedade de observâncias externas, ordens e cerimônias, quase todas as igrejas diferindo numa ou noutra coisa umas das outras, nalgumas dessas observâncias, não obstante todas “mantendo a unidade da fé pelo vínculo da paz”. Elas não teriam feito isso, se os apóstolos tivessem prescrito certa regra à qual todas deveriam adaptar-se, especialmente considerando quão escrupulosamente elas aderiam a tudo quanto era relatado como tendo sido feito ou dito por qualquer dos apóstolos, fosse o relato falso ou verdadeiro.
Primeiro, a unidade que nos é recomendada no evangelho é espiritual.
Segundo, para este fundamento da unidade do evangelho entre os cristãos, pelo seu melhoramento e para este, requer–se uma unidade de fé.
Terceiro, há uma unidade de amor.
Quarto, Cristo Senhor, por Sua autoridade como Rei, instituiu ordens para o governo, e ordenanças para o culto (Mat 28.19,20. Ef 4.8-13) para serem observadas em todas as Suas Igrejas.
Essa é a natureza da união. Em seguida surge a questão: como se deve preservar essa união? Aqui ele tem algumas coisas excelentes para dizer.
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Ora, para que esta união seja preservada, requer-se que todas aquelas grandes e necessárias verdades do evangelho, sem cujo conhecimento ninguém pode ser salvo por Jesus Cristo, sejam cridas e igualmente sejam externas e visivelmente professadas, naquela variedade de modos pelos quais eles são ou podem ser chamados para isso” - Aqui Owen está contemplando principalmente as doutrinas da graça (eleição, justificação pela graça mediante a fé, regeneração etc) muito mais do que os mandamentos da lei de Moisés, porque uma Igreja deve primar pela graça e verdade reveladas em Cristo mais do que pela Lei que foi dada através de Moisés.
Não haverá união, se não houver acordo sobre as verdades do evangelho. É uma união espiritual, porém é também uma união de fé. Se houver desacordo acerca da fé, não haverá união entre o evangélico e o homem que nega os pontos essenciais da fé evangélica. É impossível.
Por exemplo, um pastor pelagiano que afirme a salvação pelas obras, como pode ter a direção sobre um rebanho que afirme a verdade de que a salvação é pela graça somente mediante a fé, sem as obras? Como pode haver reconciliação neste caso? A separação já está determinada pela própria negação da verdade bíblica.
Não somente é preciso que não haja desacordo aberto, explícito; também é preciso que não haja nenhum desacordo implícito.
Que nada seja opinião, erro ou falsa doutrina, que perverta ou desfaça qualquer das verdades necessárias e salvadoras professadas nos
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termos acima referidos, seja acrescentado a essa profissão, ou nela incluído, ou deliberadamente professado também.
Não há, em relação à igreja de Corinto, nenhuma menção de qualquer homem em particular, ou qualquer número de homens que se separaram das reuniões de adoração de suas respectivas igrejas, nem discorre o apóstolo sobre qualquer coisa a seu cargo, mas claramente declara que todos os coríntios continuaram na participação da adoração e obrando juntos os serviços da Igreja, sem causar diferenças entre si, como vou mostrar depois. Todas as divisões de uma igreja em relação a outra, ou de outras, em relação a uma qualquer, ou pessoas de qualquer igreja ou igrejas, são coisas de outra natureza, podem ser boas ou más dependendo das circunstâncias, e nem tudo o que há no relato das Escrituras sobre isto não pode ser chamado pelo nome de cisma, e por isso elas não se referem a estas divisões pelo citado nome, como por exemplo as muitas seitas do antigo judaísmo, que eram apóstatas, mas não cismáticos, e nisto podem ser incluídos os próprios samaritanos que adoravam o que eles não conheciam, João 4.22.
(De igrejas em relação a igrejas podemos citar o exemplo da igreja da circuncisão e a da incircuncisão, entregues respectivamente ao cuidado dos apóstolos em Jerusalém, e a Paulo para a igreja dos gentios, e no entanto não se fala e não deve ser falado que a igreja dos gentios era
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cismática em relação à que havia em Jerusalém. – nota do tradutor).
Para que haja o pecado de cisma, quanto a todos os que estiverem debaixo desta culpa, é necessário:
1. Que sejam membros, ou pertençam a alguma igreja, que é assim instituída e nomeada por Jesus Cristo.
2. Que levantem, entretenham e persistam em diferenças sem causa com outros daquela igreja, para interromper o exercício do amor que deve existir entre eles, em todos os seus frutos, e a perturbação do devido exercício das funções necessárias da igreja, na adoração de Deus.
3. Que essas diferenças sejam ocasionadas por coisas que sejam contrárias à adoração de Deus.
O cisma não é contado como algo contra as pessoas dos demais cristãos ou mesmo dos oficiais da Igreja, mas sempre é um desprezo da autoridade de Jesus Cristo, o grande soberano Senhor e cabeça da Igreja. Quantas vezes ele nos mandou suportarmos uns aos outros, e para nos perdoarmos mutuamente, para que tendo paz entre nós, possamos ser conhecidos como seus discípulos.
(Não podem ser considerados como cismas as eventuais discórdias entre cristãos, porque estas podem e devem ser tratadas pelo exercício da longanimidade e do perdão, conforme somos ordenados pelo Senhor em sua Palavra – nota do tradutor).
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A sabedoria pela qual nosso Senhor tem ordenado todas as coisas em sua igreja, com o propósito definido, de prevenir cisma - divisão, não deve ser desprezada. Cristo, que é a sabedoria do Pai, 1 Coríntios 1.24, a pedra sobre a qual estão sete olhos, Zac 3.9, sobre cujos ombros está posto o governo, Isa.9.6,7, tem em sua infinita sabedoria assim ordenado que todas as funções, ordens, dons, e administrações de, e em sua igreja, de tal maneira que o mal não possa ter qualquer lugar. Manifestar isto, é o desígnio do Espírito Santo, Rom 12.3-9; 1 Coríntios 12; Ef 4.8-14. A consideração em particular desta sabedoria de Cristo, adequando os oficiais de sua igreja, em relação aos lugares que ocupam, da autoridade com que são investidos por ele, a forma em que eles são inseridos em sua função, distribuindo os dons de seu Espírito em variedade maravilhosa, em vários tipos de utilidade, e em tal distância e dessemelhança dos membros particulares, conforme a devida e correspondente proporção dando formosura e beleza ao todo, dispondo a ordem de sua adoração, e as ordenanças diversas em especial, para serem expressivas do maior amor e união, direcionando todos eles contra essas divisões sem causa, e para que possam ser usados com este propósito.
A graça e a bondade de Cristo, pelas quais ele tem prometido nos dar um só coração e um só caminho, para nos dar a paz, que o mundo não pode dar, com inúmeras outras promessas de semelhante importância, são desconsiderados portanto, quando há cisma.
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Até que ponto o exercício do amor é obstruído por isso, que tem sido declarado. A consideração da natureza, excelência, propriedade, efeitos e a utilidade desta graça do amor em todos os santos em todas as suas formas, a sua designação especial por nosso Senhor e Mestre, para ser o elo de união e perfeição, na forma e ordem instituídas para a celebração graciosa das ordenanças do evangelho, irá adicionar peso a esta agravação, a saber, ao cisma.
O seu constante crescimento (do cisma) para um mal ainda maior, e, em alguns a apostasia de si mesmos, implica seu término normal em contendas, debates, más suspeitas, iras, confusão, distúrbios públicos e privados, também são estabelecidos à sua porta.
(Temos visto até aqui que o cisma é algo que é inerente ao comportamento humano, e como não há em qualquer igreja, o poder implícito para ter domínio sobre a fé dos fiéis, e moldá-los àquela perfeição espiritual que agrada a Deus, e como não há também a necessidade de que as pessoas devam renunciar aos seus respectivos interesses civis para serem membros de uma igreja, então, não se pode determinar pela análise do conjunto de membros se uma igreja é cismática ou não, até mesmo porque sempre haverá o joio em qualquer congregação local. Se aqueles que estão encarregados em dirigir os assuntos da igreja, e os demais membros que se mantêm fiéis à Palavra, mantêm o padrão bíblico das sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e dos seus apóstolos, inclusive pelo
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testemunho de prática de suas próprias vidas, suas igrejas não podem ser chamadas de cismáticas, e muito menos de apóstatas, caso haja nela membros ou pessoas na citada condição, as quais a propósito devem ser submetidas à disciplina prescrita por Cristo, tão logo chegue ao conhecimento público o procedimento de tais pessoas insubordinadas à regra de Cristo.
Os protestantes são acusados pela igreja Romana de cismáticos; os puritanos independentes e não conformistas eram acusados pela Igreja Nacional da Inglaterra – Anglicana, também de cismáticos, e o argumento sempre foi e será este de não estarem simplesmente compondo os seus quadros. E o mesmo critério é usado por denominações cristãs quando há a migração de crentes ou mesmo congregações para outras denominações ou para a forma independente de reunião, conforme era a da maioria dos puritanos dos séculos XVI a XVIII – nota do tradutor).
“Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima.” (Hebreus 10.25)
A separação e o abandono da comunhão daquela igreja, ou daquelas igrejas, pela parte de homens que tinham se reunido para a adoração de Deus, é a culpa aqui colocada sobre alguns pelo apóstolo. Aos que assim se apartaram é
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declarado no verso 26: “Porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados;”.
Tendo retirado os seus pescoços de debaixo do jugo de Cristo, verso 28, e "recuando para a perdição", verso 39, isto é, eles partiram para o judaísmo. Eu muito me pergunto, se alguém pensaria em chamar essas pessoas de cismáticas, ou se nós assim as julgamos, ou assim falamos em relação a qualquer pessoa, que nestes dias, tenha abandonado nossas igrejas, e que voltaram para o mundo - tais partidas tornam os homens apóstatas e não cismáticos. Deste tipo são mencionados muitos nas Escrituras. Também não são nem um pouco contados como cismáticos, não porque o crime menor é engolido e afogado no maior, mas porque o seu pecado é totalmente de outra natureza.
De alguns, que abandonaram a comunhão da igreja, pelo menos por um tempo, por seu caminhar desordenado e irregular, temos também mencionado. O apóstolo chama, de “rebelde”, ou pessoas “desordenadas”, ou seja, que não seguem em obediência à ordem prescrita por Cristo para suas igrejas, como vemos em 2 Tes 3.6:
“Nós vos ordenamos, irmãos, em nome do Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo irmão que ande desordenadamente e não segundo a tradição que de nós recebestes;”.
Dessas pessoas desordenadas temos muitas em nossos dias, em que vivemos, cujo
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comportamento não classificamos por cisma, mas vaidade, insensatez, desobediência aos preceitos de Cristo em geral.
Os homens também se separam das igrejas de Cristo por conta de sensualidade, quando livremente cedem aos seus desejos e vivem em todos os tipos de prazer carnal por todos os seus dias; Judas 19. “Estes são os que produzem divisões, homens sensuais, que não têm o Espírito." Quem são estes? Aqueles que transformam a graça de Deus em lascívia e que negam o Senhor Deus e nosso Salvador Jesus Cristo.", verso 4. "Que contaminam a sua carne, à maneira de Sodoma e Gomorra - versos 7 e 8. "Estes, porém, quanto a tudo o que não entendem, difamam; e, quanto a tudo o que compreendem por instinto natural, como brutos sem razão, até nessas coisas se corrompem.”, verso 10; estes são os que causam divisões, diz o apóstolo.
Agora, que os homens que praticam estas abominações e outras citadas por Judas em sua epístola, são cismáticos, não é difícil de se julgar.
Mas nenhum desses casos abrangem o caso indagado, de modo que eu digo, que quando uma pessoa se retira da comunhão externa e visível de qualquer igreja ou igrejas, seja ela verdadeira ou não, nas quais o culto, doutrina e disciplina, instituídos por Cristo estão corrompidos entre eles, corrupção com a qual tal pessoa não se atreve a se contaminar, ele não está em cisma, e nem a Escritura assim o define.
O que pode regularmente, por outro lado, ser deduzido das ordens dadas para nos afastarmos
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daqueles que têm apenas uma forma de piedade, 2 Tim 3.5; também daqueles que andam desordenadamente, 2 Tes 3.6; e ainda de não termos comunhão com homens de princípios corruptos, e vidas perversas, Apo 2.14; a sairmos de uma igreja apóstata, Apo 18.4, para que possamos adorar a Cristo de acordo com a sua mente e designação, que é a força desses mandamentos citados.
Só há cisma, quando a separação quebra o vínculo de união instituído por Cristo.
Agora esta união sendo instituída na igreja, de acordo com as várias acepções desta palavra, é distinta. Portanto, para uma descoberta da natureza disso que é particularmente falado, e também o seu contrário,
devo mostrar,
1. As várias considerações da igreja, onde, e com o que, a união deve ser preservada.
2. O que a união é, e no que consiste de acordo com a mente de Cristo que devemos guardar e observar junto com a igreja.
3. E como esta união é quebrada, e qual é o pecado através do qual isto é feito.
A Igreja de Cristo vive neste mundo de três maneiras.
1. Pelo corpo místico de Cristo, seus escolhidos, redimidos, justificados, santificados e de todo o mundo, comumente chamados de igreja católica militante.
2. Pela universalidade dos homens no mundo inteiro, chamados pela pregação da palavra, visivelmente professando e rendendo
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obediência ao evangelho; chamados por alguns de igreja católica visível.
3. Por uma igreja particular de algum lugar, onde o culto instituído por Deus em Cristo é celebrado de acordo com a Sua vontade.
Etimologicamente, a palavra igreja, é vertida do grego ekklesia, que significa uma sociedade de homens chamados para fora do mundo; Rom 8.28. A Igreja deve ser distinguida de acordo com a sua resposta e obediência a essa chamada de Deus.
No primeiro sentido, a palavra é usada em Mat 16.28. "Sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela." Esta é a igreja dos eleitos, reconciliados, justificados, santificados, que são edificados em Cristo; e estes somente, e todos estes estão interessados na promessa feita à igreja, não há promessa feita à igreja como tal, em qualquer sentido, mas é particularmente feita nEle, a todo aquele que é verdadeira e propriamente uma parte e membro desta igreja, João 6.40; 10.28,29; 17.20,24. Aqueles que vão aplicar isso à igreja em qualquer outro sentido, devem saber que cabe a eles cumprir a promessa feita a ela a cada um que for um verdadeiro membro da igreja. Neste senso devem cumprir Ef 5.25-27: “Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito.”
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Ele fala apenas daqueles a quem Cristo amou antecedentemente à sua morte por eles, da qual o seu amor por eles foi a causa, e quem são eles é declarado em João 10.15; 17.17. E para quem, por sua morte, ele operou os efeitos mencionados, lavando, limpando, e santificando, trazendo-os para a condição prometida em Apo 19.8; 21.2; Col 1.18.
Cristo é a cabeça do corpo da igreja, e não é cabeça apenas para governo, para dar-lhe regras e leis , mas como se fosse uma cabeça natural do corpo, que é influenciado por ela, com uma nova vida espiritual.
(Cristo, sendo a cabeça da Igreja, jamais transferiria a autoridade da sua cabeça, para Pedro, Paulo ou para qualquer outro que viesse depois deles, e nem mesmo à Igreja como um todo, porque é fato patente que a cabeça (cérebro) não pode transferir os seus comandos para qualquer outro membro do corpo. E sendo a Igreja o corpo de Cristo, ela deve permanecer para sempre nesta condição, até mesmo na eternidade. – nota do tradutor)
Agora eu passarei à ultima consideração de uma igreja, à acepção mais comum desse nome no Novo Testamento, isto é, de uma determinada igreja instituída. Uma igreja, neste sentido, eu considero ser uma sociedade de homens, chamados pela palavra à obediência da fé em Cristo, e à atuação conjunta do culto de Deus, nas mesmas ordenanças individuais, de acordo com a ordem prescrita de Cristo.
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Esta descrição geral exibe sua natureza. Esta era como a da igreja em Jerusalém, que foi perseguida, Atos 8.1. Esta foi a igreja que Saulo assolava, verso 3, a igreja que foi atormentada por Herodes, Atos 12.1 . Assim era a igreja em Antioquia, que se "reunia em um só lugar ", Atos 12.14, onde havia diversos profetas, Atos 13.1. Como a de Jerusalém tinha os anciãos e os irmãos, Atos 15.22. Os apóstolos ou alguns dos seus enviados, estiveram lá presentes. Então, não necessitamos adicionar qualquer outra consideração à igreja da qual estamos falando.
Temos também a igreja de Cesareia, Atos 18.22; Éfeso, Atos 20.14,28; Corinto, 1 Coríntios 1.2; 6.4,11,12; 14.4,5; 2 Coríntios 1.1 e todas as demais que Paulo chama de as igrejas do Gentios, Rom 16.4, em contraste com as dos Judeus, e as chama indistintamente de as igrejas de Deus ou de Cristo, Rom 16.16; 1 Coríntios 7.17; 2 Coríntios 8.18,19,23; 2 Tessalonicenses 1.4, e em diversos outros lugares. Assim, lemos também de muitas igrejas em um país, como na Judeia, Atos 9.1; na Ásia, 1 Coríntios 16.19; na Macedônia, 2 Coríntios 8.1; na Galácia, Gál 1. 2; as sete igrejas da Ásia, Apo 1.11.
Suponho que nesta descrição de uma igreja particular eu tenho não somente o consentimento delas para fazê-lo quanto a todos os tipos de igrejas, como também o seu reconhecimento de que estes eram os únicos tipos de igrejas dos primeiros dias do Cristianismo.
O número de crentes, mesmo em grandes cidades era tão pequeno, que podiam se reunir
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num mesmo lugar, e estes eram chamados de a igreja da cidade, e o modelo era congregacional e não diocesano.
É este o estado que uma determinada igreja particular instituída deve pleitear. No decorrer do tempo, com os crentes se multiplicando, aqueles que tinham sido de uma só congregação se reuniram em várias assembleias, por uma distribuição decidida entre eles, para celebrar as mesmas ordenanças, e não houve uma disputa dos anciãos da igreja de onde eram originários, com aqueles aos quais estavam ligados agora numa nova região.
De acordo com o curso do procedimento até agora apresentado, dizemos que a unidade da Igreja neste sentido, não foi rompida ou violada, conforme podemos ver depois de eu ter apresentado como premissa algumas poucas coisas para comprová-lo:
1. Um homem pode ser membro da Igreja Católica de Cristo, estar unido a ela pela habitação do seu Espírito, e participar da vida dele, que em razão de algum obstáculo Providencial, nunca se una a qualquer congregação particular, para a participar das ordenanças, por todos os seus dias.
2. De igual forma, ele pode ser membro da igreja considerada como professante visivelmente, vendo que ele possa fazer tudo que é requerido dele, sem qualquer conjunção a uma determinada igreja visível, mas ainda,
3. Eu entendo, que todo crente está obrigado, como sendo uma parte de seu dever, se unir a alguma daquelas Igrejas de Cristo, para que nela
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ele possa cumprir a doutrina, e ter comunhão no "partir do pão e nas orações", de acordo com a ordem do evangelho, se ele tem a oportunidade para fazer isto. Pois,
1. Há alguns deveres que nos são impostos, e que não podem ser realizados, senão pela suposição desse dever anteriormente requerido, e ao qual estamos sujeitos, Mat 18.15-17.
2. Há algumas ordenanças de Cristo, designadas para o bem e o benefício daqueles que creem, das quais nunca podem ser feitos participantes se não estiverem unidos a alguma igreja, como por exemplo o exercício da disciplina, e a participação da Ceia do Senhor.
3. O cuidado que Jesus Cristo tem tomado para que todas as coisas sejam bem ordenadas nestas igrejas, dando a condição de cumprimento de qualquer dever de adoração apenas e puramente por sua instituição e operação soberana, mas somente neles e por eles, Apo 2.7.11,29; 3.6,7,12; 1 Coríntios 11.
4 . A reunião e fundação de tais igrejas pelos apóstolos, com o cuidado que tiveram em trazê-las à perfeição, Atos 14.23; Tito 1.5.
5. Instituição de Cristo de oficiais para elas, Ef 4.11; 1 Coríntios 11.28, chamando tal igreja de seu corpo, e atribuindo a cada um o seu dever em tais sociedades.
6. O julgamento e condenação deles pelo Espírito Santo, como pessoas desordenadas, que devem ser evitadas, porque não andam de acordo com as regras e ordem nomeadas nestas igrejas.
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Que há um culto instituído por Deus para ser continuado sob o Novo Testamento até a segunda vinda de Cristo, acho que não precisa de muita prova.
Deus tem determinado o modo de ser cultuado, e não vai permitir que a vontade e prudência do homem seja a medida e regra de sua honra e glória.
Cristo tem prometido, que onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome, ele vai estar no meio deles, Mat 18.20. Agora é suposto, com alguma esperança de ter ele concedido, que a Escritura é o poder de Deus para a salvação, Rom 1.16, que haja uma eficácia e energia suficientes em si mesma, para a conversão das almas.
Apesar de todo o seu estado a igreja não cessará em qualquer lugar, e ainda a Escritura, pela providência de Deus, estará lá na mão de indivíduos preservados, ainda que sejam dois ou três, convertidos e regenerados.
Eu pergunto se essas pessoas convertidas não podem possivelmente se reunir em nome de Jesus?
Zac 3.10: “Naquele dia, diz o SENHOR dos Exércitos, cada um de vós convidará ao seu próximo para debaixo da vide e para debaixo da figueira.” Esta promessa está atrelada ao dia da manifestação do evangelho no mundo. Não seria de se supor que haveria tanto espaço para muitos se reunirem debaixo da figueira. Não é certo?
Em circunstâncias extremas, excepcionais onde não seja possível preservar a Igreja senão por se reunir em tão pequeno grupo, está aqui
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declarado por Cristo, que ainda assim terá a sua igreja na forma referida.
Algumas coisas existem, sobre o que tem sido falado, que eu suponho, em tese, como concedidas, até que eu veja prova em contrário do que tenho falado.
Destas, a primeira é:
1. A partida ou divisão de qualquer pessoa ou grupo de pessoas, de qualquer igreja particular, não é chamada de cisma, nem é isto a natureza mesma da coisa (como o significado geral da palavra é insinuado pelo seu uso na Escritura), mas é algo para ser julgado, e receber uma definição de acordo com as suas causas e circunstâncias.
2. Uma igreja se recusa a realizar a comunhão com outra que exista entre elas, não é cisma, como propriamente chamado.
3. A partida de qualquer homem ou homens da sociedade ou comunhão de uma igreja qualquer, quando isto é feito com contenda, e julgamento e condenação de outros , porque de acordo com a luz de suas consciências eles não podem comungar em todas as coisas como eles adoram a Deus, de acordo com a sua mente, não pode ser considerado mal, mas devem ser avaliadas as circunstâncias e as pessoas que o fizeram.
A estes eu acrescento que, se qualquer um pode mostrar e evidenciar que já havia partido e deixado a comunhão, de qualquer igreja particular de Cristo, com a qual devemos caminhar em conformidade com a ordem acima mencionada, ou que tenha perturbado e
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quebrado a ordem e a união instituída por Cristo, na qual estamos incluídos, colocamo-nos à mercê de nossos juízes.
1. Nenhum homem pode ser membro de uma igreja nacional neste senso, mas em virtude de ele ser membro de alguma Igreja particular do país, o que concorre para a formação da igreja nacional.
2. Nenhum homem pode se separar desta suposta e imaginada igreja nacional ou mundial, mas se afastar de alguma igreja em particular.
3. Para fazer com que os homens sejam membros de qualquer igreja particular é necessário o seu próprio consentimento. Todos os homens devem escolher livremente qual será o lugar da sua habitação.
4. É impossível que alguém seja considerado culpado de uma ofensa contra aquilo que não existe. Como por exemplo se separar da Igreja Nacional Presbiteriana.
(A Igreja sempre necessitou de reforma, porque isto significa a necessidade de sempre se zelar para trazê-la e mantê-la na sua pureza original primitiva, quando instituída por Cristo e seus apóstolos. Nota do tradutor).
Mas agora suponha que esta congregação da qual alguém é supostamente um membro, que não é reformada, não vai nem pode reformar-se, porque não se importam com este princípio da reforma , pois eles não reconhecem nenhuma necessidade disto. O foco deles está voltado para
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outros interesses. Qualquer separação havida nestas congregações não pode ser condenada.
Neste caso, eu pergunto, se é cisma ou não, para qualquer número de homens reformarem a si mesmos, por buscarem a prática de adoração na sua instituição de origem, ou por qualquer um deles se unir com outras pessoas para esse efeito e propósito? Corajosamente dizemos: Este cisma é ordenado pelo Espírito Santo, 1 Tim 6.5; 2 Tim 3.5; Os 4.15.
Nesse meio tempo, acho que o povo de Deus não está em qualquer sujeição. Não falo isso como o colocando como um princípio, que é o dever de todo homem se separar da igreja, onde homens maus e perversos são tolerados, mas digo isso somente me referindo à condição onde qualquer igreja seja dominada por uma multidão de homens ímpios e profanos, que não podem ser reformados, ou que não caminham de acordo com a mente de Cristo, o crente tem a liberdade, que ele pode abandonar a comunhão daquela congregação sem a menor culpa de cisma. (Conforme está autorizado por várias ordenanças das Escrituras. - Nota do tradutor).
Costuma-se objetar sobre a igreja de Corinto, que havia nela muitas desordens e enormes erros, divisões, e brechas no amor; bebedeiras em suas reuniões; pecados graves de pessoas incestuosas tolerados; falsas doutrina abraçadas; a ressurreição negada; e ainda Paulo não aconselha ninguém a se separar da igreja, mas que todos cumprissem o seu dever nela. (Com exceção do jovem incestuoso que não havia se arrependido por ocasião da escrita de I
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Coríntios, que ficou sujeito à excomunhão, mas ao que parece se arrependeu depois e foi reconciliado, conforme se vê em II Coríntios. - Nota do tradutor).
1. A igreja de Corinto era, sem dúvida, uma verdadeira igreja, recentemente fundada de acordo com a mente de Cristo, e não caiu deste privilégio por qualquer má gestão, nem tinha sofrido qualquer coisa destrutiva para a sua existência. Confessamos os abusos e males mencionados surgidos na igreja, e que aumentaram, aqueles muitos abusos que podem ocorrer em qualquer uma das melhores das igrejas de Deus. Nem venha a entrar no coração de qualquer pessoa, pensar que, tão logo cesse qualquer distúrbio, que os abusos acabem com ele, é portanto, dever de qualquer um, fugir disso, como os marinheiros de Paulo fugiram do navio, quando a tempestade ficou perigosa. Este é o dever de todos os membros dessa igreja, não manchados com os males e corrupções da mesma, mediante muitas exortações para tentar ministrar o remédio para essas desordens, e para expulsar esses abusos extremos, e foi isso que Paulo aconselhou aos Coríntios que não haviam se contaminado, e assim, em obediência a eles, os demais foram recuperados.
Mas ainda digo isto, que a igreja de Corinto continuou na condição anterior, com pecados escandalosos que tinham ficado impunes, sem reprovação, a bebedeira continuou e era praticada nos cultos, os homens negando a ressurreição, então arruinaram todo o
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evangelho, e a igreja (os membros e os líderes que preservaram a são doutrina em suas vidas) se recusava a fazer o seu dever, e a exercer sua autoridade para expulsar todas as pessoas desordenadas com a sua obstinação de agirem contra a comunhão, tinha sido o dever de cada um dos santos de Deus naquela igreja, ter se retirado dela, para sair do meio deles, e para não se tornarem participantes dos seus pecados, a não ser que eles estivessem também dispostos a participar da sua praga; porque uma apostasia certamente ocorreria.
Em resumo,
1 . Eu não conheço nenhuma outra reforma de qualquer igreja, senão a de trazê-la à sua primitiva instituição, e à ordem atribuída a ela por Jesus Cristo.
E quando qualquer congregação ou reunião de homens não é capaz de tal renovação, não posso olhar para tal sociedade como uma igreja de Cristo.
2. Alguns pontos que devem ser sempre dignos da nossa atenção:
1. A verdadeira natureza de uma igreja instituída sob o evangelho, quanto à matéria, forma e todos as demais causas constitutivas, deve ser investigada e descoberta.
2. A natureza e a forma de tal igreja deve ser tomada da Escritura, e da história das primeiras igrejas, antes de terem sido sensivelmente contaminadas com o veneno da apostasia que se seguiu.
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3. A extensão da apostasia sob o anticristo, em relação à ruína das igrejas instituídas, transformando-as na Babilônia espiritual, e sua prostituída adoração, deve ser cuidadosamente examinada.
4. Por qual caminho e meios Deus começou a renovação, e manteve vivos os seus eleitos, em suas várias gerações, quando as trevas cobriram a terra, deve ser devidamente considerado.
(Vivemos numa época em que é muito comum se ver vários genuínos cristãos, nascidos do Espírito, sem estarem congregando em razão de serem avessos à ideia de estarem vinculados a uma determinada congregação local; ou por terem sido decepcionados em sua experiência quanto à Igreja em que congregaram e nas quais não encontraram uma unidade de caráter verdadeiramente bíblico; outros por terem sido submetidos à disciplina por motivo de um viver desordenado contrário às ordenanças do Senhor, e ainda, talvez, seja este um dos piores casos, em que se encontra a grande maioria, a saber, aqueles que se acomodaram a um estilo de vida chamado cristão ou evangélico, mas que todavia nada ou pouco tem a ver com o propósito divino em relação aos cristãos individualmente e como igreja. Estes, muitas vezes são enganados ou se autoenganam por pensarem que o modo de unidade que tanto lhes agrada no ajuntamento dos santos reflete aquela comunhão que é de fato real e que se baseia em unidade de fé, de amor e da sã doutrina bíblica.
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Como os cônjuges que consentem estar sob o mesmo teto mas que não vivem na comunhão conjugal designada por Deus, de igual modo é muito comum se viver na mesma congregação sem que haja a comunhão verdadeira que identifica o verdadeiro corpo de Cristo.
(Há um trabalho da graça de Jesus nos cristãos no sentido de lhes educar a renunciarem à impiedade e às paixões mundanas, e a viverem de modo sóbrio, justo e piedoso (Tito 2.12).
E este modo de vida está muito além do mero campo da moralidade ensinada pelos filósofos e educadores seculares. E também, extrapola e pouco se identifica com o misticismo baseado numa suposta posse de poder para operar sinais e maravilhas, que esteja dissociado da referida vida piedosa produzida pela graça.
Quão ineficaz é incentivar as pessoas a estarem debaixo deste suposto poder de Deus para serem abençoadas, e na verdade pode mimá-las e incentivá-las a se tornarem dependentes da procura de atendimento de desejos quase sempre carnais, interesseiros, egoístas, quer em suas orações, quer nas expectativas que criam em torno do que lhes poderá fornecer o culto público.
É comum que se faça imposição de mãos para este propósito e outras práticas, todavia a expectativa dos que buscam a “bênção” nunca se refere a uma maior busca de santidade, de amor, de longanimidade, domínio próprio, de misericórdia, bondade, benignidade e todas as demais virtudes que estão ocultas em Cristo e que não podem ser recebidas por nós em forma
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de graça amadurecida, numa ministração momentânea, senão na árdua diligência do caminho progressivo da santificação, pela operação da cruz na aprendizagem da perseverança nas tribulações, que produz experiência e esperança (Rom 5.3,4).
A imposição de mãos pode ser eficaz para a recepção dos dons sobrenaturais do Espírito que são citados em I Coríntios 12 e 14, para a ordenação ministerial, para a cura de enfermidades, para a conversão, entre outras operações, mas jamais para produzir a vida do varão perfeito, pelo amadurecimento do fruto do Espírito, no processo progressivo da santificação. Se é progressivo, como pode ser obtido numa ou em algumas ministrações por imposição de mãos ou por quaisquer outros meios de aplicação instantânea?
Dificilmente se verá a realização de apelos nos cultos públicos para as pessoas se consagrarem à prática santa referida, mormente porque suas expectativas estão normalmente relacionadas à busca de melhoria financeira, cura de enfermidades físicas, e também busca de trabalho, de cônjuge, e todo tipo de busca do que é temporal e não espiritual.
Ainda que seja lícito este tipo de busca, e por ter amparo bíblico, todavia, a ordem apresentada é buscar o reino espiritual de Deus e a sua justiça, em primeiro lugar, e então, se tem a promessa de receber o que for temporal e de fato necessário a nós, por acréscimo.
Se focamos o objetivo de nosso Senhor ter vindo a este mundo para que pudéssemos alcançar
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prioritariamente o que é secular e temporal, nos desviamos inteiramente do alvo proposto por Ele e conforme podemos aprendê-lo em toda a Bíblia e especialmente no Evangelho, porque se afirma qual é a missão do cristão neste mundo, a saber, proclamar as virtudes de Jesus (I Pe 2.9), e isto não é feito apenas pela pregação e ensino do evangelho, mas pelo testemunho de uma vida deveras santa e piedosa, que manifesta ao mundo o poder da graça de Deus para a transformação das vidas daqueles que antes andavam nas trevas, e que agora vivem na sua maravilhosa luz.
Quando, no culto e na adoração que prestamos a Deus, nos contentamos com mera moralidade, que é algo externo, e nem sempre procedente do coração, ou com práticas místicas, ascéticas ou de qualquer outro caráter, que pouco ou nada têm a ver com aquela vida espiritual, fruto da operação das virtudes de Cristo pela graça, podemos estar certos de estarmos trabalhando para o vento, uma vez que o que Deus sempre requererá de nós é adoração e santificação baseadas na verdade, ou seja, naquilo que nos é ensinado e ordenado na Sua Palavra, como aquilo que deve ser obtido por nós (João 4.23,24; 7.17).
São inumeráveis os textos bíblicos que nos apontam o dever da santificação e que nos explicam qual é o caráter desta santificação.
Então, jamais poderemos ser desculpados por Deus em razão de usarmos o nosso zelo, fervor ou sinceridade como justificativa para as práticas de culto e adoração que adotamos e que
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não encontram respaldo naquilo que Ele nos ordena na Sua Palavra.
Ele pode, neste caso, até mesmo tolerar e usar de longanimidade com a nossa ignorância, mas não pode nos aprovar e nos considerar agradáveis a Ele, se agimos diretamente contra a Sua vontade; e certamente, a graça se empenhará em nos ensinar, no tempo oportuno o modo pelo qual importa glorificá-lo, deixando nós as coisas de menino.
A face amada do Senhor será vista pela nossa santificação, que está baseada na Sua Palavra (Hb 12.14).
Ele tem declarado a quem aceitará e aprovará, em textos como os seguintes:
Rom 8:13 Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis.
2 Co 7:1 Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus.
1Ts 5:23 O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.
2 Pe 3:11 Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade,
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2 Pe 3:14 Por essa razão, pois, amados, esperando estas coisas, empenhai-vos por serdes achados por ele em paz, sem mácula e irrepreensíveis,
1 Jo 3:3 E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro.
Não é da vontade de Deus que nenhum de seus filhos venha a errar o alvo da sua vocação, afinal foram chamados para a santificação do Espírito, I Pe 1.2, e há portanto uma convocação a todos eles para crescerem na graça e no conhecimento de Jesus Cristo, II Pe 3.17,18.
Que o Senhor portanto, nos ajude a não errarmos o alvo do modo pelo qual importa ser servido e adorado. Que ele nos livre da falta de zelo, da falta de fervor de espírito, e também de uma ortodoxia morta, que não tenha a unção do Espírito Santo, e ainda de todo tipo de prática com aparência de ser piedosa e poderosa e que não passa muitas vezes senão de coisa de meninos, ainda sem entendimento do tipo de maturidade espiritual que nos é ensinado na Bíblia, para ser buscado por nós com toda a diligência, para o agrado e para a glória de Deus.
Para tanto, temos recebido o Espírito Santo, para nos conduzir ao conhecimento e prática de toda a verdade, e portanto, Ele sempre agirá com base nos princípios revelados na Bíblia, e nunca por nossa imaginação, emoção e sentimento do que seja uma vida poderosa em Deus. – nota do tradutor)
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A GRAÇA E O DEVER DE SER ESPIRITUAL
Por John Owen
Traduzido e adaptado por Silvio Dutra
Como a natureza da graça é comprovada pelos nossos Pensamentos.
Parte 1
Em Romanos 8.6 lemos que a inclinação da carne dá para morte, mas a inclinação do Espírito dá para a vida e paz. Em outras palavras isto significa que ser carnal é estar morto, e ser espiritual é ter vida eterna e paz.
E a primeira coisa que comprova que temos de fato uma mente que se inclina para o Espírito Santo é o tipo de nossos pensamentos e meditações, que procedem de afetos espirituais
Nossos pensamentos são como as flores de uma árvore na primavera.
Você pode ver uma árvore na primavera toda coberta com flores, de forma que nada mais dela aparece.
Milhares destas flores caem e não vêm a dar em nada.
Frequentemente onde há muitas flores há menos frutos. Mas ainda que não haja nenhum fruto, seja ele de que tipo for, bom ou ruim, ele deve vir de alguma dessas flores.
A mente do homem está coberta com pensamentos, como uma árvore com flores.
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A maioria destes pensamentos, tal como as flores, caem e desaparecem, e não dão em nada, pois terminam em vaidade; e às vezes onde há muitos destes pensamentos na mente geralmente haverá menos frutos; a seiva da mente se perde e é consumida neles.
O fato de não haver nenhum fruto, seja bom ou ruim, decorre destes pensamentos serem abundantes.
Como se lê em Pv. 23.7:
“Como o homem pensa em seu coração, assim ele é.”
No caso de tentações fortes e violentas, a real estrutura do coração de um homem não poderá ser julgada pela multiplicidade de pensamentos sobre qualquer objeto, porque se eles são oriundos das sugestões de Satanás, imporão um senso ininterrupto deles na mente.
Todavia, pensamentos normalmente voluntários, originados na própria mente da pessoa, são a melhor medida e indicação da estrutura de nossas mentes.
Como a natureza da terra é julgada pela grama que produz, assim a disposição do coração pode ser avaliada pela predominância de pensamentos voluntários; porque eles são as ações originais da alma, o modo por meio do qual o coração esvazia o tesouro que está no seu interior.
O coração de todo homem é a tesouraria dele, e o tesouro que está nele ou é bom ou é mau, como nosso Salvador nos fala.
Há um tesouro bom e ruim do coração; em qualquer homem, seja ele bom ou mau, lá está.
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Este tesouro está abrindo, esvaziando, e se gastando continuamente, entretanto nunca pode ser esvaziado; porque ele tem uma fonte, que não pode ser esgotada.
Quanto mais você gasta do tesouro de seu coração, mais você terá em abundância um tesouro do mesmo tipo.
Seja bom ou mau, cresce por gasto e exercício; e o modo principal por meio do qual avança é através dos pensamentos da mente.
Se o coração é mau, eles são na maior parte vãos, imundos, corruptos, maus, tolos.
Portanto, estes pensamentos dão a melhor medida da estrutura de nossas mentes e corações.
E isto é voluntário, porque a mente de si própria é hábil para inclinações e produz pensamentos até mesmo fora do controle da nossa vontade.
Parte 2
Como a natureza da graça é comprovada pelos nossos Pensamentos.
Nós vimos na primeira parte deste estudo, que o tipo de pensamentos que uma pessoa costuma ter voluntariamente, é a primeira coisa que pode comprovar se ela é espiritual ou carnal.
Os pensamentos espirituais que surgem voluntariamente em nós, são oriundos da estrutura renovada de nossos corações pelo Espírito Santo.
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Onde faltar tal estrutura de uma natureza renovada, os pensamentos serão carnais e não espirituais.
Todavia, é possível que alguém ocupe sua mente com coisas espirituais, sem ter uma nova natureza criada pelo Espírito Santo.
Assim, há homens cujo chamado e trabalho é estudar a Bíblia, e pregá-la a outros, podem não ter muitos pensamentos genuínos sobre coisas espirituais, e ainda pode ser, que frequentemente sejam remotamente espirituais.
Eles podem ser forçados pelo seu trabalho e chamada a ocuparem suas mentes dia e noite com tais pensamentos sobre coisas espirituais, mas ainda assim, não serem espirituais.
Seria bom que todos os pastores se examinassem diligentemente à luz desta citação de Ez 33.31:
“Eles vêm a ti, como o povo costuma vir, e se assentam diante de ti como meu povo, e ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra; pois com a boca professam muito amor, mas o coração só ambiciona lucro.”
Esta citação descreve o grande caráter da estrutura das mentes de homens de condição irregenerada, ou seja, sem o novo nascimento do Espírito Santo.
Por isso, “toda imaginação dos pensamentos dos seus corações só é continuamente má”, como se afirma em Gênesis 6:5, porque são carnais e não espirituais.
Eles estão cunhando invenções e imaginações continuamente nos seus corações, e
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estampando-os em pensamentos que são vãos, tolos, e maus.
Todos os seus demais pensamentos são ocasionais; estes, são o produto natural, genuíno dos seus corações. Consequentemente, a mais querida, e às vezes primeira, descoberta do tesouro mau, que não tem fundo, de sujeira, loucura, e maldade que está por natureza no coração do homem, é a multidão inumerável de imaginações más que são cunhadas lá e que são empurradas adiante diariamente.
Assim, é dito que “os perversos são como o mar agitado, que não se pode aquietar, cujas águas lançam de si lama e lodo.” (Is 57.20).
Há uma abundância de maldade nos seus corações, assim como água no mar; esta abundância é colocada em movimento ininterrupto pelas suas cobiças e seus desejos impetuosos; consequentemente o lodo e sujeira de pensamentos maus são acrescentados continuamente neles.
E é digno de registro que a mente carnal tem prazer no que é carnal, daí se dizer “a inclinação ou pendor da carne”. Ou seja, o que se quer, aquilo em que a carne tem prazer é aquilo que é tolo, vão e mau, que se expressa geralmente por meio de pensamentos tolos, vãos e maus.
É então evidente que a predominância de pensamentos voluntários é a melhor e mais segura indicação da estrutura interior e do estado da mente; porque se é assim por um lado com a mente carnal, dá-se o mesmo por outro lado, com a mente espiritual.
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Portanto, ser espiritual, em primeiro lugar, é ter no curso e fluxo desses pensamentos, que são comumente produzidos por nós, aquilo que nós aprovamos por serem resultantes de nossos afetos pelas coisas espirituais.
Nisso consiste a inclinação do Espírito.
Desta forma, é possível conhecer se alguém é carnal ou espiritual, pelo tipo da sua conversação, porque a boca fala do que está de fato cheio o coração.
Pessoas espirituais, movidas pelo Espírito Santo, e que têm suas naturezas continuamente renovadas pelo lavar regenerador e renovador do Espírito, não se ocupam com tolices, impurezas, malícias, e toda forma expressão carnal revelada naqueles que não andam no Espírito, e que se inclinam portanto para a carne,e não para o Espírito.
Parte 3
Como a natureza da graça é comprovada pelos nossos Pensamentos.
Nós vimos nas partes anteriores que o tipo de pensamentos que uma pessoa costuma ter voluntariamente, é a primeira coisa que pode comprovar se ela é espiritual ou carnal.
Os pensamentos espirituais que surgem voluntariamente em nós, são oriundos da estrutura renovada de nossos corações pelo Espírito Santo.
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Onde faltar tal estrutura de uma natureza renovada, os pensamentos serão carnais e não espirituais.
Mas sabendo que nem todos os homens são espirituais, nós temos que considerar o que é requerido para saber como tais pensamentos podem fazer uma certa indicação do estado de nossas mentes.
E há estas três coisas a serem consideradas:
1o - Que há pensamentos naturais, que surgem de nós mesmos, e não de situações externas.
O salmista menciona o “pensamento interior do homem” nos Salmos 49:11, 64:6.
Os pensamentos interiores surgem somente dos princípios, disposições, e inclinações interiores dos homens, e não são sugeridos ou estimulados por qualquer objeto externo.
Nos ímpios tais pensamentos naturais se expressam nas suas cobiças, por meio das quais são atraídos e seduzidos, como se afirma em Tg 1.14, fazendo com que façam provisão para a carne.
Estes são os seus "pensamentos interiores".
Da mesma fonte são esses pensamentos naqueles que são espirituais, isto é, aqueles que têm a inclinação do Espírito.
Eles são de outra natureza, mas também brotam na mente, independentemente de qualquer estímulo externo.
Assim em homens cobiçosos há dois tipos de pensamentos por meio dos quais a sua cobiça opera, a saber:
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Os que são estimulados por oportunidades e objetos externos, tal como se deu com Acã, em Josué 7.21: Ele disse:
“Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata, e uma barra de ouro do peso de cinquenta siclos cobicei-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra, no meio da minha tenda, e a prata por baixo.”.
A visão de Acã destes objetos, com uma oportunidade de possuí-los, inspirou pensamentos cobiçosos entusiasmados e desejos nele.
Isto é o que ocorre diariamente com outras pessoas, às quais as ocasiões as chamam para conversar com os objetos das suas cobiças.
E ficam aprisionados por estes pensamentos.
Eles se torturam e se movem para se empenharem para obter o objeto da sua cobiça.
E alguns, através de tais objetos podem ser surpreendidos em pensamentos com os quais as suas mentes não estão habitualmente inclinadas; e então quando forem conhecidos, é nosso dever evitá-los.
É através do conhecimento deste princípio de se produzir a cobiça através da produção de pensamentos a partir de estímulos externos, que a mídia opera, uma vez que as pessoas em sua grande maioria recebem tais impulsos sem submeterem tais pensamentos a um juízo crítico de valor.
Mas há um tipo de pessoas que têm pensamentos desta natureza que surge deles próprios, de suas próprias disposições e
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inclinações interiores, sem qualquer provocação externa, como lemos em Is 32.6:
“O louco fala loucamente, e o seu coração obra o que é iníquo”.
E em Is 32.8:
“Mas o nobre projeta cousas nobres, e na sua nobreza perseverará.”
Assim, a pessoa de coração transformado, que tem recebido a coparticipação da natureza de Deus, pelo novo nascimento do Espírito, pode e deve ter pensamentos nobres e perseverar na nobreza, pela vigilância e estruturação de seus pensamentos, ocupando-os nas coisas nobres recomendadas em Fp 4.8.
Mas o ímpio, da sua própria disposição e inclinação interior, permanece inventando o modo de agir de acordo com os seus pensamentos, para satisfazer a sua cobiça.
Para evitar esta armadilha, Jó fez um pacto com os seus olhos, como se vê em Jó 31.1, e nosso Salvador fez a declaração santa sobre o mau uso do olhar em Mt 5.28.
Mas o ímpio tem em si mesmo uma fonte habitual destes pensamentos, para os quais está constantemente inclinado e disposto. Consequentemente o apóstolo Pedro nos fala em II Pe 2.14 acerca de tais pessoas que elas têm “olhos cheios de adultério e insaciáveis no pecado, engodando almas inconstantes, tendo o coração exercitado na avareza”.
Os seus próprios afetos lhes tornam inquietos nos seus pensamentos e ideias sobre o pecado. Assim se dá com aqueles que são dados a excesso de vinho ou bebida forte.
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Eles têm pensamentos agradáveis elevados em si mesmos do objeto da sua cobiça.
Consequentemente Salomão dá aquele conselho contra a ocasião deles, em Provérbios 23:31:
“Não olhes para o vinho, quando se mostra vermelho, quando resplandece no copo, e escoa suavemente.”.
O ato de fixar o olhar nisto, pode produzir pensamentos de cobiça para bebê-lo.
Daí o conselho de não se fixar o olhar nas possíveis fontes de tentação.
O mandamento bíblico é que fujamos delas, que as evitemos.
E Salomão destaca em Pv 23.32-35 as consequências do que for vencido pela tentação, por não seguir a instrução de Pv 23.31:
“Pois ao cabo morderá como a cobra e picará como o basilisco. Os teus olhos verão cousas esquisitas, e o teu coração falará perversidades. Serás como o que se deita no meio do mar, e como o que se deita no alto do mastro, e dirás: Espancaram-me, e não me doeu; bateram-me, e não o senti; quando despertarei? Então tornarei a beber.”. (Pv 23.32-35).
Sucede o mesmo em outros casos.
Agora, há outros tipos de pensamentos, que não são estimulados por objetos externos, mas que são originados no interior dos homens, sem qualquer influência externa.
O salmista diz no Salmo 45:1:
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“De boas palavras transborda o meu coração: ao Rei consagro o que compuz; a minha língua é como a pena de habilidoso escritor.”.
Ele estava meditando em coisas espirituais, nas coisas relativas à pessoa e reino de Cristo.
Consequentemente “o seu coração transbordou para cima uma boa composição.”.
Está insinuada uma fonte de águas vivas.
D sua própria vida fluem rios de águas vivas (Jo 4.10,12).
Assim se dá com aqueles que são espirituais, que seguem a inclinação do Espírito e que nada dispõem para a carne.
Há uma abundância viva de coisas espirituais nas suas mentes e afetos, que os elevam para cima em pensamentos santos.
Parte 4
Como a natureza da graça é comprovada pelos nossos Pensamentos.
O Espírito, com as suas graças residindo no coração de um crente, é um rio de água viva.
Assim como do próprio coração do homem fluem continuamente maus pensamentos, oriundos de sua natureza terrena, de igual modo, da presença do Espírito Santo em nós, pode fluir também agora, continuamente, pensamentos santos e bons.
Eles brotarão incessantemente da nova natureza implantada nos crentes.
Se eles andarem no Espírito, eles verão que fluirá neles estes pensamentos celestiais.
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A água viva que Jesus nos dá é de outra natureza.
Não é água para ser mantida num poço ou numa cisterna, de onde deve ser retirada por nós; mas está dentro de nós como uma fonte eterna, que não pode secar e se tornar inútil.
É por isso que Jesus diz em Mt 12.35 que “O homem bom tira do tesouro bom cousas boas; mas o homem mau do mau tesouro tira cousas más.”.
Primeiro, o homem citado é bom; como ele disse antes no verso 33: “Ou fazei a árvore boa e o seu fruto bom, ou a árvore má e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore.”.
Ele é feito bom por graça, na mudança e renovação da sua natureza; porque em nós mesmos não habita qualquer bem.
Este homem bom tem um bom tesouro no seu coração.
Mas todos os homens têm um tesouro; como está dito:
“mas o homem mau do mau tesouro tira cousas más.”.
E esta é a grande diferença que há entre os homens neste mundo.
Todo homem tem um tesouro no seu coração; quer dizer, um princípio inesgotável de todas suas ações e operações.
Mas em alguns este tesouro é bom, em outros é mau; quer dizer, o princípio que prevalece no coração é o que leva junto com ele suas disposições e inclinações, para serem boas ou más.
Do bom tesouro saem coisas boas.
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É a presença do Espírito no coração do crente que lhe dá tal inclinação para o que é bom, e que lhe permite ter bons pensamentos, segundo o coração de Deus.
Os pensamentos que surgem do seu coração são da mesma natureza do tesouro que está nele.
Se os pensamentos que naturalmente surgem em nós forem em sua maior parte vãos, tolos, sensuais, terrestres, egoístas, tal é o tesouro que está em nossos corações, e tal somos nós; mas onde os pensamentos que assim naturalmente procedem do tesouro que está no coração são espirituais e santos, é uma prova que somos de fato espirituais.
Alguém que seja meramente religioso, que não tem o Espírito Santo, está desprovido da fonte de onde fluem os bons pensamentos, e assim, poderá apresentar uma fachada religiosa como os fariseus, que eram tidos na conta de homens santos, mas os seus pensamentos, ainda que não manifestados exteriormente em palavras e ações, tinham sua prevalência na fonte má de suas naturezas caídas.
Por isso nosso Salvador lhes tirou a máscara quando disse que eram sepulcros caiados, bonitos por fora, mas cheios de podridão no seu interior.
Por isso os homens podem ter pensamentos relativos às coisas espirituais, e que em sua maioria não surgem deste princípio, mas isto pode ser entendido por duas outras causas:
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A primeira é a Força interior, e a segunda causa são as Ocasiões externas.
A primeira causa que nos leva a ter pensamentos espirituais, que chamamos de Força interior, se refere a convicções. Convicções colocadas como um tipo de força na mente, ou uma impressão que faz com que a mesma aja de modo contrário à sua própria disposição e inclinação habitual.
É da natureza da água descer; mas se aplicamos um instrumento fazendo compressão na mesma, isto a forçará a subir, como se isso fosse seu movimento natural.
Mas tão logo cesse a força que é imprimida sobre ela, imediatamente voltará à sua própria tendência, e descerá.
Ocorre o mesmo frequentemente com os pensamentos dos homens.
Eles são terrenos, o seu curso natural e movimento é para baixo na direção das cousas terrenas; mas se houver uma impressão de convicção eficaz na mente, isto forçará os seus pensamentos para cima em direção às coisas divinas.
Pode mesmo se pensar por muito tempo que seja este o seu curso e movimento natural, mas tão logo cesse o poder da convicção de sobre a mente, os pensamentos retornarão novamente ao seu velho curso, e tenderão para baixo, para as cousas terrenas, assim como a água, em nossa ilustração.
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Isto sucede com muitos que ficam convencidos de serem crentes debaixo da pregação do evangelho, mas que não se converterão de fato.
Este estado e estrutura são descritos no Salmo 78.34-37:
“Quando os fazia morrer, então o buscavam; arrependidos procuravam a Deus. Lembravam-se de que Deus era a sua rocha, e o Deus Altíssimo o seu redentor. Lisonjeavam-no, porém de boca, e com a língua lhe mentiam. Porque o coração deles não era firme para com ele, nem foram fiéis à sua aliança.”.
Os homens quando se encontram em dificuldades, perigos, doenças, temores de morte, ou debaixo de convicção forte de pecado, tentarão pensar e meditar em coisas espirituais; mas não poderão fazer sair coisas boas de uma fonte má, e assim, ainda que seja forte o esforço que façam para obedecer à vontade de Deus, isto não passará de hipocrisia e fingimento, porque a sua verdadeira inclinação e disposição interior não é espiritual, mas carnal.
Assim, com a boca podem louvar a Deus, mas o seu coração não será firme para com Ele, e os pensamentos espirituais que se esforçaram por manter, se deterioraram e desapareceram e a mente foi impelida à sua posição natural.
O profeta dá a razão disto em Jer 13.23:
“Pode acaso o etíope mudar a sua pele ou o leopardo as suas manchas? Então poderíeis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal.”
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Como estariam inclinados para as coisas espirituais, estando a sua mente inclinada naturalmente para as coisas terrenas?
Assim, uma vez cessada a convicção imprimida sobre suas mentes pelas dificuldades que sofriam, eles voltarão ao antigo curso de seus pensamentos carnais.
É por isso que nos é ordenado um caminhar constante no Espírito, que é a fonte de onde procedem os bons pensamentos.
Não há em nós mesmos nenhuma fonte inesgotável e eterna de pensamentos espirituais.
Assim, toda a espiritualidade ocasional, produzida por convicções ocasionais renovadas, que sobem e caem, quando estamos debaixo de repreensões de Deus, não são de modo algum o modo com o qual deve ser dirigida nossa vida espiritual, porque estes pensamentos espirituais se deterioram com as nossas convicções, tão logo estas sejam afastadas.
Somente os pensamentos espirituais que surgem de um princípio interno prevalecente de graça no coração; são constantes, a menos que uma interrupção sobrevenha a eles em determinada ocasião através de tentações.
Estes pensamentos espirituais que surgem de um princípio interior da graça operando no coração não podem surgir espiritualmente nas mentes e corações dos homens por meios e ocasiões externos.
A finalidade determinada por Deus para tais pensamentos espirituais é a de produzir uma disposição e afetos santificados prevalecentes.
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Os próprios pensamentos em si mesmos não provam portanto, que alguém é espiritual.
Quando você cultiva e aduba sua terra, e se ela produzir colheitas abundantes, isto é uma evidência que a terra é boa e fértil; mas se ao cultivar a terra, você colocar adubo suficiente nela, e assim mesmo a produção não melhorar, você dirá que a terra é estéril.
Ocorre o mesmo com o coração dos homens.
O coração estéril pode ter pensamentos espirituais pela força da convicção, mas não produzirá o fruto espiritual esperado por Deus, porque a terra do coração é estéril.
Mas o coração fértil terá pensamentos espirituais que fluem do seu próprio interior, pela presença do Espírito Santo, que produz em nós pensamentos e desejos santos.
A terra fértil do coração que recebe as chuvas da graça do Espírito e produz erva útil é abençoada por Deus, mas aquela que produz espinhos e abrolhos é rejeitada por Deus e está perto da maldição e o seu fim é ser queimada, como lemos em Hb 6.7,8.
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MORTIFICAÇÃO DO PECADO DOS CRENTES
Por John Owen
(traduzido e adaptado por Silvio Dutra)
“Porque se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis.”. (Rom 8.13)
Quando o processo de mortificação do pecado não é administrado com base em princípios evangélicos, ele pode tender a enlaçar a consciência pela adoção de farisaísmo e superstição.
As diretrizes para subjugar o poder da corrupção da natureza terrena vão muito além da prática de um ascetismo oco e inoperante. Nem os métodos mórbidos do enclausuramento daqueles que procuram fugir do mundo em mosteiros e retiros pode realizar a obra esperada por Deus em relação ao assunto.
Esta leitura seria muito proveitosa, especialmente para pastores e líderes, que geralmente têm se mostrado inaptos para lidar com a própria carnalidade deles e daqueles que devem apascentar e guiar. Muitos têm colocado sobre a cerviz dos discípulos um jugo pesado e insuportável para se carregar, porque não está baseado no mistério do evangelho e na eficácia da morte de Cristo.
Para subjugar a carne é preciso aprender a caminhar com Deus, de acordo com o temor do pacto da graça.
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Em Rm 8.13 as palavras do apóstolo apresentam a conexão correta entre a verdadeira mortificação e a salvação. A mortificação como o trabalho dos crentes, e o Espírito Santo como o seu principal e eficiente instrumento. O significado de "obras do corpo" nas palavras do apóstolo no texto refere-se às ações do corpo, cujo resultado de sua mortificação é vida.
Antes de fazer esta afirmação Paulo havia discorrido sobre a doutrina da justificação pela fé, e a sua propriedade santificadora naqueles que foram feitos participantes da graça.
Entre os argumentos e motivos apresentados por ele para a santificação, ele destacou o pecado como um dos principais elementos contrários à santificação. Afirmou que aqueles que seguem o pendor da carne caminham para a morte. Numa clara alusão a incrédulos. Pois aos crentes, a quem dirigiu as palavras de Rom 8.13, disse que não estão debaixo de qualquer condenação, conforme dito no primeiro versículo deste capítulo.
A partícula condicional “se” usada no texto está empregada no mesmo sentido de quem recomenda um remédio a um doente. “Se você tomar tal remédio você ficará curado”. Os crentes já têm a posse do remédio ( a graça) e o médico que o administra (o Espírito), cabe-lhes portanto somente continuarem se submetendo à sua administração pelo Espírito para que permaneçam curados, assim como o foram na justificação e regeneração de suas almas na conversão, devendo este trabalho de cura prosseguir e ser mantido, na santificação.
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Há, portanto, no texto, a certeza da conexão entre o remédio e a saúde. E é este o sentido que Paulo quis destacar em Rom 8.13. Em nenhum momento ele quer admitir a possibilidade de um crente vir a morrer por não ter sido feito nele a obra de mortificação dos feitos do corpo, porque ele mesmo disse no contexto imediato anterior que os crentes não estão na carne, mas no Espírito, e assim, têm por conseguinte o pendor do Espírito que dá para vida e paz (Rom 8.6).
Há em Rom 8.13 uma clara relação de causa e efeito; de modo e de fim; isto é, de mortificação do pecado e vida, a vida eterna que é dom de Deus por meio de Jesus Cristo. Deus designou que este fim seria atingido pela graça, mediante a fé em Cristo, e Ele também designou todos os demais meios para que isto fosse atingido, concedendo-os também por graça e voluntariamente. Isto está determinado que deve e será feito de um modo ou de outro em todos aqueles que têm nascido de novo do Espírito. As obras da carne serão mortificadas pelo mesmo Espírito, e este é o dever deles portanto, o de cooperar com aquilo que está determinado para ser feito neles.
Esse dever de mortificar as obras do corpo é prescrito aos crentes, porque somente eles podem fazê-lo por terem o Espírito, como Paulo afirma que eles não estão na carne mas no Espírito (verso 9), e diz também que eles são guiados pelo Espírito (versos 10 e 11), distanciando assim este dever de qualquer fruto
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resultante do trabalho da superstição e do farisaísmo de que o mundo está cheio.
Assim, mesmo os crentes mais consagrados que são livrados seguramente do poder do pecado, devem ainda fazer da mortificação do poder interior do pecado o seu negócio de todos os dias. A vida eterna que temos recebido por meio de Cristo está comprovada e evidenciada no trabalho de mortificação progressiva dos nossos pecados pelo Espírito. Daí ser essencial que os crentes se empenhem em sua santificação, nunca negligenciando este dever, porque é por este trabalho de progredir em santidade que temos a certeza da vida eterna, e por conseguinte da salvação.
A causa eficiente principal do desempenho deste dever é o Espírito. O Espírito de Cristo, o Espírito de Deus que habita em nós, o Espírito de adoção; o Espírito que intercede por nós. Todos os outros modos de mortificação são vãos, todas as ajudas nos deixam desamparados; isto deve ser feito pelo Espírito.
Os homens, como o apóstolo cita em Rom 9.30-32, pode tentar fazer este trabalho, por outros princípios, como eles sempre fizeram, e podem fazer, mas, ele disse: "Este é o trabalho do Espírito; porque somente pode ser feito por Ele, e não poderá jamais ser realizado por qualquer outro poder. A mortificação da força do ego, pode ser feita por vários modos inventados pelo próprio ego até o extremo do farisaísmo, e é a alma e substância de todo falsa religião no mundo.
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“Que diremos pois? Que os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram a justiça, mas a justiça que vem da fé. Mas Israel, buscando a lei da justiça, não atingiu esta lei. Por que? Porque não a buscavam pela fé, mas como que pelas obras; e tropeçaram na pedra de tropeço;” (Rom 9.30-32).
Mas observemos agora mais detidamente o significado de mortificar as obras, ou feitos, ou ações do corpo de Rom 8.13. No próprio versículo, esta citação está alinhada com o ato de viver segundo a carne, significando pois a mesma coisa. Viver na carne e obras do corpo têm portanto o mesmo significado.
Está em foco a mesma carne, que o apóstolo vem citando desde o início da epístola, e que ele sempre apresenta como antítese de viver e andar no Espírito. O corpo, então, aqui, significa aquela corrupção e depravação de nossa natureza, sendo o corpo, em grande parte, o seu abrigo e instrumenta, os mesmos membros do corpo que são feitos servos da injustiça, como citado em Rom 6.19. É o pecado interior que conduz o corpo à ação, trazendo-o em sujeição, como um escravo. Mas a palavra "corpo" em Rom 8.13 não está se referindo propriamente ao corpo físico; o que está em foco aqui é o mesmo "velho homem", e o "corpo de pecado", de Rom 8. 6, sendo assim, considerada a pessoa como um todo, como corrompida, que abriga toda sorte de cobiças e afetos carnais.
Está em foco, com referência ao “corpo”, as mesmas obras da carne, como são chamadas e citadas em Gál 5.19.. Assim, são as ações
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externas que estão expressadas aqui, contudo as suas causas são interiormente planejadas. O "machado será posto à raiz da árvore", as ações da carne serão mortificadas nas suas causas, de onde elas procedem. Tendo, tratado no sétimo e no começo deste capítulo, da cobiça interior e do pecado como fonte e princípio de todas as ações pecaminosas, o apóstolo menciona aqui a sua destruição debaixo do nome dos efeitos que eles produzem. Ele está falando da destruição das causas (cobiça e pecado) quando fala da destruição dos efeitos (obras do corpo). É neste sentido que o corpo está morto por causa do pecado, como citado em Rom 8.10, porque enquanto neste mundo ele está sujeito à destruição por causa do pecado que nele opera, não tendo ele recebido a mesma vivificação operada no espírito por causa da justiça de Cristo, e daí afirmar-se que o espírito é vida no mesmo versículo citado. É neste mesmo sentido que Jesus afirma que o espírito está pronto, mas que a carne é fraca. O espírito humano não está sujeito a perecer, mas o corpo está. Entretanto há que se considerar que ao dizer que o espírito é vida por causa da justiça, o que está em foco é mais do que meramente o espírito humano, porque os ímpios também têm espíritos, e não se pode dizer deles o mesmo que se diz em relação aos crentes. Há um sentido sobrenatural nisto cujo amplitude não podemos entender completa e perfeitamente, porque conhecemos em parte, mas está evidente que esta obra sobrenatural se refere ao novo nascimento do Espírito Santo, porque Jesus diz
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que aquele que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Os crentes são espírito neste sentido de que passaram da morte para a vida, de que são coparticipantes da natureza divina por terem a habitação do Espírito Santo que lhes dá esta nova natureza, de modo que se diz deles que são novas criaturas em Cristo.
É importante que se saiba isto porque tanto o corpo, a alma e o espírito dos crentes estão sujeitos tanto ao pecado, quanto ao trabalho de santificação. Por se diz que a carne e o Espírito são opostos entre si. A carne, a velha natureza, opera segundo o pecado; e o Espírito, a nova natureza opera a santificação. Por isso se diz em Rom 8.6 que o pendor da carne dá para morte, e que o pendor do Espírito Santo dá para vida e paz.
O verbo mortificar usado por Paulo significa literalmente matar. Levar qualquer coisa viva à morte, por retirar toda a sua força, vigor e poder, de forma que não possa mais agir. O pecado interior é comparado a uma pessoa, uma pessoa viva, chamada de "o velho homem", com as suas faculdades e propriedades, com sua sabedoria, arte, sutileza, força; isto, diz o apóstolo, deve ser morto, mortificado - quer dizer, ter seu poder, vida, vigor, e força, e produção dos seus efeitos, lançados fora pelo Espírito. Realmente, o velho homem está totalmente mortificado pela cruz de Cristo; e é dito por isso que ele está crucificado com Cristo (Rom. 6.6), e nós mesmos estamos legalmente "mortos" com ele, verso 8, e realmente regenerados (Rom 6.3-5), quando um princípio contrário e destrutivo do
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velho homem (Gal 5.17) foi implantado em nossos corações; mas o trabalho inteiro é por graus e deve ser continuado até a perfeição todos os nossos dias. Assim, a intenção declarada do apóstolo é que é dever constante de todos os crentes a mortificação do pecado que permanece em nossos corpos mortais e que pode dar poder para a produção das obras da carne, ou feitos do corpo, como tais ações são classificadas por Paulo.
A promessa para este dever é vida: "vivereis.". A vida prometida está em oposição à morte com que são ameaçados aqueles que vivem segundo a carne.
Isto pode conduzir a uma pergunta: “podem os crentes autênticos que não estão empenhados em mortificar as obras do corpo, e que vivem segundo a carne, morrerem eternamente?”. A resposta dada pelo próprio apóstolo nesta e noutras epístolas é não. Nada e ninguém pode separar o crente de Cristo. Nenhuma acusação ou condenação será sustentada em juízo contra eles. Isto não significa que estão isentos da aplicação da justiça de Deus. Certamente são e serão sempre submetidos ao julgamento de Deus em todos os seus atos e obras, mas não para uma condenação eterna que venha a separá-los para sempre de Cristo. Daí o cuidado de Paulo em alertar os crentes a não viverem de modo presunçoso valendo-se da certeza da segurança eterna da sua salvação. Porque os que foram feitos filhos de Deus devem viver como filhos de Deus. O fato de se estar sob a graça não é um estímulo a se permanecer no pecado, mas
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muito o contrário disto, é um incentivo e um dever para se destruir, para se mortificar o pecado.
Vida eterna, santidade, somente podem ser colhidas do Espírito, e da carne não se pode colher senão corrupção (Gál 6.8). Então, é uma aberração o crente que não é instruído a mortificar o pecado e que não se empenha neste dever que lhe é imposto por Deus.
Quantas vezes Jesus disse em seu ministério terreno: “vai e não peques mais” ? Uma vez feito um crente, é um dever mortificar o pecado, ter o objetivo de não viver mais sob o seu domínio. Esta é a vontade expressa do Senhor na salvação. Ele nos salvou para a santidade.
Quando Paulo diz que se mortificarmos as obras do corpo, viveremos, é bem provável que não esteja em vista apenas a vida eterna no porvir, mas também a vida espiritual em Cristo que nós temos aqui; podendo os crentes desfrutarem a alegria, o conforto e o vigor disto, como Paulo diz em I Tes 3.8: “porque agora vivemos, se estais firmes no Senhor.”. Assim, o vigor, e o poder e conforto de nossa vida espiritual depende da mortificação das ações da carne.
Assim a mortificação é o trabalho dos crentes, e o Espírito é a principal causa e instrumento disto. E são vários os textos bíblicos que citam esta verdade.
“Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à submissão, para que, depois de pregar a outros, eu mesmo não venha a ficar reprovado.” (I Cor 9.27).
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“Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas vou prosseguindo, para ver se poderei alcançar aquilo para o que fui também alcançado por Cristo Jesus.” (Fp 3.12).
“antes crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja dada a glória, assim agora, como até o dia da eternidade.” (II Pe 3.18).
“Infiéis, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus. Ou pensais que em vão diz a escritura: O Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme? (Tg 4.4,5).
“Portanto, nós também, pois estamos rodeados de tão grande nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta,” (Hb 12.1).
“Porque a carne luta contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes se opõem um ao outro, para que não façais o que quereis.” (Gál 5.17).
“Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros.” (Rom 7.22,23).
Estes textos mostram claramente que mesmo os crentes mais consagrados devemos fazer da mortificação diária do pecado, o negócio deles todos os dias das suas vidas.
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Assim, para quem está o apóstolo falando em Col. 3.5 ? “Exterminai, pois, as vossas inclinações carnais; a prostituição, a impureza, a paixão, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria;”, e em noutra versão: “Fazei pois, morrer a vossa natureza terrena” que é a mesma coisa. E ainda em outras palavras: “mortifique seus membros que estão na terra”. Não é para aqueles que ele cita em Col 3.1-3: “Se, pois, fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus. Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra; porque morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.”. São estes que devem fazer da mortificação o seu trabalho diário; sempre devem fazê-lo, senão o pecado mortal o estará matando. Há um ditado no nosso país que afirma que se o Brasil não acabar com a saúva, ela acabará com o país. O pecado é a saúva que devemos matar todos os dias pelo poder do Espírito, para que ela não nos destrua a nós. Este inimigo que é o pecado não deve ser subestimado nem por um só momento, e toda vigilância será ainda pouca, para que possa ser devidamente destruído. E na verdade é preciso mais do que vigilância, também se requer disciplina e diligência em se cumprir determinados deveres para tal propósito.
Toda verdadeira frutificação depende do que Jesus diz em Jo 15.2: “toda vara que dá fruto, ele a limpa, para que dê mais fruto.”. E Deus não poda apenas em um ou dois dias. E vimos como o apóstolo se refere à sua própria prática diária
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em I Cor 9.27, para trazer o seu corpo em sujeição. É como se Paulo dissesse que este era o trabalho da sua vida. Que ele nunca negligenciava. Este era o seu negócio. E se isto era necessário para Paulo que estava revestido por Deus dos melhores dons, quando mais não vale isto para nós ?
O pecado sempre resistirá enquanto nós estivermos neste mundo; então sempre deve ser mortificado. As disputas vãs, tolas, e ignorantes de homens sobre a possibilidade de guardar perfeitamente os mandamentos de Deus, nesta vida, de ser completa e perfeitamente morto para o pecado, não serão abordadas agora. Mas podemos dizer que estes inventaram uma justiça nova que o evangelho não conhece.
Este modo de pensar procede do desconhecimento da diferença entre a morte completa do velho homem pelo ato legal conquistado por Cristo na cruz, e a forma de efetivação deste ato legalmente conquistado.
“Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas vou prosseguindo, para ver se poderei alcançar aquilo para o que fui também alcançado por Cristo Jesus.” (Fp 3.12).
“Por isso não desfalecemos; mas ainda que o nosso homem exterior se esteja consumindo, o interior, contudo, se renova de dia em dia.” (II Cor 4.16). Ora, se o homem interior está se renovando dia a dia, isto denota que este trabalho de mortificar o pecado é também progressivo, porque esta renovação depende principalmente disto. Não pode haver
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revestimento de Cristo, se não há despojamento da carne.
Por isso se diz em I Jo 1.8: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós.”.
No dizer de Rom 7.24 nós temos um corpo de morte. Porque está sujeito continuamente à morte que é operada pelo pecado. Este corpo só será livrado desta humilhação quando nós formos transformados no arrebatamento da igreja, quando receberemos um corpo glorificado que não está sujeito ao pecado. “que transformará o corpo da nossa humilhação, para ser conforme ao corpo da sua glória, segundo o seu eficaz poder de até sujeitar a si todas as coisas.” (Fp 3.21). Então não há outra forma de ser livrado da ação do pecado senão pela morte. Por isso é nosso trabalho enquanto estivermos neste corpo, o de estar matando continuamente o pecado. Este é o trabalho de se matar um inimigo, com um golpe após outro, de modo que não o deixemos viver.
“Porque quem semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna. E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido.” (Gál 6.8,9).
“Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.” (II Cor 7.1).
“Portanto, nós também, pois estamos rodeados de tão grande nuvem de testemunhas,
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deixemos todo embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta, fitando os olhos em Jesus, autor e consumador da nossa fé, o qual, pelo gozo que lhe está proposto, suportou a cruz, desprezando a ignomínia, e está assentado à direita do trono de Deus.” (Hb 12.1,2).
O pecado não somente permanece em nós, como ainda está operando, ainda trabalhando para produzir as ações da carne. O pecado é tão ardiloso que mesmo quando parece estar quieto, é quando está mais operante, pois suas águas podem estar mais profundas, e podemos nos iludir com a aparente tranquilidade que se mostra na superfície. Assim, se não houver uma firme e permanente vigilância, ele poderá nos surpreender.
Sabendo que não é possível a aniquilação definitiva de qualquer tipo de pecado enquanto vivermos neste mundo, será sábio estarmos sempre prevenidos contra eles, porque a condição citada em Rom 7.22,23 é uma condição permanente enquanto estamos neste corpo: ““Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros.”. Mas também é verdade que este prazer interior que temos agora na lei de Deus vem da habitação do Espírito. “Ou pensais que em vão diz a escritura: O Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme?” (Tg 4.5).
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Mas o pecado é insistente e persistente, pois estará sempre influenciando toda ação moral ou nos inclinando sempre para o mal, ou impedindo-nos de fazer o que é bom, ou atrapalhando a comunhão com Deus.
“Cada um, porém, é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência; então a concupiscência, havendo concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte.” (Tg 1.14,15).
“Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; com efeito o querer o bem está em mim, mas o efetuá-lo não está. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico. (Rom 7.18,19).
Nesta altura alguém poderá pensar que existe um paradoxo na vida cristã, pois ao mesmo tempo que se exige santidade de vida, se afirma que o pecado permanece trabalhando incansavelmente sobre as nossas vidas. Entretanto, uma verdade não anula a outra. É possível praticar o bem, é possível viver em santidade, é possível ter comunhão com Deus, ainda que estejamos sujeitos à ação do pecado. Negar isto é hipocrisia, porque esta é a pura verdade. Enquanto no corpo estamos sujeitos ao pecado, por maior que seja a nossa consagração, e dizemos isto não para justificar um viver segundo a carne, mas exatamente para se viver de modo santo, sabendo nós de antemão que isto, enquanto neste mundo, nunca significará uma aniquilação total e permanente do pecado.
Em Hb 12.1 vemos que há uma perseguição permanente do pecado. Ele nos acompanhará
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em toda a nossa caminhada terrena. Não como um amigo, mas como um inimigo terrível que estamos incumbidos de destruir constantemente pelo poder do Espírito.
É por isso que mesmo as nossas melhores obras, sempre são acompanhadas por algum tipo de pecado (orgulho, ira, negligência etc), de forma que ninguém jamais pôde ou poderá afirmar que fez qualquer coisa para Deus que estivesse isenta totalmente da companhia desse inimigo pernicioso que nos acompanha tão de perto.
Se esta é a realidade em relação ao pecado e à nossa santidade, então se nós não fizermos da mortificação diária do pecado o nosso negócio, nós estaremos perdidos. Aquele que ficar parado e sofrer os ataques deste inimigo sem resistir-lhe, será indubitavelmente vencido. Se o pecado é sutil, alerta, forte, e está sempre no trabalho de matar nossas almas, e se nós somos indolentes, negligentes, tolos, seremos certamente arruinados. Enquanto vivermos neste mundo será sempre assim: ou o pecado é vencido ou prevalece. Não há nenhum descanso prometido quanto a isto neste mundo. Esta é uma guerra sem trégua.
Não dermos a devida atenção ao pecado, se não for continuamente mortificado, ele se fortalecerá, se rebelará, aborrecerá, inquietará e destruirá. Os seus resultados são descritos por Paulo em Gál 5.19-21: “ Ora, as obras da carne são manifestas, as quais são: a prostituição, a impureza, a lascívia, a idolatria, a feitiçaria, as inimizades, as contendas, os ciúmes, as iras, as facções, as dissensões, os partidos, as invejas, as
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bebedices, as orgias, e coisas semelhantes a estas, contra as quais vos previno, como já antes vos preveni, que os que tais coisas praticam não herdarão o reino de Deus.”.
Você sabe o que fez em Davi e vários outros. Pecado sempre busca o extremo; toda vez que se levanta para tentar e seduzir, sempre procurará conduzir ao estado extremo daquele tipo de iniquidade. Todo grande vício começa pelos pequenos. Todo pensamento sujo visa conduzir à prostituição e ao adultério. Todo desejo de cobiça à opressão e dominação. Todo pensamento de incredulidade ao ateísmo. Se Deus não estabelecesse freios na própria consciência dos homens, e não instituísse a lei e autoridades para punir os pecados extremos, certamente o pecado mostraria muito mais a sua verdadeira face de conduzir às formas extremas de sua manifestação, e à maior destruição extrema que é a morte.
Mas temos aprendido muito sobre isto neste últimos dias, onde vemos que há cerca de apenas trinta anos atrás não havia tanta violência e imoralidade espalhada pelo mundo todo. A iniquidade vai se multiplicando e com ela as formas extremas de pecado (crimes de morte, roubo, adultério, aborto, homossexualismo, uso abusivo de drogas etc).
As consciências estão cauterizadas e assim já não agem tanto como freio das más ações. As autoridades fazem leis que aprovam o pecado (adultério, aborto, homossexualismo etc) ou deixam de cumprir a função instituída por Deus para elas de punir os pecados, e qual é o
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resultado disto? A manifestação do pecado em suas formas extremas. Porque o pecado está sempre presente, esperando apenas a oportunidade de se manifestar. Se ele não for reprimido ele vencerá. Quando os pais renunciam ao dever de disciplinarem seus filhos, deixando de punir suas más ações eles estão contribuindo para que vivamos numa sociedade onde a iniquidade continuará se multiplicando mais e mais, e onde o amor de muitos se esfriará, em consequência disto.
O endurecimento do coração começa pequeno e tende a aumentar Uma vez admitido o pecado faz do coração a sua base, e dali procederá todo tipo de mal, começando com graus pequenos, tendendo à sua forma extrema.
“Vede, irmãos, que nunca se ache em qualquer de vós um perverso coração de incredulidade, para se apartar do Deus vivo; antes exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado;” (Hb 3.12,13).
Quando a alma fica insensível a qualquer pecado, quer dizer, sobre o senso que é requerido pelo evangelho, ela ficará mais e mais endurecida, e isto é feito através de graus. E nada pode prevenir isto senão a mortificação. O pecado deve ser removido pela raiz, senão ele não morrerá.
Esta é a razão principal por que o Espírito e a nova natureza são doados pela graça a nós, para que tenhamos um princípio interior por meio do qual possamos nos opor ao pecado e à cobiça que conduz ao pecado. "a luta da carne contra o
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Espírito". Mas “o Espírito também luta contra a carne”. Há uma tendência no Espírito, ou nova natureza espiritual, estar agindo contra a carne, como também na carne para estar agindo contra o Espírito. Assim, como vemos em II Pe 1.4, 5. é nossa participação da natureza divina que nos dá uma fuga das corrupções que estão no mundo pela cobiça; e, vemos em Rom 7.23 tanto uma lei da mente, quanto uma lei dos membros do corpo. Esta competição é pelas nossas vidas e almas. Não estar empregando o Espírito e a nova natureza diariamente para mortificar o pecado, é negligenciar aquele socorro excelente que Deus nos tem dado contra nosso maior inimigo. Se nós negligenciarmos fazer uso do que nós recebemos, Deus pode reter a Sua mão privando-nos de nos dar mais. As graças dele, como também os seus dons são dados a nós para serem usados e exercitados, e não para serem enterrados ou jogados fora. Não estar mortificando o pecado diariamente, é pecar contra a bondade, sabedoria, graça, e amor de Deus que os tem fornecido a nós para tal propósito.
Negligenciar este dever de mortificar o pecado lança a alma numa condição contrária à citada por Paulo em II Cor 4.16, e nosso homem interior não será renovado dia a dia.
Onde a negligência da mortificação, adquire uma vitória considerável, quebra os ossos da alma (Sl 31.10; 51.8), e torna o homem fraco, doente, e pronto a morrer (Sl 38.3-5), e indo de ferido depois de ferida; chaga após chaga, nunca
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despertando para fazer uma oposição vigorosa ao pecado que está minando as suas forças, eles não podem esperar nenhuma outra coisa senão ficarem endurecidos pela falsidade do pecado.
“Olhai por vós mesmos, para que não percais o fruto do nosso trabalho, antes recebeis plena recompensa.” (II Jo 8).
É nosso dever estar aperfeiçoando a santidade no temor de Deus (2 Cor. 7.1); para estar crescendo diariamente na graça", (I Pe 1.2; II Pe 3.18), para que o nosso homem interior seja renovado dia a dia (II Cor 4.16). Agora, isto não pode ser feito sem a mortificação diária do pecado.
Quando alguém tem pensamentos leves sobre o pecado, especialmente por suas fraquezas diárias, tal pessoa está à beira de transformar a graça de Deus em lascívia, sendo endurecida pela falsidade do pecado. Especialmente os líderes devem vigiar contra esta presunção que tem sido a causa da apostasia de muitos. Nenhum pecado é pequeno ou inofensivo o bastante para ser acolhido e acariciado, sendo bem tolerado, porque há de demonstrar no fim o seu poder de destruição. Assim deve ser destruído antes que nos destrua a nós.
O Espírito Santo foi prometido aos crentes para operar principalmente este trabalho de mortificação do pecado (Ez 11.19; 36.26).
Assim, vemos que os muitos atos penitenciais e ascéticos de várias religiões não têm qualquer eficácia contra a sensualidade, isto é, contra o pecado. As chamadas práticas religiosas que são ensinadas por tais religiões para aproximar os
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homens de Deus são classificadas por Jesus por tradições de homens, doutrinas de homens, porque não conferem com a única e verdadeira doutrina de Deus revelada no evangelho que nos aponta a cruz de Cristo e o poder do Espírito como os únicos meios eficazes para a mortificação do pecado, e para a produção de santidade nos corações. É a abençoadora presença real do Senhor que é Santo quem nos santifica. Ele mesmo e nada mais. Se entramos na Sua presença, com um coração sincero, firmados na fé no sangue derramado por Cristo para a nossa justiça, e se Ele nos abençoa com a manifestação da Sua presença gloriosa, pelo Espírito que em nós habita, então somos santificados e o pecado é vencido. Não é lutando diretamente contra cada pecado, fazendo esforço para não ser vencido pelo mesmo que conseguiremos bom êxito. Como dissemos o pecado é ardiloso, pode ser que ele não se manifeste exteriormente pelo nosso esforço, mas continuará ligado ao nosso coração, gerando temor ou desejo. Mas somente a presença do Senhor em nossa comunhão com Ele pode expulsar tanto o desejo quanto o temor. Debaixo da operação da graça de Jesus o pecado não tem qualquer domínio sobre nós. Não vence o pecado pelo simples conhecimento da lei, da vontade específica de Deus para nós, mas por nos sujeitarmos ao Senhor e à operação da Sua graça.
O nosso dever é vigiar e apresentarmo-nos diariamente a Deus em oração, para que a Sua graça seja derramada em nossos corações.
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Assim, quando falamos que o nosso dever é o de mortificar o pecado, em nenhum momento isto deve ser entendido que este trabalho deve ser feito por nós sem contar com a assistência do Espírito. Na verdade, como já dissemos a eficácia desta operação pertence exclusivamente ao Espírito.
Atos de auto flagelação não podem produzir santidade. Nem também abstinências severas. Legalismo. Seja o que for. Somente o Espírito pode gerar santidade no coração. Este trabalho é feito através da nova natureza, e como poderíamos fazê-lo. As práticas religiosas são também carnais porque trabalham somente com o velho homem, continuam portanto sujeitas ao domínio da natureza terrena, porque não entendem as cousas do Espírito que se discernem espiritualmente.
A mente do homem natural não está sujeita à lei de Deus e nem mesmo pode estar, e por conseguinte não pode entender as cousas de Deus. É preciso seguir a inclinação do Espírito. É preciso estar debaixo do seu mover. É preciso estar submisso e obediente ao seu querer. E até mesmo este desejar, este querer é operado pelo Espírito. Porque é Ele quem opera tanto o querer quanto o realizar. Não sabemos como orar, mas saberemos se Ele interceder por meio de nós. Não sabemos qual seja o seu querer específico mas Ele poderá revelá-lo a nós, conforme a sua soberana vontade. Até mesmo os nossos dons, serviços, realizações, são distribuídos por Ele conforme Lhe apraz.
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Como poderemos então vencer esta força ardilosa que é o pecado sem contar sem o trabalho do Espírito em nossos corações e mentes? Todo esforço religioso sem isto é menos do que fumaça e se dissipará sem produzir qualquer efeito positivo.
Como o trabalho de mortificação do pecado requer tantas ações simultâneas nenhum esforço pessoal poderá alcançar isto, e um poder sobrenatural e todo-poderoso se faz necessário para tal. Isto é então o trabalho do Espírito, porque ele foi prometido por Deus a nós para fazer este trabalho. Jogar fora o coração de pedra, quer dizer, o teimoso, orgulhoso, impuro, rebelde, incrédulo, que é em geral o trabalho de mortificação a que estamos nos referindo. Ainda que o nosso esforço seja necessário isto não será conseguido somente pelo nosso esforço mas pelo Espírito mesmo.
Toda a nossa mortificação é dom de Cristo, e são comunicados todos os dons de Cristo a nós e nos são dados pelo Espírito de Cristo: "Sem Cristo nós não podemos fazer nada" (Jo 15.5). Ele foi exaltado a Príncipe e Salvador para nos conceder o arrependimento (At 5.31). E a nossa mortificação não é nenhuma porção pequena do nosso arrependimento.
Como o Espírito mortifica o pecado?
Geralmente, de três modos:
1. Fazendo nossos corações abundarem em graça e darem os frutas que são opostos às obras da carne. Assim o apóstolo opõe os frutos da carne aos do Espírito. Mas alguém dirá: “Mas não podem tanto os frutos da carne quanto os do
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Espírito abundarem simultaneamente na mesma pessoa? Não, diz ele, em Gál 5.24: “E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências.”. Mas como? O verso 25 diz o por que: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito.”; quer dizer, o abundar destas graças do Espírito em nós, vem por se caminhar de acordo com Ele. Porque diz o apóstolo no verso 17 que a carne e o Espírito se opõem entre si, de forma que não podem andar juntos em qualquer intensidade ou grau. O lavar renovador do Espírito é um grande modo de mortificação; ele nos faz crescer, prosperar, florescer e abundar naquelas graças descritas em Gál 5.22,23: “Mas o fruto do Espírito é: o amor, o gozo, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bondade, a fidelidade, a mansidão, o domínio próprio; contra estas coisas não há lei.” Que são o contrário, o oposto, de todas as obras destrutivas da carne.
2. Por uma real operação na raiz e hábito do pecado, para o seu enfraquecimento, destruição e remoção. Consequentemente ele é chamado de espírito de justiça e de ardor em Is 4.4: “Quando o Senhor tiver lavado a imundícia das filhas de Sião, e tiver limpado o sangue de Jerusalém do meio dela com o espírito de justiça, e com o espírito de ardor.”. Ele pega o coração de pedra por uma operação todo-poderosa; começa o seu trabalho, e continua nele trabalhando em graus. Ele é o fogo que queima a raiz mesma da cobiça.
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3. Ele traz a cruz de Cristo ao coração do pecador pela fé, e nos dá comunhão com Cristo na Sua morte, e comunhão nos Seus sofrimentos.
Sabendo que o trabalho somente pode ser feito pelo poder do Espírito de Deus, deixe então que o trabalho seja feito completamente por ele.
“porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.” (Fp 2.13).
“Senhor, tu hás de estabelecer para nós a paz; pois tu fizeste para nós todas as nossas obras.” (Is 26.12).
O Espírito Santo trabalha por meio de nós e em nós, preservando a nossa própria liberdade e obediência voluntária. Ele trabalha em nossas mentes, vontades, consciências, e afetos, de modo agradável à própria natureza deles; ele trabalha em nós e conosco, não contra nós ou sem nós; de forma que a ajuda dele é um encorajamento para facilitar o trabalho.
Sem esta operação do Espírito todo o trabalho para mortificar o pecado será em vão. E esta é a guerra mais triste que qualquer criatura pode empreender. Uma alma debaixo do poder de convicção da lei é pressionada a lutar contra pecado, mas não tem nenhuma força para combatê-lo. Eles não podem mas lutam, e eles nunca podem vencer. A lei os dirige a atacar o pecado, mas este os ataca pela retaguarda.
O vigor e conforto de nossas vidas espirituais dependem de nossa mortificação.
Força e conforto, poder e paz, em nosso caminhar com Deus, são as coisas que mais
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desejamos. Mas tudo isto depende muito de um curso constante de mortificação.
Eu não digo que eles procedem necessariamente disto, como se estivessem amarrados à mortificação, porque um homem pode ser constante num curso de mortificação todos os seus dias; e ainda assim pode ser que nunca tenha desfrutado de um dia bom de paz e consolação. Assim se dava com Hemã, no Sl 88; a vida dele era uma vida de mortificação perpétua e de caminhada com Deus, contudo terrores e feridas eram a porção dele todos seus dias. Mas Deus separou Hemã, como um amigo escolhido, para torná-lo o exemplo daqueles que vivem em angústia.
Deus faz disto uma prerrogativa Sua, a saber, falar de paz e consolação: “Tenho visto os seus caminhos, mas eu o sararei; também o guiarei, e tornarei a dar-lhe consolação, a ele e aos que o pranteiam. Eu crio o fruto dos lábios; paz, paz, para o que está longe, e para o que está perto diz o Senhor; e eu o sararei. (Is 57.18, 19).
“Eu crio isto, diz o Senhor”. O uso de meios para a obtenção de paz é nosso dever; mas o dar isto é prerrogativa de Deus.
Dos modos instituídos por Deus para nos dar vida, vigor, coragem, e consolação, a mortificação não é nenhuma das causas imediatas disto. Eles são os privilégios de nossa adoção como filhos de Deus, dados a conhecer a nossas almas pelo Espírito Santo que em nós habita.
Mas o vigor e conforto de nossas vidas espirituais dependem muito de nossa
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mortificação, não como uma "causa seno qua non", mas como uma coisa que tem uma influência eficaz, porque todo pecado não mortificado debilitará alma e a privará de seu vigor, e também a cobrirá de trevas, impedindo que tenha conforto e paz.
“Não há coisa sã na minha carne, por causa da tua cólera; nem há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado.” (Sl 38.3).
“Estou gasto e muito esmagado; dou rugidos por causa do desassossego do meu coração.” (Sl 38.8).
“Pois males sem número me têm rodeado; as minhas iniquidades me têm alcançado, de modo que não posso ver; são mais numerosas do que os cabelos da minha cabeça, pelo que desfalece o meu coração.” (Sl 40.12).
Uma cobiça não mortificada beberá o espírito, e todo o vigor da alma, e os debilitará para todos os deveres; porque, Desafina e esfria o coração, emaranhando seus afetos. Desvia o coração da condição espiritual que é requerida para a comunhão fervorosa com Deus; e sujeita os afetos, enquanto faz do mundo o seu objeto amado e desejável, expelindo o amor do Pai; de forma que a alma não podem dizer reta e verdadeiramente para Deus: "tu és a minha porção", tendo qualquer outra coisa que ama.
Os pensamentos são os grandes fornecedores da alma para fazer provisão para satisfazer seus afetos; e se o pecado permanecer não mortificado no coração, ele fará provisão para a carne, para satisfazer as suas cobiças.
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A mortificação poda todas as graças de Deus, e abre espaço para elas crescerem em nossos corações. A vida e vigor de nossas vidas espirituais consistem no vigor e florescimento das plantas da graça em nossos corações. Agora, como você sabe, num jardim há ervas daninhas, e elas atrapalham ou mesmo impedem o crescimento sadio das cultivares. E as ervas daninhas não forem arrancadas, nossas plantas ornamentais podem até crescer, mas pobremente, murchando, e estando a caminho da morte. Então as ervas daninhas têm que ser procuradas, e por poucas que sejam devem ser arrancadas porque senão se multiplicarão rápida e enormemente, e arruinarão a plantação. Assim se dá com as graças do Espírito que são plantadas em nossos corações. Isso é verdade; que elas ainda permanecem num coração onde há alguma negligência de mortificação; mas elas estão prontas a morrer. O coração está como o campo do preguiçoso, tão cheio de ervas daninhas que você pode ver escassamente o milho. Um pessoa pode procurar fé, amor, e zelo, e achá-los escassamente, pela falta de mortificação do pecado, e se ele descobre que estas graças estão lá, contudo elas estão tão fracas, sufocadas por cobiças, que elas são de muito pequeno uso; realmente, elas existem mas estão prestes a morrer. Mas agora deixe que o coração seja limpo pela mortificação, sendo as ervas daninhas da cobiça constante e diariamente arrancadas; e as graças prosperarão e florescerão, sendo úteis para todo o propósito.
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Este trabalho de arrancar ervas daninhas do pecado do coração é permanente, tal como se dá na natureza. O agricultor não pode deixar de vigiar e se descuidar nisto, e do mesmo modo o crente que desejar frutificar para Deus. Não há uma destruição absoluta destas ervas daninhas nesta vida. Mas elas demandam que sejam arrancadas continuamente ou então prevalecerão. De igual modo o pecado não deve ser vencido ocasionalmente, de vez em quando. Isto deve ser um trabalho contínuo, se desejamos prevalecer com Deus e com os homens.
Vejamos estas coisas aplicadas de modo prático. Suponha que alguém seja um crente verdadeiro, e que ainda sente uma forte inclinação para pecar, enquanto ele está convencido pelo conhecimento da lei e da vontade de Deus que faz com que seu coração fique abalado, seus pensamentos desconcertados, e sua alma enfraquecida quanto à comunhão com Deus, fazendo-lhe perder a paz e com que sua consciência seja endurecida pela falsidade do pecado. O que ele deve fazer ?
1. Como já vimos mortificar um pecado não é matar totalmente, desarraigar, e aniquilar, de modo que nunca mais voltasse a residir no nosso coração. É verdade que é isto que está apontado como objetivo; mas isto não será realizado nesta vida. Deus nos vê aperfeiçoados em Cristo, não pelo que sejamos em nós mesmo, mas por aquilo em que nós devemos estar, e que certaremos estaremos no porvir.
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“e tendes a vossa plenitude nele, que é a cabeça de todo principado e potestade,” (Col 2.10).
2. A mortificação do pecado não consiste na melhoria de uma natureza quieta, tranquila. Alguns homens têm uma constituição natural que não os expõe a paixões violentas incontroláveis e afetos tumultuosos como os de muitos outros. Deixe estes homens agora cultivar e melhorar a condição natural deles e temperá-las com disciplina, consideração, e prudência, e eles podem parecer a eles e a outros que são homens muito mortificados, quando, talvez, os corações deles são uma poça parada mas cheia de todas as abominações. Por isso, ninguém deve tentar a sua mortificação através de tais coisas como o seu temperamento natural.
3. Um pecado não é mortificado quando é somente desviado. Simão, o Mago deixou as suas feitiçarias, mas a cobiça e ambição ainda estava ligada ao seu coração, de modo que Pedro lhe disse que estava em fel de amargura e em laço de iniquidade, e concitou-o a um verdadeiro arrependimento. Um homem pode ter consciência de ter deixado a cobiça sobre determinado objeto, mas esta pode ter sido desviada para outro. Alguém deixou a mentira mas passou a adulterar. Deixou o consumo de bebida forte, mas adquiriu outros vícios. Isto não é mortificar o pecado, mas desviar o pecado para outros alvos. É preciso ter muito cuidado com isto para que não se mude o orgulho por mundanismo, a sensualidade por farisaismo, a libertinagem por legalismo, porque assim há
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somente uma mudança de senhorio, mas ainda permanecemos como servos do pecado.
4. Vitórias ocasionais sobre o pecado não chegam a configura a sua mortificação.
É possível que determinados pecados sejam abandonados temporariamente pelo temor da vergonha, de escândalo, da provocação aberta de Deus que traz o temor de seus juízos. O trabalho foi feito pelo homem e não pelo Espírito, e assim não houve nenhuma mortificação verdadeira, que transforma realmente o coração e desvia os seus afetos do pecado para a vontade de Deus.
Há épocas em que convencidos de que seus problemas são ocasionados pelos seus pecados que muitos fazem votos de nunca mais praticarem seus antigos pecados. Fazem votos a Deus de que nunca mais voltarão a pecar. Mas isto não é mortificação do pecado tanto como no caso anterior. Primeiro, porque é preciso ter a consciência numa verdadeira mortificação que não se pode jamais fazer tal voto de que nunca mais voltará à prática de determinado pecado, porque não é a nossa decisão e poder que dá o assunto por resolvido, mas o poder do Espírito Santo, e como já vimos, não existe tal condição de aniquilação total e permanente do pecado, enquanto vivermos neste mundo.
“Com tudo isso ainda pecaram, e não creram nas suas maravilhas. Pelo que consumiu os seus dias como um sopro, e os seus anos em repentino terror. Quando ele os fazia morrer, então o procuravam; arrependiam-se, e de madrugada buscavam a Deus. Lembravam-se de
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que Deus era a sua rocha, e o Deus Altíssimo o seu Redentor. Todavia lisonjeavam-no com a boca, e com a língua lhe mentiam. Pois o coração deles não era constante para com ele, nem foram eles fiéis ao seu pacto.” (Sl 78.32-37). A condição do coração humano é a descrita neste Salmo e em várias outras porções das Escrituras que descrevem as elevações e quedas de Israel.
A mortificação de uma cobiça consiste em três coisas principais:
l. Um enfraquecimento habitual disto. Toda cobiça é um hábito ou disposição que inclina o coração continuamente ao mal.
Isto demanda que se levante em guerra e oposição contra aquele hábito ou disposição.
“Amados, exorto-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências da carne, as quais combatem contra a alma;” (I Pe 2.11).
“mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros.” (Rom 7.23).
Paulo diz em Rom 6.6: “sabendo isto, que o nosso homem velho foi crucificado com ele, para que o corpo do pecado fosse desfeito, a fim de não servirmos mais ao pecado.”. O velho homem foi crucificado juntamente com Cristo para que fim ? "Para que o corpo de morte possa ser destruído", quer dizer, o poder do pecado foi debilitado, e daqui por diante nós não deveríamos servir o pecado, e ele não deve ter a mesma eficácia que tinha dantes de nos unirmos a Cristo.
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E isto não é dito somente com respeito a afetos carnais e sensuais, ou desejos de coisas mundanas, não somente em relação a cobiças da carne, dos olhos, e o orgulho da vida, mas também em relação à carne, quer dizer, aquela disposição de mente que está em oposição a Deus e que por natureza reside em nós.
2. Em constante luta contra o pecado.
Davi fala no Sl 40.12 de como o pecado havia rapidamente prevalecido contra ele: “Pois males sem número me têm rodeado; as minhas iniquidades me têm alcançado, de modo que não posso ver; são mais numerosas do que os cabelos da minha cabeça, pelo que desfalece o meu coração.”. Ele se sentia incapaz de lutar contra isto.
Sabendo que o pecado é um tal um inimigo com o qual devemos lutar, realmente temos que vê-lo como um inimigo que deve ser destruído por todos os meios possíveis. Este inimigo deve ser conhecido, bem identificado para que possamos atacá-lo com eficácia. Devemos considerar os meios como certos pecados prevaleceram no passado, de modo que possamos nos prevenir deles no presente.
Uma das razões para que a geração de crentes da atualidade seja tão propensa ao pecado está exatamente no fato de que não somente aumentaram e se diversificaram as fontes de tentação, como também esta é uma época apressada que não é dada à meditação e à reflexão. É preciso retomar os hábitos antigos de avaliação da conduta pessoal, fazendo-se um rigoroso exame interior para que se possa
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descobrir e matar o pecado, submetendo-se em oração ao poder do Espírito.
3. O sucesso frequente contra qualquer cobiça é outra evidência de mortificação. Por sucesso não se deve entender uma mera não realização e prática de determinado pecado, mas uma vitória real sobre a sua fonte e cobiça que lhe dá origem. E o fato de se levar imediatamente aos pés da cruz de Cristo qualquer percepção de formação de imaginação que estão fazendo provisão para a carne.
Matar o pecado é o trabalho de homens vivos; onde os homens estão mortos (como todos os incrédulos, o melhor deles, está morto), o pecado está vivo, e viverá.
Matar o pecado é o trabalho da fé, o trabalho misterioso da fé. É a fé que purifica o coração (At 15.9).
Adquira um interesse em Cristo; se você pretender mortificar qualquer pecado porque sem isto, nunca será feito.
Sem sinceridade e diligência em uma obediência completa, não há nenhuma mortificação.
Veja o que diz Is 58.1-7: “Clama em alta voz, não te detenhas, levanta a tua voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a sua transgressão, e à casa de Jacó os seus pecados. Todavia me procuram cada dia, tomam prazer em saber os meus caminhos; como se fossem um povo que praticasse a justiça e não tivesse abandonado a ordenança do seu Deus, pedem-me juízos retos, têm prazer em se chegar a Deus!, por que temos
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nós jejuado, dizem eles, e tu não atentas para isso? por que temos afligido as nossas almas, e tu não o sabes? Eis que no dia em que jejuais, prosseguis nas vossas empresas, e exigis que se façam todos os vossos trabalhos. Eis que para contendas e rixas jejuais, e para ferirdes com punho iníquo! Jejuando vós assim como hoje, a vossa voz não se fará ouvir no alto. Seria esse o jejum que eu escolhi? o dia em que o homem aflija a sua alma? Consiste porventura, em inclinar o homem a cabeça como junco e em estender debaixo de si saco e cinza? chamarias tu a isso jejum e dia aceitável ao Senhor? Acaso não é este o jejum que escolhi? que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo? e que deixes ir livres os oprimidos, e despedaces todo jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desamparados? que vendo o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne?”.
Se permanecemos na carnalidade todo o nosso trabalho para agradar a Deus será em vão. Nossa devoção será falsa e abominável aos olhos do Senhor, porque estará cheia de hipocrisia. Nossas ações não concordam com as expressões de louvor da nossa boca. Não temos mortificado o pecado e nem nos esforçarmos neste sentido. Assim faziam os israelitas e por isso não podiam contar com o favor de Deus.
O esforço deles para mortificação se baseava num princípio corrupto, de forma que nunca poderia chegar a bom termo. Os verdadeiros e aceitáveis princípios de mortificação serão
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manifestados como ódio ao pecado como pecado, e não apenas pela inquietação ou desconforto que ele possa nos causar. Um senso profundo do amor de Cristo na cruz é também um dos princípios da verdadeira mortificação. Tudo o que entristece o Espírito de Deus e que inquieta a nossa alma deve ser devidamente considerado. Agora, se isto começar como um esforço hipócrita, como poderá o Espírito Santo suportar tal deslealdade e falsidade do nosso espírito ? Deus não tem revelado em Sua Palavra como Ele abomina a hipocrisia, conforme lemos no texto de Isaías anteriormente ? É preciso haver portanto obediência completa e real a Deus para que o pecado possa ser mortificado pelo Espírito. É preciso se dispor a isto, e deixar que Ele trate com todas as áreas de nossas vidas que precisam ser consertadas. De outro modo Ele não o fará porque Ele trabalha com aqueles que o adoram em espírito e em verdade. Ele é o Deus verdadeiro e não pode trabalhar com a mentira e o erro. Ele pode transformar o mentiroso e errado que se humilhe diante dEle procurando verdadeiramente por socorro, mas nada fará por aqueles que se apresentam a Ele com um arrependimento falso ou superficial, tal como fizeram os fariseus que procuravam João Batista para serem batizados por ele.
“Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.” (II Cor 7.1). Se nós faremos qualquer coisa para Deus, nós devemos então fazer todas as coisas. Por isso Paulo afirma que a
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mortificação de pecados da carne e do espírito são absolutamente necessárias para quem pretende servir a Deus e obter as Suas bênçãos.
A inveteranilidade no pecado é a prática habitual do pecado. Aquilo que tem corrompido por muito tempo o coração, pode desestimular a mortificação.
“Não me compraste por dinheiro cana aromática, nem com a gordura dos teus sacrifícios me satisfizeste; mas me deste trabalho com os teus pecados, e me cansaste com as tuas iniquidades.” (Is 43.24).
Quando isto se prolonga por um grande tempo, tal carnalidade se torna perigosa. Quantos não se permitem permanecer por um longo tempo em práticas mundanas, em ambições, ganâncias, negligência de deveres para se ter comunhão constante com Deus, ou impureza para sujar o coração com imaginações vãs, tolas e más. Davi experimentou isto em certa época de sua vida e ele nos fala das consequências disto no Sl 38.5: “As minhas chagas se tornam fétidas e purulentas, por causa da minha loucura.”.
Feridas antigas negligenciadas e não devidamente tratadas pelo Espírito no trabalho de mortificação são frequentemente mortais, sempre perigosas. Se o pecado não for morto diariamente ele reunirá forças e se tornará cada vez mais forte.
Por isso devemos vigiar constantemente o nosso coração e examiná-lo pelo Espírito Santo, para saber se há nele algum caminho mau para ser removido.
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“Examinai-vos a vós mesmos se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não sabeis quanto a vós mesmos, que Jesus Cristo está em vós?” (II Cor 13.5).
Estes pecados antigos são perigosos e ameaçam a paz da alma e são de difícil remoção. Assim como Jesus se referiu a determinadas castas de demônios que só são expelidas mediante jejum e oração. Tal se dá com as cobiças deste tipo. Um curso ordinário de mortificação não fará o trabalho, e modos extraordinários devem ser fixados para tal.
É bom lembrar que estamos falando de verdadeiros crentes, porque somente este podem mortificar o pecado. Como dissemos este é um trabalho para quem está vivo. Um descrente não pode fazê-lo, a menos que se converta e assim se torne um crente.
Falamos de pecados não como o fator que identifica um crente, mas como a parte irregenerada que permanece neles. Lembremos que o sétimo capítulo de Romanos contém a descrição de um homem regenerado. Mas ali é considerado o lado escuro dele, a parte irregenerada. Ainda que se leia o que está em Romanos 7, não é de modo nenhum a fraqueza ali descrita a parte predominante no crente fiel. Nestes, o que prevalece é a nova natureza que não tem qualquer pecado, antes se opõe ao pecado. Um homem sábio pode estar doente e ferido, e fazer algumas coisas tolas; mas um sábio não é quem está doente, ferido e que faz coisas tolas.
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Quanto ao pecado um crente pode e deve dizer: “miserável homem que sou”, mas quanto à graça que lhe foi concedida pela qual pode ter vitória sobre o pecado, ele pode e deve dizer: “mas graças a Deus por nosso Senhor Jesus Cristo”.
O crente deve ser absolutamente sincero para consigo mesmo e para com Deus quanto aos seus pecados. Ele deve ter um senso claro e permanente e consciência da culpa, perigo e mal dos seus próprios pecados. De modo que possa estar vigilante e em constante posição de luta contra eles, apresentando-os a Deus pela confissão, para que sejam removidos.
Nunca se deve considerar deste modo: “mas não é isto um pequeno pecado?”. Porque qualquer pecado é destrutivo e deve ser igualmente mortificado conforme é da vontade de Deus.
Veja que o profeta Oseias alinha a incontinência ao lado da bebida forte como prejudicial ao entendimento: “A incontinência, e o vinho, e o mosto tiram o entendimento.” (Os 4.11).
A falta de conhecimento das consequências e males do pecado são citadas em várias passagens da Bíblia, e podemos ainda destacar dentre estas:
“Pois Efraim é como uma pomba, insensata, sem entendimento; invocam o Egito, vão para a Assíria.” (Os 7.11).
“vi entre os simples, divisei entre os jovens, um mancebo falto de juízo,”. “até que uma flecha lhe atravesse o fígado, como a ave que se apressa para o laço, sem saber que está armado contra a sua vida” (Pv 7.7,23).
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Será que Davi teria ido tão longe naquele seu pecado abominável, se ele estivesse plenamente consciente das suas consequências malignas e dos juízos de Deus que sobreviriam sobre ele e sua família? Se ele tivesse o senso da culpa do seu pecado teria sido necessário que um profeta fosse até ele para convencê-lo disto? A própria Bíblia nos adverte que tudo o que foi registrado na Palavra foi para nos servir de exemplo e advertência. E deixaríamos de seguir sensatamente tudo aquilo que tem o propósito de nos prevenir da prática do mal, por conhecermos por antecipação quais serão as suas consequências?
Um dos grandes perigos dos pecados inveterados, aqueles que são resultantes de uma prática contumaz e antiga é o endurecimento pela incredulidade. Como lemos em Hb 3.12,13: “Vede, irmãos, que nunca se ache em qualquer de vós um perverso coração de incredulidade, para se apartar do Deus vivo; antes exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado;”. Preste atenção. É o que ele diz. Use todos os meios, considere suas tentações, vigie diligentemente; há um engano no pecado que visa ao endurecimento dos seus corações para afastá-los de Deus.
Estes pecados trazem perda de paz e força todos os dias de um homem. E ter paz com Deus, ter força para caminhar diante de Deus, é a súmula das grandes promessas do pacto da graça. Nestes coisas está a vida de nossas almas. Sem
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elas em alguma medida confortável, viver é morrer. Qual bem nossas vidas nos farão se nós por vezes não virmos a face de Deus em paz? Se nós não temos um pouco de força para caminhar com ele? Agora, uma cobiça não mortificada privará as almas dos homens de ambos. Este caso é tão evidente em Davi, que não necessitaríamos de nenhum outro exemplo. Com que frequência ele reclamou que os ossos da sua alma estavam quebrados, isto é, a estrutura do seu espírito estava destruída e não poderia mantê-lo de pé diante de Deus, a sua alma estava sem paz, as suas feridas eram dolorosas.
Temos outro exemplo em Is 57.17: “Por causa da iniquidade da sua avareza me indignei e o feri; escondi-me, e indignei-me; mas, rebelando-se, ele seguiu o caminho do seu coração.”. Em Os 5.15: “Irei, e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a minha face; estando eles aflitos, ansiosamente me buscarão.”.
Não há melhor lugar para nos conscientizarmos da culpa e das consequências dos nossos pecados do que na lei de Deus. Por isso é importante que alimentemos nossas consciências com a justiça e a santidade da lei. Que tragamos a santa lei de Deus para a nossa consciência, e que oremos para que sejamos afetados por isto. Devemos considerar a santidade, a espiritualidade, a severidade ígnea e o poder absoluto da lei, e ter o temor da palavra de Deus no nosso coração para que não pequemos contra Ele transgredindo os seus
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mandamentos. O olhar impuro deve ser visto como adultério tal como Jesus ensinou e devemos lembrar que o Senhor ordenou nos Dez mandamentos: “Não adulterarás”. E assim devemos proceder com todos os demais mandamentos do Senhor. Lembremos da recompensa prometida, porque o Senhor disse que aquele que guardar os mandamentos da lei será grande no reino dos céus, e aquele que não os observar será considerado mínimo.
Lembre-se que aqueles que não têm a Cristo enfrentarão a condenação eterna exatamente por terem transgredido os mandamentos da lei, e como um crente poderia estar confortável transgredindo os mesmo mandamentos? Ainda que não venha a ser condenado com o ímpio por causa da fé em Cristo, certamente não deixará de ser submetido à correção do Senhor e sofrerá dano eterno quanto à sua recompensa futura, especialmente a relativa ao galardão.
Usemos assim a lei naquilo que é o próprio trabalho da lei de descobrir o pecado e despertar a alma para a necessidade de vencê-lo, sujeitando-se à graça de Cristo, e determinando viver obedientemente à vontade de Deus.
Se estamos mortos para a condenação da lei, e se estamos libertos da lei quanto a termos sido livrados em Cristo da sua maldição, no entanto não estamos livres da lei no sentido de vivermos de acordo com tudo o que a lei moral prescreve para todos os homens no que tange às suas responsabilidades para com Deus e para com o seu próximo.
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A lei trará, como diz Davi, a nossa iniquidade diante de nós, para que possamos confessá-la a Deus e abandoná-la, com santo e reverente temor e tremor.
Devemos olhar também para o evangelho, não apenas para achar conforto e alívio, mas também para nos convencer ainda mais da nossa culpa e do nosso total imerecimento diante de Deus, porque Cristo foi humilhado e crucificado por causa dos nossos pecados, e assim devemos considerá-los com a devida seriedade e temor. Como abrigaremos e continuaremos na prática daquelas coisas em razão das quais o Filho de Deus teve que morrer na cruz por nós ? Devemos considerar o amor do Pai, do Filho e do Espírito e todo o trabalho deles em nosso favor, e como seríamos tão negligente em face de tão enorme graça, e como seríamos infiéis e desleais a quem nos tem amado e sido fiel até ao extremo? Como daríamos acolhida a um tal coração endurecido pelo pecado? Antes não buscaríamos logo lugar de verdadeiro arrependimento para voltar à comunhão com Deus e andar nos Seus caminhos para o Seu inteiro agrado? Se nossa alma foi lavada pelo sangue derramado na cruz, como poderíamos praticar novas corrupções? Vamos nos esforçar para desapontar o objetivo da morte de Jesus? Vamos entristecer continuamente o Espírito que nos selou para o dia da redenção? Vamos esquecer que voltaremos com Cristo em sua segunda vinda para reinarmos com Ele em perfeita santidade e justiça? Esqueceremos que Jesus morreu exatamente para nos livrar do
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pecado? Que Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?
É necessário que a nossa consciência seja alimentada diariamente com estas verdades. Porque assim estaremos sempre alertas contra o pecado e teremos o temor de viver deliberadamente no pecado, que desagradará não somente a Deus, como também fará mal às nossas próprias almas.
Lembremos que é a bondade e a misericórdia e longanimidade de Deus que nos conduzem ao arrependimento.
A menos que tudo isto seja feito, todos os demais esforços darão em nada, porque a consciência encontrará outros meios para aliviar a culpa em relação ao pecado, e a alma nunca tentará vigorosamente a sua mortificação.
Desejemos ardentemente a libertação do pecado.
Contemplemos os textos bíblicos em que isto nos é ordenado como um dever e necessidade. Como II Cor 7.11 e Rom 7.24.
Se não houver este desejo não haverá mortificação. Ore então para que o Espírito crie tal desejo no coração se ele ainda não estiver presente lá. Pedir em oração é uma das principais leis do reino de Deus. E é extremamente importante neste caso da mortificação do pecado.
Paulo orava incessantemente neste sentido em favor da igreja. Ele estava plenamente convicto de que a vontade de Deus para o seu povo é a santificação.
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Quando o apóstolo falava em trazer o corpo em sujeição não estava se referindo a isto com o enfraquecimento exterior do corpo por práticas ascéticas que podem ser prejudiciais à saúde, e não é uma coisa boa em si mesma para o propósito da mortificação do pecado. Isto não tem nada a ver com ordenações carnais que não têm poder em si mesmas, porque se o tivessem, não haveria necessidade de qualquer ajuda do Espírito, que como já vimos é o elemento essencial na mortificação.
Este trazer o corpo à sujeição se refere a fazê-lo servo da vontade e da lei de Deus, não oferecendo os membros para a prática do pecado. E parte deste trabalho está exatamente na mortificação do pecado, que é a parte negativa, e a positiva, é o revestimento das virtudes de Cristo, a saber, do fruto do Espírito. Assim, por um lado o crente deve se despojar das obras da carne pela mortificação, e por outro revestir-se do fruto do Espírito.
É muito importante considerar para a mortificação do pecado a nossa pequenez diante da majestade e grandeza de Deus. Isto nos manterá humildes, e não permitirá que depositemos qualquer confiança na carne e em nosso próprio poder para vencer as tentações e os pecados. O meditar na grandeza do Senhor nos dará a visão adequada de que a luz de Jesus pode brilhar nas trevas mais densas do pecado e dissipá-las totalmente. Ele tem tratado com o pecado de milhões através dos séculos, e nenhum dos que nEle confiaram foram decepcionados. Isto servirá para nos encorajar a
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buscarmos auxílio nEle e na eficácia do Seu sangue para sermos lavados dos nossos pecados.
Nós somos como crianças limitadas em sua compreensão diante da majestade infinita do Senhor. Nossos pensamentos e concepções acerca de Deus não são perfeitos, nosso amor, honra, fé e obediência também não são perfeitos. No entanto nosso Pai aceita nossos pensamentos infantis porque conhece a nossa limitação. E sabedores disto nós achamos conforto na nossa angústia, por sabermos que temos um Pai perfeito que nos ama e trabalha pacientemente conosco no sentido de conduzir-nos à perfeição.
A rainha de Sabá tinha ouvido falar de Salomão, e moldou muitos grandes pensamentos da sua magnificência em sua mente; mas quando ela veio e viu a glória dele, ela foi forçada a confessar que a metade da verdade não lhe tinha sido contado. Nós podemos supor que nós atingimos aqui grande conhecimento, pensamentos claros e elevados sobre Deus; mas, quando ele nos levar á Sua presença nós clamaremos´: "Nós nunca o conhecemos como Ele é; e a plenitude da Sua glória e perfeição nunca entrarão em nossos corações".
Mas nossa falta de compreensão perfeita da grandeza de Deus e a nossa limitação não é nenhum argumento para nossa negligência e desobediência.
Além disso, o conhecimento que os crentes têm de Deus não é que ele tenha uma grande apreensão de coisas relativas à divindade, mas
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que ele as vê na luz do Espírito, que lhe dá comunhão com Deus, e não pensamento espreitadores ou noções curiosas elevadas.
O nosso conhecimento da própria Palavra revelada é parcial, imperfeito. Embora o modo de revelação no evangelho seja claro e evidente, contudo nós sabemos poucas cousas que são nele reveladas. Por isso o Espírito chama alguns para serem mestres da Palavra, mas até mesmo nestes o conhecimento não é completo e perfeito. Isto não aponta para a verdade de que a nossa dependência do Senhor é total? Que não podemos abrir mão da nossa comunhão com Ele? Nós somos tardos e duros de coração para entender as coisas que estão reveladas na Palavra de Deus.
Uma outra diretriz importante para a mortificação é que não fiquemos em paz conosco até que Deus mesmo nos fale de paz. E Ele certamente não falará enquanto estivermos vivendo no pecado.
A paz é um fruto doce que é colhido por aqueles que têm paz de consciência e que vivem em paz com Deus.
Não devemos portanto comerciar com isto e enganar as nossas próprias almas. Não devemos de modo algum pensar em subornar nossos próprios espíritos dizendo-lhes que podem descansar em Deus enquanto abrigamos qualquer tipo de pecado. Não digamos portanto paz quando não há paz.
A paz que temos com Deus por meio da fé em Jesus Cristo, por causa da justificação que nos reconciliou com Deus, diz respeito à nossa
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união com Ele pela quebra da barreira de separação que havia entre o pecador e o Criador. Mas a paz de que falamos não é objetiva como a referida em Rom 5.1, mas subjetiva. A paz que se sente no coração por se ter uma boa consciência e uma fé não fingida. A paz que é resultante de fazermos aquilo que é agradável a Deus, e que é referida no ensino de Fil 4.4-9: “Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos. Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor. Não andeis ansiosos por coisa alguma; antes em tudo sejam os vossos pedidos conhecidos diante de Deus pela oração e súplica com ações de graças; e a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus. Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai. O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus de paz será convosco.”. Observe que o apóstolo interpõe condições de obediência para que haja paz com Deus.
Devemos portanto nos precaver de uma falsa paz que seja decorrente de nossas conclusões e convicções racionais.
Em Jer 6.14 lemos: “Também se ocupam em curar superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz.”. Se a ferida do pecado não for curada corretamente, não pode haver paz. Não podemos dizer vão em
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paz para os seus lares, com a bênção do Senhor, quando estão vivendo ainda no pecado. Isto deve ser primeiro tratado pela confissão e pelo perdão abundante que há na graça de Cristo, para que possa haver paz.
É preciso curar a ferida do pecado porque Deus nos justificará de nossos pecados, mas ele não justificará o menor pecado em nós.
Uma outra diretriz para a mortificação é a fé em Cristo.
Fé particularmente nos benefícios da morte de Cristo para remover o pecado, conforme se lê em Rom 6.3-6:
“Ou, porventura, ignorais que todos quantos fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele pelo batismo na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida. Porque, se temos sido unidos a ele na semelhança da sua morte, certamente também o seremos na semelhança da sua ressurreição; sabendo isto, que o nosso homem velho foi crucificado com ele, para que o corpo do pecado fosse desfeito, a fim de não servirmos mais ao pecado.”.
O grande remédio para as almas enfermas por pecados é o sangue de Cristo. E a fé é quem fixa o trabalho de Cristo para a mortificação do nosso pecado.
E neste trabalho a fé atua de vários modos:
Fé na plenitude que está em Cristo para nossa provimento para destruição de todo e qualquer pecado.
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Aumento de fé no coração de uma expectativa de alívio em Cristo. Tal como lemos em Hc 2.3: “Pois a visão é ainda para o tempo determinado, e se apressa para o fim. Ainda que se demore, espera-o; porque certamente virá, não tardará.”. Embora o livramento do pecado possa parecer demorado, haverá no coração a expectativa e a certeza de fé de que o Senhor agirá em nosso favor.
A mortificação de qualquer pecado sempre será por uma provisão de graça. De nós mesmos nós não podemos fazer isto, porque agradou ao Pai que toda a plenitude habitasse em Cristo (Col 1.19). É a expectativa da fé que fixa o coração neste trabalho. Não é uma espera inativa, infundada de que estamos falando.
Uma fé verdadeira nos levará a trabalhar pelo objetivo proposto no nosso coração, seja para vencer o pecado, seja para fazer o trabalho que nos foi designado por Deus. Aquele que for chamado para o ministério, se preparará. E a fé será provada pelo trabalho que estivermos fazendo. Noé provou sua fé na construção da arca. Abraão peregrinando em Canaã e lutando contra os seus inimigos. A fé não é portanto sem obras, senão é morta, inexistente. A fé não é inativa, contemplativa, mas é o que nos leva à ação plena, ousada e corajosa. A fé não pode estar no preguiçoso, porque ela demanda diligência e esforço.
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Salmo 130
Por John Owen (traduzido e adaptado por Silvio Dutra)
“1 Das profundezas clamo a ti, ó Senhor.
2 Senhor, escuta a minha voz; estejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas.
3 Se tu, Senhor, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá?
4 Mas contigo está o perdão, para que sejas temido.
5 Aguardo ao Senhor; a minha alma o aguarda, e espero na sua palavra.
6 A minha alma anseia pelo Senhor, mais do que os guardas pelo romper da manhã, sim, mais do que os guardas pela manhã.
7 Espera, ó Israel, no Senhor! pois com o Senhor há benignidade, e com ele há copiosa redenção;
8 e ele remirá a Israel de todas as suas iniquidades.”
Começaremos analisando os dois primeiros versos do salmo:
“1 Das profundezas clamo a ti, ó Senhor.
2 Senhor, escuta a minha voz; estejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas.”.
O estado e a condição da alma são apresentados nestes dois primeiros versos, que são a base na qual todo o salmo é construído. O estado da alma está incluído na expressão, "das profundezas".
Alguns dos patriarcas, como Crisóstomo, supuseram que esta expressão está relacionada
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às profundezas do coração do salmista. Realmente, a palavra é usada para expressar as profundidades dos corações dos homens, mas totalmente em outro sentido, como no Salmo 64.6: “Planejam iniquidades; ocultam planos bem traçados; pois o íntimo e o coração do homem são inescrutáveis.”.
Mas o sentido óbvio de lugar, é o significado usual e constante da palavra, que no hebraico está no número plural, "profundezas", ou "profundidades.". É geralmente usado para vales, ou qualquer recipiente profundo que contém algo, especialmente água. São considerados vales e lugares fundos, por causa da escuridão e solidão deles, lugares de horror, de desamparo, e dificuldade, como citado no Salmo 23.4: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte”, que quer dizer, em perigo e dificuldade extremos.
O uso moral da palavra, como expressando o estado e condição das almas dos homens, é metafórico. Estas profundezas, então, são dificuldades ou pressões, misturadas com medo, horror, angústia e ansiedade. E elas são de dois tipos:
1. Relativa a angústias e aflições exteriores: Sl 69.1,2: “Salva-me, ó Deus, pois as águas me sobem até o pescoço. Atolei-me em profundo lamaçal, onde não se pode firmar o pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me submerge.”. Isto é o extremo de dificuldades, de que o salmista se queixa, e assim se expressou. Ele foi trazido à mesma condição de sentimentos de um homem que está se
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afogando e que olhando para os lados não encontra nenhum fundamento firme para estar de pé e poder sair da situação em que foi lançado. O verso 15 diz: “Não me submerja a corrente das águas e não me trague o abismo, nem cerre a cova a sua boca sobre mim.”.
2. Relativa a inquietações internas de consciência por causa do pecado. Sl 88.6,7: “Puseste-me na cova mais profunda, em lugares escuros, nas profundezas. Sobre mim pesa a tua cólera; tu me esmagaste com todas as tuas ondas.”. O senso da ira de Deus na consciência dele por causa do pecado, era profundo, e assim ele diz nos versos 15 e 16: “Estou aflito, e prestes a morrer desde a minha mocidade; sofro os teus terrores, estou desamparado. Sobre mim tem passado a tua ardente indignação; os teus terrores deram cabo de mim.”.
Estas são as profundezas que são principalmente aqui referidas.
Isto está evidente neste Salmo. Desejando ser livrado destas profundezas em razão das quais ele chorou, ele clama completamente a Deus por misericórdia e perdão.
Realmente, é verdade que estas profundezas operam aquilo que frequentemente é chamado por Davi de “abismo”. Sl 42.7: “Um abismo chama outro abismo ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas têm passado sobre mim.”. As profundezas da aflição despertam a consciência para um senso profundo de pecado. Mas o pecado é a doença, e a aflição apenas um sintoma do pecado, que
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sendo curado, fará com que o sintoma desapareça.
Muitos intérpretes pensam que era esta a condição de Davi neste Salmo, e isto concorda com o contexto imediato do próprio Salmo. E quanto a este estado e condição de alma podemos levantar estas duas proposições:
1. Almas piedosas podem ser conduzidas, depois de muita comunhão com Deus, a profundezas insondáveis e embaraçosas por causa de pecados.
2. A raiz interior das angústias exteriores serão expressadas principalmente em sofrimentos, e o pecado em aflições.
Isto é uma triste verdade. Aquele que ouve isto deveria tremer no seu interior pelo pensamento de que pode descansar no dia da dificuldade. Sigamos o conselho do apóstolo em Rom 11.20: “Está bem; pela sua incredulidade foram quebrados, e tu pela tua fé estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme”, e também em I Cor 10.12: “Aquele, pois, que pensa estar em pé, olhe não caia.”. Quando Pedro aprendeu esta verdade por experiência própria, ele aconselha aos santos que andem em temor. I Pe 1.17: “17 E, se invocais por Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, andai em temor durante o tempo da vossa peregrinação,”, porque o mal e o perigo podem bater à porta.
Dentre os muitos exemplos que podemos destacar, em que esta verdade é exemplificada, pode ser mencionado Gên.6.9, onde se afirma que : “Noé era homem justo e perfeito em suas
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gerações, e andava com Deus.”. Ele viveu numa época difícil entre homens ímpios, e entre todos os tipos de tentações, quando “toda a terra, estava corrompida; porque toda a carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra.”, como se afirma no verso 12. Isto pôs em evidência a obediência de Noé, e indubitavelmente fez a comunhão que ele tinha com Deus, caminhando diante dele, mais doce e preciosa a ele. Ele tinha uma alma justa conforme testemunhado pelo próprio Deus. Mas nós sabemos o que aconteceu com esta pessoa santa. Isto está registrado em Gên 9.20-27, onde se relata a sua embriaguez (verso 21) e a consequência disto, que foi motivo de escândalo e provocou o pecado de um dos seus filhos (verso 22); levando-o a dedicar aquele filho e a sua posteridade à destruição (versos 24 e 25), e tudo isto deve ter produzido muita tristeza e angústia de espírito.
Este assunto está mais claro na pessoa de Davi. Ninguém amou mais a Deus no Velho Testamento do que ele; e ninguém foi mais amado por Deus do que ele. Os caminhos de fé e amor em que ele caminhou é para a maioria de nós como o da águia no ar, muito alto e difícil para nós. Ainda hoje os clamores deste homem soam em nossos ouvidos como o próprio som do coração de Deus. Às vezes ele reclama de ossos quebrados, às vezes de profundezas de afogamento, às vezes de ondas e águas tumultuosas, às vezes de feridas e doenças, às vezes laços de morte e angústias do inferno; em todos lugares, dos seus pecados, do fardo e da
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dificuldade deles. Algumas das ocasiões das profundezas dele, trevas, embaraços, e angústias, todos nós conhecemos. Como nenhum homem teve mais graça do que ele, assim nenhum é um maior exemplo do poder do pecado, e os efeitos da sua culpa na consciência. Mas exemplos deste tipo são óbvios, e ocorrem nos pensamentos de todos, de forma que eles não precisam ser repetidos.
Falemos primeiro então das profundezas e embaraços por causa do pecado, que podem acometer almas piedosas, depois de muita comunhão com Deus.
As profundezas se referem:
1. À perda do senso do amor de Deus que a alma desfrutou no passado. Há um senso do amor de Deus, do qual os crentes podem ser feitos participantes neste mundo. Há o derramar do amor no coração pelo Espírito Santo com alegrias indizíveis, em apreensão do amor de Deus, e nossa relação com Cristo. O efeito imediato disto, é chamado de "alegria indizível e cheia de glória" (I Pe 1.8). O Espírito Santo habita no coração, com uma evidência clara do interesse da alma em todas as graças do evangelho, e isto faz com que se salte de alegria, exultação e triunfo no Senhor.
O crentes são aceitos por Deus em Cristo como se lê em Rom 5.1: “Justificados, pois, pela fé, tenhamos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo.”. Esta é a raiz de onde toda aquela paz e consolação de que os crentes são feitos participantes neste mundo. Isto é aquilo que os move e incentiva ao dever. Sl 116.12,13: “Que
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darei eu ao Senhor por todos os benefícios que me tem feito? Tomarei o cálice da salvação, e invocarei o nome do Senhor.”. Isto os apoia sob as suas tentações, lhes dá paz, esperança, e conforto na vida e na hora da morte. Sl 23.4: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.”. Um senso da presença do amor de Deus é suficiente para expulsar toda a ansiedade e temores nas condições mais terríveis; e não somente isto, como também dá consolação sólida e alegria em meio às dificuldades. Assim se expressou o profeta sobre isto: “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto nas vides; ainda que falhe o produto da oliveira, e os campos não produzam mantimento; ainda que o rebanho seja exterminado da malhada e nos currais não haja gado. Todavia eu me alegrarei no Senhor, exultarei no Deus da minha salvação.” (Hc 3.17,18). E este é aquele senso do amor que os crentes mais consagrados podem perder por causa de pecados. Este é um passo nas profundezas deles. Eles não experimentarão o descanso, a paz e a consolação do evangelho, que deveria influenciar as almas deles com alegria dando-lhes suporte na tentação.
2. A consideração em perplexidade sobre a grande infidelidade deles para com Deus é outra parte das profundezas do pecado em que as almas são emaranhadas. Assim Davi se queixa no Sl 77.3: “Lembro-me de Deus, e me lamento; queixo-me, e o meu espírito desfalece.”. Como vem a recordação de Deus a ele num assunto de
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dificuldade? Em outros lugares ele professou que era todo o seu alívio e conforto. Como vem isto a ele numa ocasião de dificuldade? Nem tudo tinha estado bem entre ele e Deus; e considerando que no passado, na recordação dele de Deus, os pensamentos dele foram sobre o Seu amor e bondade, agora eles eram completamente possuídos com o seu próprio pecado e infidelidade. Isto era a causa da sua dificuldade. Nisto repousava uma parte dos embaraços ocasionados pelo pecado.
O desconcerto da alma nesta condição está bem identificado no Sl 38.3-6: “Não há coisa sã na minha carne, por causa da tua cólera; nem há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado. Pois já as minhas iniquidades submergem a minha cabeça; como carga pesada excedem as minhas forças. As minhas chagas se tornam fétidas e purulentas, por causa da minha loucura. Estou encurvado, estou muito abatido, ando lamentando o dia todo.”.
3. Um senso reavivado de ira justamente merecida também pertence a estas profundezas. Isto é como a abertura de velhas feridas. Quando os homens alcançaram um senso de livramento da ira, pela libertação e descanso obtido pelo sangue de Cristo, e voltam aos seus antigos pensamentos, eles estão negociando mais uma vez com inferno, maldição, lei e ira, e isto é realmente uma profundeza. E isto acontece frequentemente às almas piedosas por causa de pecados. Hemã disse no Sl 88.7: “Sobre mim pesa a tua cólera; tu me esmagaste com todas as tuas ondas.”. Ele se
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sentia apertado e esmagado. Neste caso a alma é quebrada debaixo destes sentimentos sem que possa sentir o alívio que há na graça de Cristo. Isto é entrar no vale da sombra da morte.
4. Trazendo apreensões de julgamentos temporais porque Deus julgará o Seu povo. E o julgamento começa frequentemente pela casa de Deus. Embora Deus tenha dito que não me rejeitará para sempre, por ter perdoado todas as minhas iniquidades em Cristo, ainda assim ele pode tomar vingança sobre as minhas rebeliões e me fazer experimentar o fel de amargura todos os meus dias. Davi diz no Sl 119.120: “Arrepia-se-me a carne com temor de ti, e tenho medo dos teus juízos.”. Ele não sabe o que o grande Deus pode trazer a ele; e estando cheio de um senso da culpa de pecado que é o fundo desta condição inteira todo julgamento de Deus é cheio de terror para ele. Às vezes ele pensa que Deus pode tornar pública a sujeira do coração dele, e lhe tornar um escândalo para o mundo. Sl 39.8: “Livra-me de todas as minhas transgressões; não me faças o opróbrio do insensato.”. Às vezes ele treme porque Deus não o julga de imediato, e o leva a caminhar em tristeza e trevas, e por isso Davi pede: “não me consumas na tua ira”. Às vezes ele teme para que não seja como Jonas, para que não haja uma tempestade na sua família, na igreja de que é membro, na nação inteira. Estas coisas fazem com que o coração dele se derreta no seu interior, tal como falou Jó. Quando qualquer aflição ou julgamento público de Deus são aplicados de modo rápido, estando vivo o pecado na consciência, isto subjuga a
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alma, como se deu com os irmãos de José no Egito. A alma é rolada então de um abismo a outro. A aflição amolece a alma, de forma que o senso de pecado torna-se mais profundo, e faz as feridas ficarem maiores; e o senso de pecado debilita a alma, e faz a aflição ficar mais pesada, e assim aumenta seu fardo. Neste caso a aflição aferroa como espinhos e o priva de todo o descanso e tranquilidade; Deus ensinará assim às almas teimosas qual é o dever delas, como Gideão fez com os homens de Sucote (Jz 8.16).
5. As profundezas se referem também à soma dos temores que prevalecem em determinada época, de ser rejeitado totalmente por Deus, de ser achado reprovado no último dia. Jonas parece ter pensado assim: “E eu disse: Lançado estou de diante dos teus olhos; como tornarei a olhar para o teu santo templo?” (Jn 2.4). E Hemã, no Sl 88.4,5: “Já estou contado com os que descem à cova; estou como homem sem forças, atirado entre os finados; como os mortos que jazem na sepultura, dos quais já não te lembras, e que são desamparados da tua mão.”. Isto pode trazer a alma, até às tristezas do inferno, fazendo com que se sinta privado de conforto, paz, descanso; até ao ponto de se preferir a morte do que a vida. Isto é o que significa que o julgamento de Deus começa pela sua casa, e de que Ele julga o seu povo para que não seja condenado juntamente com o mundo. Geralmente, isto sucede a crentes, porque não serão condenados no futuro à morte eterna; mas os ímpios não são visitados ainda com tais antecipações de demonstração da ira divina em
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suas almas, tal como sucede aos crentes, quando pecam. O ímpio peca e segue o seu caminho sem experimentar tais juízos em sua consciência, mas o crente é julgado no aqui e agora por Deus para que não seja condenado juntamente com o ímpio. Estas manifestações do juízo de Deus podem suceder a uma alma piedosa por causa do pecado. E ainda porque isto luta diretamente contra a vida de fé, Deus não deixa, salvo em casos extraordinários, que qualquer um dos seus fique por muito tempo nesta cova horrível onde não há qualquer água de refrigério. Mas isto acontece frequentemente, que os santos sejam deixados por um período sob uma expectativa temerosa de julgamento e indignação de um fogo consumidor, na apreensão que prevalece em suas mentes.
“Retenhamos inabalável a confissão da nossa esperança, porque fiel é aquele que fez a promessa; e consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras, não abandonando a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quanto vedes que se vai aproximando aquele dia. Porque se voluntariamente continuarmos no pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma expectação terrível de juízo, e um ardor de fogo que há de devorar os adversários.” (Hb 10.23-27).
“Pois conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu retribuirei. E outra vez: O Senhor
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julgará o seu povo. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo.” (Hb 10.30,31).
6. Refere-se também a Deus enviar as suas flechas secretamente na alma enquanto acrescenta dor, dificuldades, inquietações e desconsolo. Sl 38.1,2: “Ó Senhor, não me repreendas na tua ira, nem me castigues no teu furor. Porque as tuas flechas se cravaram em mim, e sobre mim a tua mão pesou.”. Deus atirou nele uma flecha afiada penetrante, que o encheu de dor e vexame. Estas flechas são as repreensões de Deus: Sl 39.11: “Quando com repreensões castigas o homem por causa da iniquidade, destróis, como traça, o que ele tem de precioso; na verdade todo homem é vaidade.”. Deus fala através da Sua Palavra, e pelo Seu Espírito, na consciência, coisas afiadas e amargas para a alma. Disto Jó se queixou. Jó 6.4: “Porque as flechas do Todo-Poderoso se cravaram em mim, e o meu espírito suga o veneno delas; os terrores de Deus se arregimentam contra mim.”. O Senhor fala palavras com aquela eficácia, que elas perfuram o coração totalmente; e é assim que Davi declara no Sl 38.3: “Não há coisa sã na minha carne, por causa da tua cólera; nem há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado.”. A pessoa é inteiramente trazida debaixo do poder delas, e toda a saúde e descanso são tomados.
7. Incapacidade e inaptidão para o dever, como se vê no Sl 40.12: ”Pois males sem número me têm rodeado; as minhas iniquidades me têm alcançado, de modo que não posso ver; são mais numerosas do que os cabelos da minha cabeça,
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pelo que desfalece o meu coração.”. A força espiritual dele estava minada por causa do pecado, de forma que ele não podia ter qualquer comunhão com Deus. A alma não pode orar agora com vida e poder e não pode ouvir com alegria, não pode fazer o bem e não se sente em liberdade para meditar com prazer e alegria nas coisas espirituais divinas, não pode trabalhar para Deus com zelo e liberdade, não pode pensar no sofrimento com coragem e resolução; mas está doente, fraca e curvada.
Agora, eu digo, que uma alma piedosa, depois de muita comunhão com Deus, pode, por causa do pecado, por um senso da culpa deste, ser trazida a um estado e condição em que perplexidades iguais a estas podem ser a sua porção; e estas compõem o significado das profundezas de que o salmista reclama no início do Salmo 130.
Reflitamos então como é que os crentes podem ser conduzidos a profundezas por causa do pecado.
Primeiro, deve ser considerada a natureza da nova aliança em que todos os crentes caminham agora com Deus. Debaixo da primeira aliança não havia qualquer promessa relativa à misericórdia ou ao perdão de determinados pecados. Ao contrário, pela aliança se determinava a sentença de morte pelos juízes de Israel, de homossexuais, adúlteros, assassinos, blasfemadores, dentre outros, daquele povo, sem que houvesse a provisão de qualquer perdão para aqueles tipos de pecados (veja: na aliança e não em Deus). Era necessário, então, que fosse demonstrada uma suficiência de
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graça para preservá-los de todo pecado, porque pela aliança em si mesma, nada havia senão a apresentação de sacrifícios de animais para a cobertura de determinados pecados, e por nenhum deles se podia declarar qualquer crente daquele pacto, sem culpa eternamente, em relação ao pecado, pelos termos da referida aliança, porque não se afirmava em suas promessas que as transgressões seriam perdoadas e as iniquidades esquecidas eternamente, tal como ocorre na Nova Aliança (Jer 31.34 – “pois lhes perdoarei a sua iniquidade, e não me lembrarei mais dos seus pecados.”, e nisto subentende-se para sempre, eternamente, como se vê em textos paralelos relativos à aliança da graça). Assim ter feito uma aliança em que não havia nenhuma provisão efetiva de perdão, e nenhuma suficiência de graça para manter os aliançados seguros quanto à certeza do perdão e esquecimento da iniquidade, eternamente, não pode ser atribuído a qualquer falta de bondade ou de justiça de Deus. Ele criou o homem reto, e este por sua própria conta, procurou muitas invenções, sendo o único responsável pelo fato de ser pecador.
Não é assim na aliança da graça; nesta há perdão provido no sangue de Cristo.
1. Há provisão feita contra todo e qualquer pecado que possa fazer separação entre Deus e a alma que esteja enlaçada no pecado. Esta provisão é absoluta. Deus tem levado a efeito nela a realização deste bem, e o estabelecimento desta lei da aliança que não deve ser anulada por qualquer pecado. Jer 32.40: “e farei com eles um
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pacto eterno de não me desviar de fazer-lhes o bem; e porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim.”. A primeira aliança tem servido para demonstrar o quanto devemos ser gratos a Deus por Jesus Cristo que pagou o preço pelos nossos pecados e é o mediador de uma tal aliança. E serve também para revelar o temor que devemos ter de Deus ainda mesmo nesta nova aliança, porque Ele não mudou em nada quanto ao que se refere a detestar o pecado. E com isso nos chama a andar em temor na Sua presença, ainda que saibamos que estamos debaixo de benefícios tão valiosos para as nossas almas, nesta nova aliança. Mas, na nova aliança a certeza de segurança não depende de qualquer coisa em nós mesmos. Tudo aquilo que está em nós será usado como meio da realização desta promessa; mas o evento ou assunto depende absolutamente da fidelidade de Deus. E a certeza inteira e estabilidade da aliança dependem da eficácia da graça administrada na mesma para preservar os homens de todos os tipos de pecados.
2. Há nesta provisão da aliança paz constante e consolação, mesmo em face da culpa sentida por pecados, como pelas suas fraquezas e tentações, a que os crentes estão diariamente expostos. Embora eles pequem diariamente, contudo eles não entram em profundezas diariamente. No teor desta aliança há uma consistência entre um senso de pecado, humilhação e paz, com consolação forte. Depois que o apóstolo tinha descrito o conflito total que os crentes têm com o pecado, as feridas
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frequentes que eles recebem neste conflito os faz clamarem por libertação, Rom 7.24, mas ele ainda conclui, em Rom 8.1 que não há nenhuma condenação para eles. Isto é um fundamento suficiente e estável de paz. Assim, lemos em I Jo 2.1: “Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; mas, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo.”. Nosso grande negócio e cuidado não é tanto se pecamos ou não, porque “se dissermos que não temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós.” (I Jo 1.8). O que, então, criaturas pobres, pecadoras, culpadas farão? Deixe-as irem ao seu Pai por meio do Advogado deles, e eles não terão falta de perdão e paz. E, assim lemos em Hb 6.17,18: “assim que, querendo Deus mostrar mais abundantemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu conselho, se interpôs com juramento; para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos poderosa consolação, nós, os que nos refugiamos em lançar mão da esperança proposta;”. Quem fugiu para a antiga cidade de refúgio para ter segurança, de onde esta expressão foi tirada? Aquele que era culpado de sangue, e que está condenado à morte, a não ser se estivesse numa cidade de refúgio. Embora possamos ter a culpa de pecados em nós que nos sujeitam à morte pronunciada pela lei, contudo, podemos buscar refúgio em Cristo, em quem Deus não tem somente provido segurança, mas também "forte consolação" para nós. O perdão no sangue de
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Cristo não somente retira a culpa da alma, como também a dificuldade, como lemos em Hb 10.1,2: “Porque a lei, tendo a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas, não pode nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem de ano em ano, aperfeiçoar os que se chegam a Deus. Doutra maneira, não teriam deixado de ser oferecidos? pois tendo sido uma vez purificados os que prestavam o culto, nunca mais teriam consciência de pecado.”. Mas agora, ele diz: “Pois com uma só oferta tem aperfeiçoado para sempre os que estão sendo santificados.”. Jesus Cristo, na aliança da graça, os aperfeiçoou para sempre, provendo para eles tal paz estável e consolação, e com isso eles não precisarão apresentar sacrifícios diariamente, como se lê no verso 18: “ Ora, onde há remissão destes, não há mais oferta pelo pecado.”. Este é o grande mistério do evangelho no sangue de Cristo, que aqueles que pecam diariamente possam ter paz com Deus todos os seus dias.
3. Há provisão feita pela graça para prevenir e preservar a alma de grandes pecados, quanto da própria natureza deles em sua habilidade de ferir a consciência, e lançar a pessoa em tais profundezas e embaraços em que não terá nem descanso, nem paz. De que tipo são estes pecados falaremos posteriormente. Há “plenitude, e graça sobre graça.” conforme vemos em Jo 1.16, abundância de graça administrada pela plenitude de Cristo. A graça reina como se lê em Rom 6.6, destruindo e crucificando "o corpo de pecado".
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Mas esta provisão na aliança da graça contra a destruição da paz, enquanto a alma é desconcertada por pecados, não é, absoluta, quanto à sua administração. Isto é, ela não opera em todo o tempo independentemente do que façamos ou não. Como se pudéssemos ter paz de consciência enquanto pecamos deliberada e voluntariamente. Há mandamentos e exortações na aliança, de cuja obediência depende a administração de muito do que faz parte da aliança da graça. Vigiar, orar, aumentar a fé, mortificar o pecado, lutar contra as tentações, com firmeza, diligência e constância, é prescrito em todos os lugares da Palavra a nós. Estas coisas estão em nossa conta e parte como condição para a administração daquela graça abundante que preserva a nossa alma de ficar emaranhada em pecados. Assim Pedro nos diz: “visto como o seu divino poder nos tem dado tudo o que diz respeito à vida e à piedade, pelo pleno conhecimento daquele que nos chamou por sua própria glória e virtude;” (II Pe 1.3). Nós temos nisto uma indicação para nos abastecermos a toda hora para obediência. Assim ele também, diz no verso 4: “pelas quais ele nos tem dado as suas preciosas e grandíssimas promessas, para que por elas vos torneis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.”. O que, então, é requerido de nós nesta condição santificada, é que nós devemos nos tornar melhores em face da provisão de graça que nos é trazida nesta nova aliança. E por isso se diz nos versos 5-7: “E
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por isso mesmo vós, empregando toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência o domínio próprio, e ao domínio próprio a perseverança, e à perseverança a piedade, e à piedade a fraternidade, e à fraternidade o amor.”. Quer dizer, cuidadosa e diligentemente preste atenção ao exercício de todas as graças do Espírito, e em todas as coisas que dizem respeito ao evangelho. E qual será então o resultado se estas coisas forem observadas? Verso 8: “Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas, elas não vos deixarão ociosos nem infrutíferos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo.”. Não é bastante que estas coisas estejam em você, que você tenha a semente e raiz delas pelo Espírito Santo; mas você deve ser cuidadoso em que elas floresçam e abundem. Sem isto, a raiz do problema pode estar em você, e ainda que não seja completamente destituído de vida espiritual, você será pobre e estéril todos os seus dias. Mas agora, suponha que estas coisas abundem, e nós seremos feitos assim frutíferos. Porque ele diz no verso 10: “Portanto, irmãos, procurai mais diligentemente fazer firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis.”. Ele não está dizendo que você nunca mais cairá no pecado, não é isso que está na promessa, mas é da preservação do eleito de que ele está falando, da impossibilidade de apostasia total e final.
E aqui repousa a liberdade da nova aliança, que se baseia no exercício do livre-arbítrio
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regenerado. Este é o campo da liberdade, da obediência voluntária, sob a administração do evangelho da graça. Há limites que, em relação a isto, não concernem ao pacto. Ser completamente perfeito, ser livre de todo pecado, de toda queda, de todas as fraquezas, todas as enfermidades, que não são abrangidas pela promessa da nova aliança. É uma aliança de misericórdia e perdão que pressupõe uma continuação do pecado enquanto estivermos neste corpo. Mas a aliança provê absolutamente contra a possibilidade de cair total e finalmente da união com Deus. Entre este dois extremos de perfeição absoluta e apostasia total repousa o grande campo da obediência dos crentes e da caminhada com Deus. Há muitos lugares celestiais agradáveis, e muitas profundezas perigosas neste campo. Alguns caminham perto de um lado, alguns do outro; sim, a mesma pessoa algumas vezes esforça-se duramente em busca da perfeição, e em outras vezes se lança às bordas do abismo.
4. Não há na aliança da graça provisão de usual e permanente consolação para qualquer pessoa debaixo da culpa de grandes pecados, nos quais elas caíram por uma negligência em usar as condições mencionadas para abundarem na graça. Pecados há que, em razão da própria natureza deles que ferem e devastam a consciência, ou que pelos seus efeitos irrompem em escândalo, fazendo com que o nome de Deus e o evangelho sejam blasfemados, e em algumas das suas circunstâncias por encherem a alma de
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infidelidade contra Deus, privam-na da desejada consolação. Assim, pelo que significam, tais pecados vêm terrificar a consciência, quebrar os ossos da alma, colocá-la em trevas, e lançá-la em profundezas insondáveis, apesar do alívio que é provido pelo perdão do sangue de Cristo. Consequentemente Deus assume isto trazendo-o à sua inteira responsabilidade, como um ato de mera graça soberana, ao falar de paz e refrigério às almas dos seus santos nas profundezas deles de pecados embaraçosos. Is 57.18,19: “Tenho visto os seus caminhos, mas eu o sararei; também o guiarei, e tornarei a dar-lhe consolação, a ele e aos que o pranteiam. Eu crio o fruto dos lábios; paz, paz, para o que está longe, e para o que está perto diz o Senhor; e eu o sararei.”. E realmente, se o Senhor não tivesse feito tal provisão, esta grande provocação deveria ficar com falta de alívios especiais, e isto poderia ser temido justamente, que a negligência de crentes pudesse produzir possivelmente muitos frutos amargos.
Somente isto deve ser observado a propósito, que o que é falado relaciona-se ao senso dos pecadores em suas próprias almas, e não à natureza da própria coisa em si mesma. Há na consolação do evangelho provisão contra o maior como também o menor pecado. A diferença consiste na soberania de Deus e na comunicação disto, de acordo com a administração da aliança que foi feita conosco. Consequentemente, porque debaixo da lei de Moisés havia uma exceção feita para alguns pecados para os quais não havia qualquer
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sacrifício designado, de forma que aqueles que eram culpados deles não poderiam esperar de nenhum modo que pudessem ser justificados deles. Paulo fala aos judeus, em At 13.38, 39: “Seja-vos pois notório, varões, que por este se vos anuncia a remissão dos pecados. E de todas as coisas de que não pudestes ser justificados pela lei de Moisés, por ele é justificado todo o que crê.”. Não existe agora exceção de qualquer pecado particular para ser perdoado; porque o que nós falamos relaciona-se à maneira que agrada a Deus para administrar consolação às almas de pecadores crentes. Aqui vale ressaltar que era a aliança, a lei de Moisés em si que não continha nenhuma promessa de perdão e vida eternos. Mesmo os que viveram antes do período da aliança da lei, ou antiga aliança, como Noé, Abraão e outros que viveram pela fé, e aqueles que viveram durante o período da lei e que também foram justificados pela fé, como Moisés, Josué, Davi e outros, não o foram por conta das promessas daquela aliança, como já vimos, mas pela mesma misericórdia de Deus que salva pela fé desde que criou o homem e o fez multiplicar-se na terra.
Esta é a evidência que eu oferecerei para provar que as almas de crentes, depois de muita comunhão fiel com Deus, podem ainda entrar em profundezas insondáveis por causa do pecado.
Primeiro porque a natureza do pecado, como permanece no melhor dos santos nesta vida, evidenciará a nós que eles serão muitas vezes
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surpreendidos mergulhando nas profundezas mencionadas.
1. Entretanto a força de todo pecado pode ser debilitada pela graça, contudo a raiz de nenhum pecado será completamente arrancada nesta vida. A carne é como os cananitas teimosos, que, depois da conquista geral da terra da promessa, ainda residiam nela (Js 17.12 – “Contudo os filhos de Manassés não puderam expulsar os habitantes daquelas cidades, porquanto os cananeus persistiram em habitar naquela terra.”). Realmente, quando Israel ficou forte eles os fizeram tributários, mas eles não puderam expulsá-los totalmente. O reino e o governo pertencem à graça; e quando esta fica forte ela domina o pecado, mas ele não será expulso completamente. O corpo de morte não é lançado fora totalmente, mas somente pela morte do corpo. Na carne dos melhores santos não habita qualquer bem (Rom 7.18) porque o oposto está lá, isto é, a raiz de todo o mal: “o Espírito luta contra a carne” – Gál 5.17. Como, há então, uma universalidade nas ações do Espírito na sua oposição a todo o mal, assim também há uma universalidade nas ações da carne em sentido contrário.
2. Alguns resíduos da corrupção original obtêm tais vantagens, seja de natureza, costume, uso, sociedade ou circunstâncias semelhantes, que eles se tornam como os cananitas que tinham carros de ferro, que tornava uma coisa muito difícil subjugá-los. Bem, isto indica que a guerra deve ser mantida constantemente contra eles, porque eles quase sempre estarão em rebelião.
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3. O pecado entretanto debilita todas as suas propriedades. As propriedades de uma coisa seguem sua natureza. Onde a natureza de qualquer coisa está, ali também estão todas as suas propriedades naturais, e nós temos falado sobre as propriedades do pecado.
O prazer soberano de Deus em lidar com os pecadores santos deve ser considerado. O amor e sabedoria divinos não trabalham em todos da mesma maneira. Deus se agrada em continuar dando paz a alguns com um "não-obstante", mesmo com grandes provocações deles. O amor os humilhará e constrangerá, e a reprovação da bondade os recuperará dos seus extravios. A outros Lhe agrada trazer nas profundezas de que temos falado. E eles serão exercitados nestas profundidades, de onde o modo de libertação delas é colocado neste salmo. Assim, eu digo, e a experiência tem comprovado que Deus trata dos seus santos de variados modos; alguns terão todos seus ossos quebrados, enquanto outros terão somente golpes suaves de vara. Nós estamos na mão da misericórdia, e ele pode lidar conosco como bem Lhe parece.
Consideremos agora quais são os pecados que normalmente trazem os crentes em grandes angústias espirituais:
Primeiro, O PECADO na sua própria natureza que destrói a consciência é deste tipo; pecados que surgem em oposição em tudo a Deus que está em nós; isto é, a luz e natureza da graça também. Tais pecados são os que lançaram Davi nas suas profundezas; são os pecados citados em I Cor 6.9.10: “Não sabeis que os injustos não
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herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbedos, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.”. É certo que os crentes podem cair em alguns dos pecados aqui mencionados. Alguns os praticaram no passado, como está registrado. O apóstolo não diz quais cometeram quaisquer destes pecados, mas tais pecadores, não herdarão o reino de Deus; isto é, quem vive nestes pecados, ou qualquer semelhante a eles. Não há nenhuma provisão de misericórdia trazida a tais pecadores. Estes e pecados semelhantes que na sua própria natureza, sem a consideração de circunstâncias agravantes, podem mergulhar uma alma em profundezas. Estes pecados cortaram as fontes da força espiritual de homens; e é em vão para eles dizerem, "Nós iremos, e faremos como em outros tempos.". Ossos não são quebrados sem dor; nem grandes pecados deixaram a consciência sem problemas. Alguns dizem que eles privam verdadeiros crentes de todo seu interesse até mesmo no amor de Deus.
Há, entretanto, pecados que não surgem na consciência com uma tal culpa sangrenta como esses mencionados, contudo, por causa de algumas circunstâncias e agravantes, Deus os leva a aborrecer a alma todos os seus dias. Ele diz de alguns pecados de homens ímpios: "Tão certo como eu vivo, esta iniquidade não será tirada de você até que você morra. Se você chegar a esta
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altura, você não escapará. Eu não lhe pouparei.”. E há provocações em Seu próprio povo que pode ser assim tratado, e Ele não os deixará passarem antes de os lançar em profundezas, e os fará clamar por libertação. Consideremos algumas destas situações:
1. Falhas notáveis sob o amor e a bondade de Deus são deste tipo. Quando Deus tem dado a qualquer pessoa uma manifestação expressiva do Seu amor, convencendo-a disto, faz com que a pessoa diga no íntimo do seu coração: "Este amor e bondade são imerecidos.". Então se ele for negligente no seu caminhar com Deus, isto será uma ingratidão que não será esquecida. Isto foi observado como uma falha de Salomão, que o dominou depois de ter Deus aparecido a ele por duas vezes. E todos os pecados sob ou depois de misericórdias especiais recebidas de Deus, se encontrarão, uma vez ou outra, com repreensões especiais. Nada traz mais angústia à consciência de um pecador do que a recordação, em trevas, da luz abusada; em deserções, de amor negligenciado. Disto Deus os fará conscientes, como lemos em Os 7.13 e 13.4-7: “Ai deles! porque fugiram de mim; destruição sobre eles! porque se rebelaram contra mim. Quisera eu remi-los, mas falam mentiras contra mim.” (7.13), e “Todavia, eu sou o Senhor teu Deus desde a terra do Egito; portanto não conhecerás outro deus além de mim, porque não há salvador senão eu. Eu te conheci no deserto, em terra muito seca. Depois eles se fartaram em proporção do seu pasto; e estando fartos, ensoberbeceu-se-lhes o coração,
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por isso esqueceram de mim. Portanto serei para eles como leão; como leopardo espreitarei junto ao caminho;” (13.4-7). Deus está declarando aqui que não passaria por cima das ingratidões do seu povo, que o haviam esquecido depois de terem sido o alvo de demonstrações do Seu amor e bondade. Nabal pagou com o mal a bondade de Davi, e este disse que não poderia suportar isto.
2. Pecados debaixo de ou depois de grandes aflições também são deste tipo. Deus que não tem prazer em nos afligir, ou de nos castigar somente para seu prazer; Ele faz isto para nos fazer participantes da Sua santidade.
3. Quando o Senhor, pelo Seu Espírito convence o coração do pecado, e faz com que se descubra o Seu amor e as excelências de Cristo, de forma que isto começa a crescer e a ser dominado, quase sendo persuadido a ser um crente; então, se pela força do pecado ou da incredulidade, volta ao mundo ou à justiça própria, uma loucura como esta geralmente não passará em branco. Deus pode, e frequentemente faz, atuar a grandeza do Seu poder para recuperar uma tal alma; mas ainda ele lidará com ela sobre este desprezo do Seu amor e da excelência do Seu Filho, que foram voluntariamente rejeitados.
4. Esquecimento súbito de manifestações de amor especial. Deus acautela o Seu povo contra isto. Sl 85.8: “ Escutarei o que Deus, o Senhor, disser; porque falará de paz ao seu povo, e aos seus santos, contanto que não voltem à insensatez.”.
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5. Grandes oportunidades para servir negligenciadas e grandes dons não aperfeiçoados são frequentemente causa para mergulhar a alma em grandes profundezas. Os dons são dados para trabalhar para Deus. Oportunidades são os mercados daquele trabalho. Dons não exercitados enferrujarão. Deus deixa de receber honra e glória por causa de tais almas indolentes, e ele as fará conscientes disto.
6. Pecados depois de serem emitidas advertências especiais. Dentre todas as advertências especiais que Deus usa para os pecados dos santos, eu comentarei apenas uma: quando a alma está lutando com um pouco de carnalidade ou tentação, Deus opera pela Sua providência, através de alguma palavra especial, ou pregação do evangelho, ou a administração de alguma repreensão ou persuasão, no interior do coração. A alma não pode perceber que Deus está perto, que Ele está tratando com ela, e chamando-a a buscar a Sua ajuda. Mas se o cuidado e bondade dEle são negligenciados nisto, as Suas reprovações seguintes são normalmente mais severas.
7. Deus pode castigar o pecado de alguns no objeto de seus afetos, como se vê em II Sm 12.14: “Todavia, porquanto com este feito deste lugar a que os inimigos do Senhor blasfemem, o filho que te nasceu certamente morrerá.”. Muitos líderes dão pouca atenção ao seu mundanismo, orgulho, paixão, linguagem imoderada, e o evangelho é desonrado com isto. E não será nenhuma surpresa se eles receberem das mãos
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de Deus os frutos amargos do seu procedimento.
Há muitos outros tipos de pecados que podem mergulhar uma alma em profundezas, mas estes poucos citados bastam como exemplo.
Consideremos agora algumas agravantes destes pecados:
1. A alma é provida com um princípio de graça que opera e trabalha continuamente para preservá-la do pecado. A nova criatura está viva e ativa para seu próprio crescimento e segurança, de acordo com o teor da aliança da graça (Gál 5.17 - ”luta contra a carne”). Isto é naturalmente ativo para sua própria preservação e crescimento, como as crianças recém-nascidas têm uma inclinação natural à comida que as manterá vivas e as fará crescer. I Pe 2.2: “desejai como meninos recém-nascidos, o puro leite espiritual, a fim de por ele crescerdes para a salvação,”. A alma, então, não deve cair nestes pecados porque isto será uma alta negligência daquele princípio mesmo que lhe é dado para fins e propósitos bastante contrários. Agora, é de Deus, que procede a renovação da Sua imagem em nós, e a negligência deste Seu trabalho e cuidado, esforçando-Se para preservar as nossas almas, sempre está relacionada aos pecados de que estamos falando.
2. Considerando que esta nova criatura, este princípio de vida e obediência, não é capaz por si mesmo de preservar a alma de pecar como para trazê-la em profundezas, há uma provisão plena de suprimentos ininterruptos para isto em Jesus
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Cristo. Há tesouros de alívio em Cristo, em que a alma pode achar socorro contra as incursões do pecado, a qualquer hora. Ele diz à alma: "O pecado é meu inimigo não menos do que teu; isto que procura tirar a vida da tua alma, é também contra a minha. Aguente firme comigo, porque comigo tu estarás em segurança.”. Por isto o apóstolo nos exorta em Hb 4.16: “ Cheguemo-nos, pois, confiadamente ao trono da graça, para que recebamos misericórdia e achemos graça, a fim de sermos socorridos no momento oportuno.”. A nova criatura suplica, com suspiros e gemidos, que a alma se apegue a Cristo. Negligenciá-lo com toda sua provisão de graça, e Ele ainda está de pé nos chamando: "Abra a porta do seu coração para mim.”. Menosprezar o clamor da nova criatura, por causa do pecado, é uma grande provocação.
A próxima coisa que se oferece à nossa consideração é o comportamento de uma alma piedosa naquele estado ou condição. As palavras destes dois primeiros versos do Salmo 130 também declaram o comportamento da alma na condição que nós descrevemos; quer dizer, aquilo que a guia em busca de alívio: “Das profundezas clamo a ti, ó Senhor. Senhor, escuta a minha voz; estejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas.”.
Há nas palavras uma aplicação geral da tendência em busca de alívio; e deve ser considerado primeiro a quem a aplicação é dirigida; e esta é a Jeová. Deus forneceu aquele nome ao seu povo para confirmar a fé deles na estabilidade das Suas promessas (Êx 3).
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Na própria aplicação pode ser observado, primeiro, uma antropopatia, isto é, atribuição de sentimentos humanos a Deus. O salmista ora ao Deus que estaria com os seus ouvidos atentos à sua súplica.
Uma pessoa que está se afogando não precisa de nenhuma exortação para se esforçar para a sua própria libertação e segurança; porque ele fará isto instintivamente; e nas dificuldades espirituais, de certa forma, dar-se-á o mesmo, porque se esforçarão em tentativas para buscar alívio. Não buscar qualquer socorro em Deus somente fazem aqueles que são insensivelmente obstinados ou extremamente desesperados como Caim e Judas. Nós podemos supor, então, que o negócio principal de toda alma em profundezas é o esforço em busca de libertação. Eles não podem sossegar naquela condição em que eles não têm nenhum descanso. O salmista não se aplica a qualquer coisa mas a Deus. Um exemplo eminente disto nós temos em ambas as partes, como lemos em Os 14.3: “Não nos salvará a Assíria, não iremos montados em cavalos; e à obra das nossas mãos já não diremos: Tu és o nosso Deus; porque em ti o órfão acha a misericórdia.”. A aplicação deles na busca de Deus demandou a renúncia a todo outro modo de alívio.
Há várias coisas que os pecadores são hábeis para se aplicarem em busca de alívio nas perplexidades deles. Quantas coisas não inventaram os Romanistas para enganarem as almas! Enganam os fiéis e a si mesmos, com a mentira da intercessão dos santos e anjos, da
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virgem santificada, da madeira da cruz, confissões a sacerdotes, penitências, flagelações, peregrinações, cantos, purgatórios, perdões papais, e uma prática inumerável de coisas que não têm qualquer alívio para o pecador. A ineficácia destes meios levou a um descrédito de muitas mentes esclarecidas quanto à religião, e o perigo disto, é que tomando-se erroneamente a Igreja Romana como a única representante do cristianismo, considera-se então esta como uma religião de práticas místicas e ineficazes, e neste bojo a própria lei de Deus e o ensino da Sua Palavra foi jogado ao léu, e daí o mundo, especialmente o ocidental, ser cada vez mais materialista e irreligioso. As pessoas podem dizer que creem em Deus mas não têm qualquer temor dEle e dão total descrédito por recusarem ou desconhecerem o que está contido na Sua Palavra.
Desde a fundação do mundo que as almas dos homens, em procura de alívio, levaram suas mentes a serem exercitadas em sua ignorância de Deus a produzir toda a sorte de superstições diabólicas que se espalharam pela face do mundo inteiro. E o paganismo somente é destruído pelo poder e eficácia do evangelho. Mas, quando os homens pereceram no conhecimento espiritual da aliança da graça e do mistério do evangelho, o propósito do amor eterno e a eficácia do sangue de Cristo, eles criaram para si cisternas rotas que não retêm as águas, e foi desta forma que surgiu o papado e tudo o que é falso na doutrina da igreja de Roma.
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Assim, muitos dos que não conhecem a Cristo e a eficácia do Seu poder, quando estão em profundezas, esperam a sua cura da mesma mão que os feriu. Eles se voltam de seus caminhos, mas não para Deus. Esta era a vida do Judaísmo, como o apóstolo nos informa em Rom 10.3. E todos os homens debaixo da lei ainda são animados pelo mesmo princípio. Achando-se em profundezas, em angústias porque eles se levantam como se estivessem em condições iguais a Deus, e deste modo alguns gastam todos os seus dias; pecando e se emendando, e enquanto se emendam continuam pecando, sem chegar ao arrependimento e à paz
Mas os verdadeiros crentes agem diferente. Eles olham a si mesmos como órfãos. Eles esperam inteiramente na graça de Deus. Eles sabem que o arrependimento deles, as suas humilhações, os seus jejuns, as suas mortificações, não os aliviarão. Eles fazem tudo isto porque sabem que é este o seu dever, mas eles sabem que não é pela bondade e justiça deles que eles terão libertação. É Deus, eles dizem, com quem nós temos que resolver este negócio, e ouvir o que Ele nos tem a dizer.
Eles sabem que todo pecado é contra Deus, porque ofende a Sua justiça e santidade, e é somente Deus quem pode perdoar os seus pecados. E eles sabem que agora não é nenhum tempo para ser indolente. Buscas de Deus sombrias, frias, formais, habituais não servirão para a mudança. Ações ordinárias de fé, amor, fervor; deveres, não responderão a esta condição de profundeza. Fazer o ordinário agora
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é não fazer nada. Aquele que não puser mais força e atividade para a sua libertação quando estiver em profundezas, prestes a perecer, é como se não pretendesse escapar. Alguns em tais condições são descuidados e negligentes; eles pensam, em curso ordinário, eles desprezam o socorro de Deus.
Lemos em Cant 3.1-3: “De noite, em meu leito, busquei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o, porém não o achei. Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade; pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama a minha alma. Busquei-o, porém não o achei. Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; eu lhes perguntei: Vistes, porventura, aquele a quem ama a minha alma?”. A noiva tinha perdido a presença de Cristo, e assim estava na condição descrita no verso 1. Era noite, um tempo de trevas e desconsolação, e ela busca o Seu amado. Cristo estava ausente dela, e ela saiu em sua procura nas trevas daquela noite, naquelas profundezas. Ela tomou a resolução de sair em busca do amado e é assim que toda alma deve fazer quando estiver em profundezas. Deve tomar a iniciativa de buscar mesmo no sentimento de ausência do amor de Deus, ou do esforço que terá que fazer para encontrá-lo no meio das trevas em que a alma se acha envolvida.
Este esforço para curar as feridas da alma deve ser empreendido, senão elas se ampliarão até a morte. Os ferimentos do pecado devem ser tratados pelo Médico divino, mas Ele não operará se não for procurado. E esta procura é
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espiritual em oração e entrega do espírito ao Senhor. Davi conhecia bem este segredo, e nunca se permitiu ficar nas profundezas por motivo de indolência ou acomodação às enfermidades produzidas pelo pecado. Ele partia em busca de alívio e de cura nAquele que é o único competente para tratar com os males da alma. Sl 22.1-5: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? por que estás afastado de me auxiliar, e das palavras do meu bramido? Deus meu, eu clamo de dia, porém tu não me ouves; também de noite, mas não acho sossego. Contudo tu és santo, entronizado sobre os louvores de Israel. Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste. A ti clamaram, e foram salvos; em ti confiaram, e não foram confundidos.”.
O que aflige o homem? Ele não pode achar sossego nem de dia e nem de noite ? E ele tem que bramir e clamar a Deus? Sim, ele deve "rugir" assim como o salmista ? (Sl 6.;6; 32.3). Se a alma está em amargura; caída em profundezas; se o Senhor está ausente; se está cheia de ansiedade por causa do pecado; não há nenhuma tranquilidade e inteireza nele; e ele deve assim seriamente se empenhar em busca de alívio. Mas quão pouco deste espírito é achado entre nós. As pessoas se acomodam às suas amarguras e dificuldades. Elas não aprendem a andar sobre as águas e a estarem na fornalha com o coração firme por causa da sua busca incessante da face de Deus para alívio e socorro. E a razão para a ausência deste espírito que luta com Deus para obter paz é que nós
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damos mais valor ao mundo do que às coisas do céu. E isto é um tipo de incredulidade encoberta, oculta aos olhos dos santos, que os torna endurecidos pelo pecado sem que cheguem a ter consciência disto, esquecidos do primeiro amor e do gozo espiritual que experimentaram no início da conversão.
Veja o que Davi declara no Sl 4.6,7: “ Muitos dizem: Quem nos mostrará o bem? Levanta, Senhor, sobre nós a luz do teu rosto. Puseste no meu coração mais alegria do que a deles no tempo em que se lhes multiplicam o trigo e o vinho.”. Ele estava mais preocupado com a luz do semblante de Deus do que os homens do mundo poderiam estar com o seu trigo e vinho.
Se os homens do mundo não valorizam as coisas espirituais, os crentes sabem que elas valem mais do que a vida porque:
Eles têm uma luta espiritual em seu interior pela qual eles podem discernir a verdadeira natureza do pecado e da ira de Deus, mesmo quando eles supõem terem perdido agora a luz confortante do Espírito, contudo eles nunca perderão a luz santificadora do Espírito, a luz por meio da qual lhes é permitido discernirem as coisas espirituais de uma maneira espiritual. Por isto eles veem o pecado excedendo o pecador. Rom 7.13: “Logo o bom tornou-se morte para mim? De modo nenhum; mas o pecado, para que se mostrasse pecado, operou em mim a morte por meio do bem; a fim de que pelo mandamento o pecado se manifestasse excessivamente maligno.”. E assim eles tem o temor de Deus. II Cor 5.11: “Portanto,
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conhecendo o temor do Senhor,”. Hb 10.39,31: “Pois conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu retribuirei. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo.”.
Uma recuperação das profundezas é como uma nova conversão. O Espírito Santo dá às almas um senso renovado para que se apliquem no propósito de buscar a Deus. O trabalho inteiro é dele. Mas há algumas coisas que devem ser consideradas para que se chegue a esta condição:
Primeiro, há uma consideração ininterrupta sobre a condição triste em que a alma se encontra em profundezas, e estando grandemente afetado com a sua condição, ele está meditando e ponderando continuamente sobre isto em sua mente. Assim Davi declara no Sl 38.2-8: “Porque as tuas flechas se cravaram em mim, e sobre mim a tua mão pesou. Não há coisa sã na minha carne, por causa da tua cólera; nem há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado. Pois já as minhas iniquidades submergem a minha cabeça; como carga pesada excedem as minhas forças. As minhas chagas se tornam fétidas e purulentas, por causa da minha loucura. Estou encurvado, estou muito abatido, ando lamentando o dia todo. Pois os meus lombos estão cheios de ardor, e não há coisa sã na minha carne. Estou gasto e muito esmagado; dou rugidos por causa do desassossego do meu coração.”. Inquietação, reflexão profunda, desassossego de coração, peso ininterrupto na alma, tristeza e ansiedade de mente, repousam
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no fundo das aplicações a que nos referimos para que se ache em Deus libertação das profundezas. E Davi acrescenta no verso 9: “Senhor, diante de ti está todo o meu desejo, e o meu suspirar não te é oculto.”.
Nós vemos que a própria busca de Deus é feita pela oração da fé. Hb 5.7 diz que quando nosso Salvador estava nas suas profundezas por causa dos nossos pecados ele se “ofereceu nos dias da sua carne com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas ao que podia livrar da morte, tendo sido ouvido por causa da sua reverência”. “Grande clamor e lágrimas”, é o mesmo que “Gritos fortes e lágrimas" e expressam a intensidade extrema de espírito. E Davi expressou isto "rugindo", como nós vimos antes; como também "suspirando, gemendo, e bramindo.". Isto é Importunidade. O poder da importunidade da fé que Jesus nos ensinou em Lc 11.5-10 e 18.1. A oração importuna está prevalecendo certamente; e a importunidade é, composta destas duas coisas: frequência de interposição e variedade de argumentos. Você terá um homem que é importuno vindo a você sete vezes no dia para tratar do mesmo assunto; e não importa o que aconteça, ele virá novamente até que seja atendido. E não há nada que se relacione ao assunto que ele não use como argumento. Vemos isto no Sl 86.3: “3 Compadece-te de mim, ó Senhor, pois a ti clamo o dia todo.”. Isto significa não dar a Deus nenhum descanso, que é o mesmo caráter da importunidade, como se vê em Is 62.6,7: “e Jerusalém, sobre os teus muros pus atalaias, que
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não se calarão nem de dia, nem de noite; ó vós, os que fazeis lembrar ao Senhor, não descanseis, e não lhe deis a ele descanso até que estabeleça Jerusalém e a ponha por objeto de louvor na terra.”.
Davi usava todos os tipos de argumentos em suas orações. Ele apelava à fidelidade, justiça, nome, misericórdia, bondade de Deus, ele menciona os amigos e os inimigos de Deus, a sua própria fraqueza e desamparo, até mesmo a grandeza do seu pecado. Ele começa com um argumento e se desvia para outras considerações conforme sugerido pelo Espírito.
A constância também flui da intensidade. Uma tal alma não se entregará até que obtenha o seu objetivo. E este é em geral o comportamento de uma alma piedosa na condição aqui representada a nós no Salmo 130.
Os crentes amam a paz assim como eles amam as suas almas. E qual é então a razão de muitos não verem um dia bom em toda a sua vida ? Não é em razão na maior parte dos casos resultantes da indolência de espírito? Se vocês não cingirem os seus lombos e mentes quando lidarem com Deus, e irem a Ele de tempo em tempo, começando e cessando, tentando e desistindo, contentando-se com o que é usual e ordinário em suas buscas habituais de Deus, não se admirem se forem encontrados murchos e inúteis, subindo e descendo em suas perplexidades. Davi não agia assim; mas depois de muitas e muitas brechas feitas pelo pecado, contudo, por ações rápidas, vigorosas, inquietas de fé, tudo foi consertado, de forma que ele
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viveu em paz e morreu triunfalmente. Para cima, então, em busca da cura, e não permita que suas feridas se degenerem por causa de sua insensatez. Faça o trabalho completo que está diante de você; seja ele longo ou difícil, deve ser feito.
VERSÍCULO 3
“Se tu, Senhor, observares as iniquidades, Senhor, quem subsistirá?”.
O salmista apresenta aqui o seu primeiro argumento diante de Deus na expectativa de que Ele o livre das suas profundezas.
"Se tu, SENHOR." Ele aqui usa um outro nome de Deus que é Jah; um nome, entretanto da mesma raiz do anterior, contudo raramente usado; um nome íntimo que expressa a tremenda majestade de Deus: "Cantai a Deus, cantai louvores ao seu nome; louvai aquele que cavalga sobre as nuvens, pois o seu nome é Jah; exultai diante dele.” (Sl 68.4). Ele deve lidar agora com Deus sobre a culpa do pecado; e Deus é representado à alma como grande e terrível, que ele pode saber o que esperar e procurar, se o assunto deve ser tratado de acordo com o demérito do pecado. O que, então, diz ele para JAH?: “Se tu observares as iniquidades”. No hebraico é observar e manter em custódia segura; preservar, e assistir diligentemente; retendo o que é observado, e ponderando o que observou no coração. Em Gên 37.11 Jacó "observou" o sonho de José; quer dizer, ele reteve
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o sonho na sua memória, e ponderou sobre isto no seu coração.
A observação de iniquidades, então, aqui referida, significa Deus considerando-as e reservando-as para castigo e vingança. Porque Deus sempre retribui o pecado não perdoado. A Ele pertence a vingança no sentido de fazer justiça aos injustiçados, ou a Si mesmo pelo fato de ser ofendido pelo pecado. Por isso o salmista teme a Deus e não usa o seu argumento para justificar o seu erro, tanto que no verso seguinte (4) ele apela para o perdão divino. E ela apela para isto sabendo e conhecendo que Deus é misericordioso, especialmente para aqueles que se arrependem de seus pecados e os abandonam, e além disso promete curá-los de suas transgressões. É confiado nesta verdade relativa ao Deus que se revelou a Abraão e Moisés que o salmista afirma a sua condição de pecador ao lado da condição de Deus que perdoa o pecado.
Mas ai daqueles que não confessam os seus pecados e os deixam, porque Deus é totalmente contra o pecado. Negar isto seria negar a Sua santidade e justiça, e assim a Sua própria existência. Mas há um dia designado, em que todos os homens do mundo saberão que Deus soube e tomou conhecimento de tudo e de todos os pecados secretos deles. Deus não é como o homem. Ele é onisciente. Cada mínimo detalhe da criação está para sempre patenteado diante dEle. Tudo está registrado num conhecimento absoluto e completo que não se pode imaginar. Os bilhões de dados que os homens armazenam
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nas memórias de computadores é menos do que uma pálida ideia do poder de Deus não apenas para manter em registro, como também em conhecer e governar todas as coisas. Nada escapa do seu controle. O salmista estava plenamente convencido disto pelas demonstrações dadas por Deus no passado deste seu poder incomensurável. Tudo o que há em nós, mesmo em nossos pensamentos e imaginação está completamente aberto e nu diante dEle. Assim nenhum pecado é escondido dEle; todos os segredos estão diante da luz do Seu semblante. Tudo é registrado por Ele. E há um desgosto contra todo pecado, que é inseparável da natureza de Deus, por causa da Sua santidade. E isto está declarado na pregação da lei, que é igual para todos os homens do mundo. Mas o registro aqui mencionado é aquele que está sob uma tendência de repreensão e castigo, de acordo com o teor da lei. E o salmista sabendo do rigor da lei, afirma que se Deus registrar e ponderar o pecado, como certamente o fará, não há como o pecador subsistir. Ele não pode triunfar de modo nenhum com o seu pecado quando for submetido ao juízo divino.
Quem poderia estar de pé com o seu pecado perante o Juiz de toda a terra? Quem aguentaria e suportaria a tentativa? Todos nesta suposição têm que perecer, e isso eternamente. Este é o deserto do pecado, e a maldição da lei que é a regra disto que registra o que é devido à iniquidade deles. E há uma ênfase notável na interrogação que contém a maneira da
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conclusão. "Quem poderia estar?". Ninguém pode aguentar a tentativa, e escapar sem ruína perpétua; por isso a interrogação é indefinida; não, "Como posso eu? Mas, “Quem poderia estar?". Conhecendo isto claramente, Pedro afirma: “Porque já é tempo que comece o julgamento pela casa de Deus; e se começa por nós, qual será o fim daqueles que desobedecem ao evangelho de Deus? E se o justo dificilmente se salva, onde comparecerá o ímpio pecador?” (I Pe 4.17,18). E lemos no Sl 1.5: “Pelo que os ímpios não subsistirão no juízo, nem os pecadores na congregação dos justos;”. A razão disto é que Deus não pode inocentar o culpado. Ele não pode dizer que está certo aquilo que está errado. Ele é o Deus que não pode mentir. Então, se alguém é livrado do juízo do pecado é porque foi perdoado por Deus.
Nesta altura cabe tecer uns poucos comentários sobre o temor e respeito que se deve ter pela lei de Deus, mesmo estando numa nova aliança que é pela graça. Todos os autores do Novo Testamento sabiam disto e afirmam isto, portanto é muito estranho o ensino de alguns que pensam que em razão do evangelho que nos trouxe a graça que é pela fé, já não há porque mais temer e observar a lei. Quando o Novo Testamento fala do terror que a lei produziu nos crentes do Velho Testamento, especialmente quando Deus se manifestou no Sinai entregando a lei a Moisés, a força do argumento é que assim como eles temeram ao Senhor pelo conhecimento da Sua vontade pela lei, o mesmo temor deveria também ser encontrado em nós
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para que o adoremos e sirvamos de modo reverente e santo.
Na verdade, quando nos falta esta devida consideração sobre o modo como Deus vê o pecado, este é o principal fator para que não vivamos em santidade de vida. Desconsiderar o pecado conduz a negligenciar a necessidade da busca de cura em Deus.
Adão foi o primeiro a ter ocasião para ter pensamentos sérios sobre Deus em relação ao pecado, e nos dá um exemplo notável do que nós afirmamos; porque em Gên 3.8-10 lemos que ele ouviu a voz do Senhor e se escondeu. Ele viu a sua nudez por causa do pecado e teve medo. Medo de enfrentar o Deus santo e justo que o havia criado e lhe ordenado que O obedecesse. Ouvir a voz de Deus fazia parte da sua bem-aventurança, da sua comunhão com Deus, mas agora com a consciência manchada pelo pecado, em vez de alegria e paz, aquela voz lhe deu temor. E ele procurou se justificar do seu pecado em vez de chorar, clamar, arrepender-se nas suas profundezas, para obter o perdão de Deus. Em vez de se apresentar ao Seu Criador assumindo a sua culpa, ele tentou se esconder, como que para esconder também a sua culpa, mas sabia que isto era impossível, mas assim mesmo tentou se esconder de Deus. E as coisas ficaram alteradas agora para ele. Aquele Deus que ele amou antes como um Criador bom, santo, poderoso, íntegro, preservador, benfeitor, e recompensador, ele não viu nada agora senão ira, indignação, vingança, e terror. Isto o fez tremer e proferir aquelas palavras
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terríveis: “Ouvi a tua voz no jardim e tive medo, porque estava nu; e escondi-me.”.
E Deus quer e requer que este temor dEle em razão do pecado nos acompanhe toda a nossa vida, para que seja efetiva e sincera a nossa busca da Sua graça e perdão quando pecamos. Por isso Ele deu primeiro a Lei, a aliança da Lei, e não a Aliança da graça. Primeiro o temor, depois o perdão. E o salmista coloca isto em perspectiva no Salmo 130, revelando que tinha conhecimento desta verdade e necessidade. Ele afirma no verso 3 que ninguém poderia subsistir diante do Senhor em razão do pecado, demonstrando que há uma devida consideração da parte de Deus de cada uma de nossas faltas, e que isto é para ser temido por nós, porque há um julgamento pairando sobre todas elas. De um modo ou de outro Deus julga a todas, mesmo no seu povo na nova aliança em que as tem perdoado em Cristo para efeito de não haver mais condenação futura, mas para a correção a que todo filho está sujeito.
E como veremos adiante na análise do versículo quarto do Salmo 130 que o salmista concilia o perdão de Deus ao temor que lhe é devido.
Todo filho de Deus será devidamente instruído por Ele no tempo próprio acerca destas coisas. E o fato dEle não levar em conta os tempos da sua ignorância não serve portanto de pretexto para que muitos desconsiderem o temor que Lhe é devido e o cuidado que devem ter em relação ao pecado, por conta de pensarem que Deus é tão gracioso que não leva em conta o pecado dos crentes porque demonstrou tão grande
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misericórdia e graça quando os perdoou em Cristo a par da grande ignorância da maior parte deles quanto ao modo como Deus vê o pecado.
Em Êx 20.18,19 vemos que o propósito de Deus em trazer o temor com a Lei foi alcançado: “Ora, todo o povo presenciava os trovões, e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte a fumegar; e o povo, vendo isso, estremeceu e pôs-se de longe. E disseram a Moisés: Fala-nos tu mesmo, e ouviremos; mas não fale Deus conosco, para que não morramos.”. Temor dEle e do pecado, mas não apenas isto como um fim último em si mesmo, mas para poder ser obedecido e amado, porque sem que isto venha primeiro, não é possível ter comunhão com Deus que é inteiramente justo e santo. Por isso Hb 12.14-25 coloca de novo em realce este papel da lei e demonstra que dos crentes da nova aliança se exige maior diligência para que vivam em santidade, do que os crentes da primeira aliança: “Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor, tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem; e ninguém seja devasso, ou profano como Esaú, que por uma simples refeição vendeu o seu direito de primogenitura. Porque bem sabeis que, querendo ele ainda depois herdar a bênção, foi rejeitado; porque não achou lugar de arrependimento, ainda que o buscou diligentemente com lágrimas. Pois não tendes chegado ao monte palpável, aceso em fogo, e à escuridão, e às trevas, e à
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tempestade, e ao sonido da trombeta, e à voz das palavras, a qual os que a ouviram rogaram que não se lhes falasse mais; porque não podiam suportar o que se lhes mandava: Se até um animal tocar o monte, será apedrejado. E tão terrível era a visão, que Moisés disse: Estou todo aterrorizado e trêmulo. Mas tendes chegado ao Monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, a miríades de anjos; à universal assembleia e igreja dos primogênitos inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados; e a Jesus, o mediador de um novo pacto, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel. Vede que não rejeiteis ao que fala; porque, se não escaparam aqueles quando rejeitaram o que sobre a terra os advertia, muito menos escaparemos nós, se nos desviarmos daquele que nos adverte lá dos céus;”. Veja que mostra que há um maior rigor para nós do que para eles, apesar de estarmos justificados do pecado em Cristo e livrados da condenação futura. Ele quer mostrar que Deus não mudou na sua forma de ver o pecado, e que Ele trata conosco, ainda que não nas mesmas bases da primeira aliança, mas com a mesma seriedade exigida pela Sua justiça e santidade. Ele não pode fazer vista grossa ao pecado. E aquele que pecar sofrerá o dano devido, se este não for perdoado. É isto que o autor de Hebreus quer enfatizar e nos ensinar. O pecado deve ser levado a sério porque é assim que Deus trata com o pecado em todas as suas formas. Ele odeia o pecado e o tem destinado à destruição pela morte de Cristo. E como alguém poderia viver
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como um crente, desconsiderando a importância de um viver realmente santo que não dá trégua à luta contra o pecado?
É bom recordar que logo no início do seu ministério terreno Jesus fez questão de ressaltar que não havia vindo para revogar a lei e os profetas, antes, para cumprir. E destacou que aquele que transgredisse o menor dos mandamentos da lei seria considerado mínimo no reino dos céus. Ora Ele estava falando de crentes verdadeiros, de pessoas que seriam salvas apesar de transgredirem a lei, mas isto seria devidamente considerado por Deus de modo que seria considerado mínimo no reino.
Isso porque a lei cumpre um papel importante nos propósitos de Deus de produzir em nós temor e tremor pelo conhecimento da Sua vontade revelada. Por isso ela é uma lei de fogo como se diz em Deut 33.2: “Disse ele: O Senhor veio do Sinai, e de Seir raiou sobre nós; resplandeceu desde o monte Parã, e veio das miríades de santos; à sua direita havia para eles o fogo da lei.”. E ainda tudo isso respeita à severidade da lei em geral, sem a aplicação disto a qualquer alma em particular. E esta lei ainda está em vigor para pecadores, até mesmo como estava no dia em que foi determinada no monte Sinai.
Consideremos como Deus marcou o peso em razão do pecado no próprio Cristo. Ele que nunca cometeu qualquer ofensa e em quem nunca houve qualquer pecado. Que cumpriu toda a justiça e em quem o Pai se comprazia em todas as coisas. Mas quando a alma dele foi
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exercitada com os pensamentos de Deus sobre as nossas iniquidades nele, ele ficou "triste até a morte." Ele estava como se diz em Mc 14.33,34: “E levou consigo a Pedro, a Tiago e a João, e começou a ter pavor e a angustiar-se; e disse-lhes: A minha alma está triste até a morte; ficai aqui e vigiai. E adiantando-se um pouco, prostrou-se em terra; e orava para que, se fosse possível, passasse dele aquela hora.". Em sua agonia Ele suou sangue, e os fortes gritos dEle e súplicas, e as suas orações reiteradas para que fosse passado dEle aquele cálice, culminou com o seu brado “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. E todas estas apreensões dEle foram devidas ao fato de Deus estar tratando com Ele acerca das nossas iniquidades. Agora, se o próprio Filho de Deus sentiu e tremeu debaixo do peso disto, como podemos nós miseráveis pecadores acharmos que podemos dizer a Deus que mesmo em pecado estaremos de pé ?
Ainda que debaixo da graça de Cristo, a alma deve ver Deus como o grande legislador (Tg 4.12), capaz de destruir o corpo e a alma no fogo do inferno; sendo tremendo em santidade, de tão puros olhos que não pode ver a iniquidade; grande também em poder, o Deus vivo, em cujas mãos há justiça vingativa (Hb 10.30). Isto deve nos levar a não somente valorizar a Jesus como nosso Salvador e também Mediador que intercede em nosso favor junto do Pai, tal como um Advogado perante um Juiz. E devemos valorizar muito o amor e misericórdia do Pai que deu o Filho para ser castigado em nosso lugar,
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em razão da culpa dos nossos pecados. Quão grande amor e misericórdia estão presentes ao lado da justiça que determina a morte do pecador. E Deus cumpriu para os que creem a exigência desta justiça fazendo com que Cristo morresse na cruz. O pecador nada fez para que merecesse tão grande perdão, mas a graça lhe foi concedida porque aprouve a Deus que fosse assim. Não para abrandar a Sua ira contra o pecado, mas exatamente para exibi-la em toda a Sua profundidade, porque levou-O a castigar o pecado nAquele que lhe é mais caro, Jesus, Seu amado Filho. O pecado é um assunto tão sério aos olhos de Deus que para ser tratado exigiu a morte do próprio Cristo. É impossível não entender uma mensagem tão clara e definitiva sobre o modo como Deus considera seriamente o pecado.
Sem Cristo, ninguém pode ficar de pé diante do juízo de Deus, e isto foi reconhecido por Davi, que não há nada no homem que possa justificá-lo dos seus pecados. E tão imensa é a sua dívida para com Deus que nada poderia pagá-la senão o ato perfeito de substituição de Cristo no lugar do pecador na cruz. Sl 143.2: “Não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não há justo nenhum vivente.”.
Por isso Paulo diz em Rom 3.20 e Gál 2.16, que pelas obras da lei ninguém será justificado diante de Deus, porque é exatamente pela lei que temos o pleno conhecimento do pecado, isto é, ficamos sabendo como somos pecadores e como não há como escapar da ira de Deus que se manifesta em razão do pecado, a não ser pela
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demonstração da Sua graça e misericórdia em nos perdoar, sem que deixe no entanto de considerar o pecado, porque a base para este perdão, tanto a nós quanto aos que viveram antes da nova aliança sempre foi e será a morte de Jesus na cruz, que pagou o preço pelos nossos pecados, de modo que Deus pode perdoar os pecados daqueles que se arrependem.
E isto é importante de ser guardado na memória, que não há perdão sem arrependimento. Mesmo para os que são de Cristo, quando não se arrependem de pecados contra um irmão, e não se arrependem devem ser considerados como gentios e publicanos, isto é, devem ser excluídos da comunhão visível dos santos, até que se arrependam. Com isto, o Senhor revela claramente que Deus não mudou o modo de ver o pecado. Ele continua sendo uma abominação diante dos seus olhos. Ele cura e quer curar do pecado, trazendo salvação e vida, mas isto é somente para aqueles que se arrependem e creem no evangelho.
A forma como Deus agiu na vida de Sansão mostra claramente como Ele vê e trata com o pecado dos seus servos. E não somente em Sansão, mas no próprio Davi, Jonas, Uzias, Ananias e Safira e em tantos outros, cujos exemplos ficaram registrados na Bíblia para advertir-nos e alertar-nos para que tenhamos o temor do Senhor e de permanecer no pecado, para que não sejamos sujeitados aos mesmos juízos temporais e castigos visando à nossa correção.
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Deus é Pai, mas um Pai extrema e infinitamente zeloso. Ele não é como um pai humano, que no melhor, é sempre descuidado e não acompanha todas as faltas de seus filhos para corrigi-los. Mas nada escapa dos olhos de Deus na condição de nosso Pai. Ele poderá até mesmo sujeitar-nos ao castigo extremo que é a morte física em razão do pecado.
Por isso é necessário ter um senso sincero do pecado. E nesta sinceridade devemos reconhecer a nossa culpa no que fazemos, deixamos de fazer ou pensamos, e sem este auto exame e julgamento em razão do pecado não podemos contar com uma confissão sincera que nos habilite ao perdão de Deus. A condição para o nosso perdão é a confissão. Sem confissão não pode haver perdão. Sem a confissão ficaríamos insensíveis e faríamos pouco caso do pecado. Mas ao termos que declarar as nossas faltas e culpa reconhecemos que Deus é santo e exige santidade de nós. E tratamos o pecado com a devida seriedade com que deve ser tratado.
Agora, não podemos fazer a devida apreciação dos nossos pecados sem o auxílio do Espírito Santo. Ele é a causa eficiente e principal disto porque é o Espírito Santo que convence do pecado (Jo 16.8). Ele pode usar meios para isso, como o profeta Natã no caso de Davi. O olhar de Cristo no caso de Pedro, mas o trabalho é dEle, e nenhum homem pode trabalhar na sua própria alma. A pessoa pode exercitar os seus pensamentos sobre tais coisas, como quanto ao que seria necessário para quebrar o seu coração de pedra, contudo se o Espírito Santo não
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operar, este senso de pecado não será forjado ou produzido.
Embora um crente esteja menos debaixo do poder da lei, para efeito de juízos, do que outros, contudo ele sabe mais da autoridade e natureza da lei do que outros; ele vê mais de sua espiritualidade e santidade. É quem mais vê a excelência da lei, e quem mais vê a vileza do pecado. E muito se aprende disto por experiência própria com as profundezas em que se encontrará em razão do pecado, e como a graça operará abundante quando houver confissão e reconhecimento sincero do pecado.
Pensamentos de pecar contra o amor de Deus, administrados pelo Espírito Santo; produzem um efeito benéfico quanto à busca de libertação das profundezas em que se encontra a alma. Pensamentos de amor e pecado se encontrados juntos fazem a alma se ruborizar, lamentar, e ficar envergonhada. Vemos isto em Ez 36.30,31.
Os crentes são participantes da comunhão e consolações do Espírito Santo, com todos os privilégios e frutos decorrentes disso. Mas o Espírito é afligido pelo pecado (Ef 4.30; I Cor 3.17; 6.19). Ao pecar o crente deve lembrar que ele está entristecendo o Espírito Santo, e isto deve servir também para constrangê-lo em seu coração a dar a devida atenção ao problema do pecado.
Se o pecado é uma realidade e nos acometerá, também é uma realidade que devemos abrir o nosso coração e boca para confessá-lo e assim expulsá-lo. Consideremos o que ocorreu com Davi, conforme ele mesmo relata no Sl 32.3:
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“Enquanto calei os meus pecados, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos, todo o dia.”. Como Davi podia manter silêncio e ainda rugir o dia inteiro? É uma mera negação do dever expressado no verso 5: “Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: Confessarei ao Senhor as minhas transgressões, e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.”. O silêncio de Davi era em relação ao reconhecimento da sua culpa. Ele rugiu o dia todo. Ele pediu para ser livrado das profundezas em que se encontrava a sua alma. Ele estava com o seu vigor enfraquecido, esgotado. Mas ele não tinha sido capaz ainda de trazer o seu coração àquele reconhecimento franco da sua culpa, e não estava disposto a lancear a ferida inflamada. Mas enquanto não se dispôs a isto, não pôde experimentar a cura e a libertação.
A mesma natureza pecaminosa que herdamos de Adão que o levou a tentar esconder de Deus o seu pecado, por vergonha, também opera em nós. E somente o Espírito Santo pode nos libertar desta vergonha e medo que nos leva a esconder de Deus as nossas faltas e a nos dar o poder para confessá-las com espírito contrito e quebrantado. Por isso Paulo diz que onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade (II Cor 3.17). Quando Davi foi livrado pelo Espírito do seu silêncio, ele expressou esta condição no desempenho do seu dever de confessar o pecado (Sl 32.5). A boca dele estava agora aberta, e o seu coração se dilatou.
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Mas devemos lembrar que pecados ocultos arruínam a confissão. Se a alma tem qualquer pensamento secreto que é contrário à vontade de Deus, e assim mesmo nos aplicamos a confessar outros pecados a Deus, deixando que permaneça intacta aquela raiz de amargura, favorecendo qualquer cobiça ou pecado, ou mesmo uma tentação para pecar, ainda que nos sintamos livres para abrir a nossa boca diante de Deus reconhecendo todos os demais males e pecados, a nossa atitude será uma abominação aos olhos de Deus. É possível que se esteja buscando somente alívio do desconforto das profundezas, mas não a cura do nosso mal. Aqui também se inclui o caso citado por Tiago: “Não pense o tal homem que receberá alguma coisa de Deus.”.
E de tal importância é o desempenho correto deste dever, não somente pelo conhecimento, mas principalmente pelo espírito correto, que a promessa de perdão é peculiar e frequentemente relacionada a isto (Pv 28.13; I Jo 1.9; Jó 33.27,28; II Cr 7.14). Ele não somente será feito participante do perdão, mas também da consolação e alegria na luz da face de Deus.
A tristeza pelo pecado, quando a alma está completamente desagradada consigo mesma, é absolutamente essencial para a manifestação do favor de Deus. Por isso Paulo declara em II Cor 7.10,11: “Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento para a salvação que a ninguém traz pesar, mas a tristeza do mundo produz morte. Porque quanto cuidado não
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produziu isto mesmo em vós que segundo Deus fostes contristados! “.
Este auto julgamento em relação ao pecado com vistas a detectá-lo e confessá-lo é recomendado por Paulo em I Cor 11.31: “Porque se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados.”. Caso houvesse um reconhecimento e confissão do pecado isto traria o perdão de Deus em Cristo. Mas como não houve tal autojulgamento o crente permaneceu sujeito à disciplina de Deus porque não houve confissão e por conseguinte perdão. E daí Paulo dizer no verso seguinte: “Mas quando julgados somos disciplinados pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo.”.
Nada pode fazer com que a graça seja gloriosa até que a alma venha a esta condição. A graça não será elevada até que a alma seja rebaixada. E isto também prepara a alma de certo modo para a recepção de misericórdia e perdão. Isto traz a alma a esperar com diligência e paciência. E temos apontado as condições que fazem uma alma piedosa subir de suas profundezas. Nós temos uma recuperação notável citada em Os 14.1-3: “Volta, ó Israel, para o Senhor teu Deus; porque pelos teus pecados estás caído. Tende convosco palavras de arrependimento, e convertei-vos ao Senhor; dizei-lhe: Perdoa toda iniquidade, aceita o que é bom, e em vez de novilhos os sacrifícios dos nossos lábios. A Assíria já não nos salvará, não iremos montados em cavalos, e não mais diremos à obra das nossas mãos: Tu és o nosso Deus; por ti o órfão alcançará misericórdia.”. E isto dá lugar à
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exaltação da graça, a grande coisa em tudo isso da dispensação apontada por Deus em Ef 1.6: “para louvor da glória de sua graça,”, de modo que alma se glorie apenas no Senhor (I Cor 1.31).
A alma não será quebrada no estado antes descrito. Há outro trabalho a ser feito para vir a ter descanso e paz. Há dois males que geralmente acontecem depois de nos reconhecermos culpados e obtermos o perdão de Deus através da confissão do pecado. Alguns descansam nisto, e não se esforçam para prosseguir adiante, e supõem que isto é tudo o que é requerido deles.
É preciso permanecer em constante dependência do Senhor e ir a Ele continuamente para obter paz e descanso. Não devemos pensar que podemos aguentar por nós mesmos, sendo insensíveis abrigando pensamentos de falta de confiança em Deus, ou de que Ele seja muito duro e austero. Isto lançará a alma em novas reclamações que poderão conduzi-la a novas profundezas. A alma deve se deleitar em Deus alegrando-se na comunhão com Ele, e deve aprender a ser-Lhe grata por todos os Seus benefícios, reconhecendo-os em tudo o que lhe sucede, que está cooperando para o seu bem.
Nós não devemos apenas ser justificados e regenerados, mas devemos nos gloriar em Cristo (Is 45.25). Se a alma não descansa e tem paz em Deus isto não traz nenhuma glória a Cristo, que morreu por nós para que tivéssemos paz com Deus e refrigério em nossa alma pela doce comunhão com o Espírito Santo.
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Cristo é o único descanso de nossas almas; em qualquer coisa, para qualquer fim ou propósito. Não é bastante que nós sejamos os "prisioneiros da esperança", mas nós temos que estar no nosso lugar seguro (Zac 9.12). Não é bastante que nós estejamos "cansados e sobrecarregados", nós temos que vir a Ele (Mt 11.28-30).
Assim chegamos ao versículo 4 do Salmo 130 onde falaremos mais detidamente sobre o perdão do pecado.
VERSÍCULO QUATRO
“Contigo, porém, está o perdão, para que sejas temido.”.
Primeiro, Isto expressa a prontidão de Deus para perdoar (Sl 86.5). Em segundo lugar considera o ato de perdoar (Sl 103.3).
E esta é a palavra que Deus usou na promessa de perdão da nova aliança em Jer 31.34.
É uma palavra de extensa significação. É uma palavra de favor, de propiciação, ou graça.
O coração sincero vai a Deus porque sabe que Ele é Deus de misericórdia, que está pronto a perdoar. Não somente na Palavra vemos os vários exemplos deste perdão concedido a grandes pecadores, especialmente em casos de conversão, como também vemos isto ao longo da história da igreja e ainda em nossos dias, quando tantos grandes transgressores são totalmente perdoados e aceitos por Deus, dando provas da Sua grande misericórdia e prontidão para perdoar pecados.
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É em face de tão grande disposição para ser misericordioso e perdoador que se considera uma grande ofensa recusar o perdão que está sendo oferecido gratuitamente em Cristo. E isto será devidamente considerado em juízo.
Como já dissemos todo perdão está fundado em propiciação. E somente a propiciação de Jesus Cristo é a única e efetiva que é a base de todo o perdão concedido por Deus (Rom 3.25; I Jo 2.2).
Agora, sobre o lugar que estas palavras desfrutam neste salmo, e a relação delas para com o estado e condição da alma aqui mencionados, indicam a importância delas:
"Oh Deus, embora o perdão seja concedido, sei que tu marcaste as iniquidades de acordo com o teor da lei, e todo homem tem que perecer, e isto para sempre; ainda há esperança para minha alma que embora esteja nas profundezas do pecado, pode achar aceitação em Ti: porque eu estou pondo minha boca no pó, nesse caso pode ser que haja esperança, eu acho que há uma compensação, uma propiciação feita pelo pecado, porque tu és amoroso, misericordioso e pronto a perdoar.”.
As palavras seguintes à primeira parte do versículo: “para que sejas temido.”. , ou, “para que te temam”, estão livres no original de qualquer ambiguidade, e significam “para que tu possas ser temido”.
Era com base no “temor do Senhor” que no Velho Testamento, era instituída toda a adoração de Deus, e toda moral e obediência que nós devemos a Ele
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Tudo o que nós devemos fazer em relação a Deus, deve ser executado com reverência e temor religioso. Assim, “para que tu possas ser temido”, subentende: “para que tu possas ser servido, adorado, é que eu estou pronto a confessar o meu pecado, para poder continuar atendendo à obediência que tu requeres de mim”.
A descoberta da fé de que há perdão em Deus é o fundamento exclusivo da união com Ele, em adoração aceitável e obediência reverente.
Assim, não há o menor encorajamento para a alma de um pecador tentar lidar com Deus sem esta descoberta.
Esta descoberta de perdão em Deus é uma grande e misteriosa questão, que muito poucos chegam a compreender plenamente no evangelho, apesar de ser o coração da sua mensagem de boas novas aos pecadores.
Isto é um fundamento, um suporte estável até que uma alma aflita pelo pecado seja manifestada.
Todo o resto do mundo está coberto com um dilúvio de ira. Esta é a única arca em que a alma pode estar em segurança e em paz. Tudo sem isto é escuridão, maldição e terror. E esta ira se manifestará claramente na segunda vinda de Jesus, quando todos os ímpios sobre a face da terra serão destruídos, mas os crentes que estiverem vivendo na terra serão poupados para serem governados por Cristo e Sua igreja no milênio.
Adão, por suas atitudes e palavras reveladas em Gênesis, indica-nos que não chegou a descobrir
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por fé o perdão, e assim ficou sujeito à maldição de Deus, e não somente ele, como toda a sua descendência.
Esta falta de descoberta do perdão pela fé, pode também ser vista em Is 33.14: “Os pecadores em Sião se assombram, o tremor se apodera dos ímpios; e eles perguntam: Quem dentre nós habitará com o fogo devorador? Quem dentre nós habitará com chamas eternas?”.
Eles não conseguiam ver em Deus senão apenas um fogo voraz pronto a consumir os pecadores. Alguém que não pouparia, mas que seguramente infligiria o castigo de acordo com os seus pecados. Eles conhecem apenas os rigores da lei, mas nada da graça e misericórdia do Senhor que se descobre por fé. Por isso esta é conclusão deles expressada na sua interrogação de que não pode haver qualquer relacionamento de paz entre eles e Deus.
O texto de Miq 6.6,7 apresenta a alma que ainda não descobriu o perdão pela fé, refletindo sobre o que poderia cobrir a transgressão e o pecado da alma. É o homem procurando ainda em si mesmo algo que o possa recomendar a Deus para que seja perdoado. E a resposta dada pela boca do profeta não revelará este mistério à alma indagadora, antes lhe apontará o seu dever de amar a Deus, a misericórdia e a justiça, andando em humildade (v 8). E o pecado impossibilita um tal viver como este que agrade a Deus.
Se o pecador não reconhecer o seu pecado, se não parar de tentar a sua aproximação de Deus baseado em sua própria justiça, ele não será
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perdoado, e assim, não poderá viver do modo que agrade ao Senhor.
O fariseu da parábola estava nesta condição, porque não se reconhecia pecador, e não poderia portanto descobrir o perdão pela fé, mas o publicano, reconheceu o seu pecado e se confessou pecador diante de Deus, e descobriu pela fé o perdão, e assim foi justificado.
O perdão é um revelação feita por Deus à nossa compreensão e Ele nos capacita a recepcionar essa revelação para o nosso próprio benefício.
A descoberta do perdão a que estamos nos referindo não é uma descoberta doutrinal, pelo conhecimento desta verdade pela Palavra, mas a uma descoberta experimental, subjetiva.
Em Cristo, na revelação do evangelho, a descoberta doutrinal avançou muito em graus, mostrando a remissão de pecados pelo sangue de Jesus (Ef 1.7) e a sua aplicação ao pecadores pelo perdão concedido aos que creem (Col 3.13; I Jo 1.9). Mas o mero conhecimento doutrinal não dá direito ao benefício, porque este deve ser recebido por fé e numa experiência pessoal com o poder de Deus.
Muitos procuram ter paz com Deus por meio da sua própria consciência, mas a consciência não tem e não conhece nada do poder sobrenatural do perdão de Deus. Ao contrário, ela é dada a se aborrecer com o pronunciamento da ira de Deus contra o pecado. Por isso muitos procuram se justificar em vez de reconhecer o pecado. É um ato de humilhação para a alma ter que se reconhecer culpada. O orgulho do pecado não permitirá que a alma se rebaixe e confesse a sua
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culpa. A consciência apresentará razões justificadoras e atenuantes para o pecado, e o pecador prosseguirá adiante sempre encontrando desculpas para os seus atos. Ele pode afirmar que Deus é misericordioso e perdoador. Que Deus conhece a nossa natureza que é dada a errar. Mas não conhecerá e experimentará o perdão, enquanto se mantiver nesta condição. Assim a própria consciência do pecador deve ser purificada de obras mortas para que ele possa conhecer e viver o perdão de Deus, porque uma consciência não regenerada sempre o trairá falando de paz quando não há paz. Amenizando a culpa quando esta permanece, porque nenhuma culpa de qualquer pecado pode ser removida senão pela fé em Cristo.
Uma boa consciência deve condenar os atos de pecado e julgar o pecador, mostrando que ele tem ofendido a justiça de Deus e deve ser julgado por Ele, a menos que reconheça a sua culpa e confesse os seus pecados a Deus. E quando ele for perdoado a boa consciência lhe indicará que isto não foi por qualquer mérito pessoal dele, mas por fruto exclusivo da misericórdia de Deus revelada em Cristo.
A boa consciência deve julgar mas não condenar, porque não há nenhuma condenação para quem está em Cristo. Em Cristo, a consciência que condena a pessoa, é transformada, de modo que se diz que pelo Seu sacrifício já não há para o crente consciência de pecados (Hb 10.2). No sentido de que não há condenação para aqueles cujos pecados foram
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perdoados. E Deus tem perdoado para sempre os pecados dos crentes por meio do sacrifício de Cristo.
Uma má consciência produz farisaísmo, legalismo, hipocrisia, e tudo isto está relacionado, e Jesus ordenou aos crentes que se acautelem disto. Porque se a consciência é má, ela nos justificará enquanto estivermos vivendo no pecado. Ela não nos julgará revelando que temos desagradado a Deus por causa dos nossos pecados. Por isso Paulo diz que o amor só pode proceder de um coração puro, de uma consciência boa e de fé sem hipocrisia (I Tim 1.5).
Vemos assim que enquanto estivermos neste mundo é um grande trabalho que o sangue de Cristo tem que fazer na consciência de um pecador; para que esta não condene aquele que está justificado e que tem confessado os seus pecados e caminhado em fidelidade com Deus, e não justifique quem não teve os seus pecados perdoados pela fé em Cristo, ou no caso de crentes, que não os inocente quando são culpados por viverem deliberadamente na prática de pecados.
Uma má consciência pode desconsiderar a própria lei de Deus, tornando a alma negligente por não dar a devida atenção ao que a lei diz. Com isto será bastante difícil reconhecer o pecado, e sem este reconhecimento não pode haver verdadeira confissão, e sem esta, não pode haver perdão. Assim, simples conhecimento da lei não é o bastante para se andar em retidão com Deus. Os fariseus
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conheciam a lei, mas não tinham o temor de Deus, e transgrediam deliberadamente a própria lei que eles ensinavam.
Dar-se-á o mesmo com os crentes que por afirmarem estarem debaixo da graça e não da lei, andarem de modo contrário à vontade de Deus revelada na lei, transgredindo os seus mandamentos, a pretexto de estarem sob a graça? Não é incomum encontrar quem pratique o mal sob o pretexto da liberdade que tem em Cristo. Paulo diz que isto é uma contradição quanto à fé que se afirma ter. Cristo não é ministro do pecado. Ele não nos libertou da condenação da lei para vivermos na prática do pecado. Ao contrário, Ele se manifestou para que o pecado seja destruído em nós através da mortificação operada pelo Espírito Santo.
Esta é uma geração de grandes pecadores no mundo; de homens que têm uma apreensão geral, mas não um senso do poder especial de perdão, aberta ou secretamente, em pecados carnais ou espirituais. Onde a fé faz uma descoberta de perdão, todas as coisas são mudadas. O coração de pedra dá lugar ao coração de carne. Surge um grande amor, temor, e reverência a Deus. A prostituta que se converte na casa de Simão, o fariseu, muito amou porque foi muito perdoada. Um grande amor surgirá de um grande perdão.
“Contigo, porém, está o perdão, para que sejas temido.”, disse o salmista. Nenhum incrédulo pode conhecer a verdade desta conclusão experimentalmente. Mas isso é o que ocorre quando os homens temem o Senhor. Lemos no
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Sl 116.,5-7: “Amo o Senhor, porque ele ouve a minha voz e as minhas súplicas. Compassivo e justo é o Senhor; o nosso Deus é misericordioso. O Senhor vela pelos simples; achava-me prostrado, e ele me salvou. Volta, minha alma, ao teu sossego, pois o Senhor tem sido generoso para contigo.”.
A apreensão do perdão do pecado que não cria nenhum ódio ao pecado, e que não leva a um abandono do mesmo, é o mesmo que transformar a graça de Deus em libertinagem, como é dito por Judas (Jd 4).
Mas como eles podem transformar a graça em libertinagem? A graça é capaz de transformar a conversão em libertinagem ou pecado? Não a graça real, subjetiva, mas a doutrina. Isto é, a adulteração da verdadeira doutrina sobre a graça e o perdão quanto à sua aplicação. É a doutrina do perdão, da graça, que pode ser abusada desta forma. Assim, quem não tem um conhecimento correto da doutrina e um coração sincero para com Deus pode se valer do argumento de que está na graça para continuar pecando.
Paulo também se refere a isto em Rom 6.1. Seria melhor para muitos se eles nunca tivessem ouvido a palavra graça ou perdão.
A grandiosa e solene declaração que Deus fez do seu próprio caráter em Êx 34.6,7 põe em destaque o fato de ser misericordioso e perdoador, mas ali, Ele também destaca que não inocenta o culpado, e que julga as iniquidades de todos os homens, trazendo juízos até mesmo sobre os seus descendentes, em razão dos seus
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pecados não perdoados. Assim, a doutrina verdadeira que é segundo a Palavra revelada, não deixa nenhum espaço para a criação de uma tal doutrina errônea de graça irresponsável que justifica o pecado sob o argumento do perdão geral e indiscriminado de Deus. Afinal, não é isto o que é ensinado em toda a Bíblia. Afirmações isoladas fora de contexto é que podem dar margem a tais formulações. Mas os que se arrependem de seus pecados e que buscam andar em fidelidade com Deus, acham encorajamento para se aproximarem do Senhor para obterem o Seu perdão confiados no fato de ser Ele “compassivo, clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado,”. E tendo declarado assim a Sua natureza, isto é um alívio e refúgio para os pecadores, um encorajamento para vir a Ele, e esperar pela Sua misericórdia. Sl 9.10: “Em ti, pois, confiam os que conhecem o teu nome, porque tu, Senhor, não desamparas os que te buscam.”.
Assim esta descoberta do perdão pela fé de que falamos, não é nenhuma coisa comum, é uma grande descoberta. Por isso podemos dizer a um incrédulo que todo pecado e ofensa podem ser perdoados em Cristo, e lhe dizer isto centenas de vezes, mas se o perdão não lhe for revelado por Deus, pela fé, ele não poderá se beneficiar disto.
Textos como o Sl 86.5; Ne 9.17; Os 11.9, Mq 7.18, dentre outros, revelam que Deus perdoa pecados por causa do Seu nome, isto é, ele lidará
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com os pecadores de acordo com a bondade da Sua própria natureza, conforme Ele a declarou em Êx 34.6,7, como vimos antes.
Por isso o amor expulsa o medo. Já não há condenação para o que crê na bondade de Deus, porque Ele tem prometido perdoar pela fé e o arrependimento. O amor, a bondade e o perdão de Deus foram plenamente demonstrados em Cristo. Ele revelou o Pai a nós, para que tenhamos plena confiança. (Jo 16.26,27; 17.6).
Mas isto não é tudo. Porque Deus também declarou a Moisés o que lemos em Êx 33.19: “terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer.”. Há uma vontade soberana que dirige isto tudo, e que determina tempo, modo, lugar para conceder o perdão. Isto não é uma fórmula que o pecador use no momento que quiser para obter o resultado esperado também no momento que for desejado por ele. A mão poderosa do Senhor tem o controle de tudo e todos. Ele pode fazer a alma esperar pelo Seu perdão em profundezas pelo tempo que bem Lhe aprouver de modo que se cumpra todo o Seu propósito. A misericórdia e o perdão não vêm adiante de Deus como a luz do sol e as ondas do mar, que seguem um curso fixo e pré-determinado. Isto é mais um fator para reforçar a necessidade do nosso temor e reverência diante dEle. A andarmos humildemente na Sua presença enquanto aguardamos pelo Seu favor. É por isso que o seu nome é Senhor. Ele tem o governo de nossas vidas, e cabe a Ele e não a nós conduzir o nosso caminhar. Todos os frutos da
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bondade e graça de Deus são mantidos exclusivamente pela sua própria vontade soberana. Esta é a Sua grande glória. Por isso Ele afirmou o que disse em Êx 33.19, quando Moisés lhe pediu que lhe mostrasse a Sua glória (Êx 33.18). A glória do Senhor está em manifestar a Sua graça e bondade. Por isso respondeu que a Sua glória está em mostrar a Sua misericórdia e bondade a quem Ele quer. Isto está no Seu controle, ainda que não faça acepção de pessoas. No entanto, não é de maneira indiscriminada que Ele concede o Seu perdão. Com isto Deus dá grande valor à Sua graça. Ela não é barata porque é graça. Ela não é comum. E faríamos bem em atribuir a ela o mesmo valor que o Senhor lhe dá. Ela é preciosíssima para nós, já que Deus tem misericórdia de quem quer ter misericórdia. Quão grande e permanente gratidão devem demonstrar os crentes por terem sido alvo de tão precioso favor. Glórias são dadas a Deus no céu e na terra quando Ele manifesta a Sua bondade e misericórdia ao pecador. Se a manifestação da misericórdia e graça fosse indiscriminada que valor e que interesse teríamos nelas? Que cuidado teríamos com o nosso caminhar diante de Deus? Que temor Lhe tributaríamos? Deus em Sua sabedoria determinou agir assim com relação aos pecadores, para que se cumpram os seus santos propósitos, e para o nosso próprio bem. Um Pai que recompensa filhos rebeldes está cooperando para o aumento da rebeldia deles. Por isso são mantidos sob disciplina para o próprio bem deles. De igual modo Deus não
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recompensaria os pecadores impenitentes, endurecidos em seus pecados dando-lhes um perdão que eles não buscaram ou valorizaram, pelo desejo de se converterem dos seus maus caminhos.
Agora, o mistério desta graça citado em Ef 1.5-9 é profundo; é eterno, e então incompreensível. Mas estas fontes das ações de Deus são reveladas para que possam ser as fontes de nossos confortos.
Este propósito da graça de Deus tem vários atos, e todos eles estão relacionados ao perdão do evangelho: Deus pretende mostrar a Sua graça e bondade aos pecadores, contudo ele fará isto de tal modo, que não seja prejudicial à Sua própria santidade e justiça. A justiça dele deve ser satisfeita, e a indignação santa dele contra o pecado deve ser feita conhecida. Portanto ele enviou o Seu Filho, e o deu a nós para o exercício da misericórdia, sem eclipsar de nenhum modo a Sua justiça, santidade e ódio ao pecado. Ao contrário, Ele tem colocado em maior realce tudo isto ao mesmo tempo em que é propício ao pecador, porque derramou toda a Sua ira contra o pecado em Seu próprio Filho na cruz. Deus castigou o pecado nAquele que Lhe é mais precioso, de modo a demonstrar o quanto o pecado Lhe é aversivo. Ele não o castigou em qualquer um, mas no Criador e Monarca do universo. O perdão de pecados é a coisa apontada em Rom 3.25, mas isto deveria ser feito por uma propiciação, por uma compensação no sangue de Cristo (Jo 3.16: Rom 5.8; I Jo 4.9). Cristo é o centro do mistério do evangelho, e o perdão
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é posto no coração de Cristo, em quem todos os tesouros do amor do Pai estão escondidos. E seguramente não é nenhuma coisa pequena ter o coração de Cristo revelado a nós. Quando os crentes alcançam o perdão, a fé deles se exercita sobre isto. Eles investigam a graciosidade da natureza de Deus, e o prazer da boa vontade dele, o propósito da sua graça,; eles ponderam e olham para o mistério da sua sabedoria e amor enviando o seu Filho. Por isso é que é ordenado que se busque diligentemente depois de termos sido salvos, estas coisas na sua natureza. Estas são as coisas para as quais "os anjos desejam perscrutar” (I Pe 1.12). E alguns pensam que se eles tiverem um conhecimento de palavras sobre elas, que eles adquirirão uma compreensão suficiente delas! Esta é indubitavelmente a razão por que muitos que verdadeiramente creem ainda estão na superfície sobre o perdão todos os seus dias, porque eles nunca exercitaram fé para olhar as fontes disto, suas fontes eternas, mas têm se contentado somente com o fato de terem sido perdoados em Cristo para serem salvos.
A causa do nosso perdão é o sangue de Cristo.
Quando confessamos o pecado e somos perdoados não o fomos por causa da confissão, mas por causa do sangue de Cristo. A confissão é o meio, e o sangue é a causa. Do mesmo modo que se diz que somos salvos pela graça mediante a fé. A causa da salvação não é a fé, mas a graça. A fé é o meio, e a graça é a causa.
E este perdão assim concedido é irrevogável (II Cor 1.20; Hb 8.12; 9.15-17), porque o caráter da
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nova aliança que é feita no sangue de Cristo é irrevogável para todo aquele que se aliançar com Deus por meio da fé em Jesus.
"Deus é misericordioso", esta é uma declaração comum. Muitos afirmam isto e nem conhecem Deus, nem misericórdia, nem Cristo, nem qualquer mistério do evangelho. Voltamos a repetir que isto não pode ser conhecido a não ser pela fé. Não é por se ouvir, mas por se viver. Não é para quem quer ou para quem corre, mas para quem efetivamente tem experimentado a misericórdia de Deus que Ele concede a quem Lhe apraz.
O salmista conhecia isto por fé e por experiência, e por isso ele rugia, gemia, clamava enquanto aguardava pela misericórdia do Senhor.
Se qualquer um pecar e estiver em profundezas por causa disso, como procederá para obter libertação? Ele deve fazer o que o apóstolo diz em I Jo 2.1,2. Ele deve considerar a propiciação feita pelo sangue de Cristo para o perdão do pecado, e deve confiar nEle como seu Advogado de defesa junto ao Pai.
Não há outro lugar para um filho de Deus pela fé em Cristo, senão o de inteira confiança de que pode e deve tomar a decisão de sempre buscar o perdão de Deus, como Ele próprio nos encoraja a fazê-lo. Isa 44.22: “Desfaço as tuas transgressões como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim porque eu te remi.”. Davi revelou na hora da sua morte a sua plena confiança na aliança de Deus, na sua fidelidade, de modo que é digno de toda a nossa
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confiança e esperança (II Sm 23.5). E nós que temos sido participantes de uma nova aliança já revelada e consumada em Cristo não aprenderemos a seguir o mesmo exemplo de Davi? Como deixaremos de pedir ao Senhor que aumente a nossa fé para ter o pleno conhecimento desta verdade? Como abrigaremos um coração endurecido que se recusa a confiar inteiramente na bondade, misericórdia, fidelidade e perdão de Deus?
VERSÍCULOS CINCO E SEIS
“5 Aguardo ao Senhor; a minha alma o aguarda, e espero na sua palavra.
6 A minha alma anseia pelo Senhor, mais do que os guardas pelo romper da manhã, sim, mais do que os guardas pela manhã.”.
Ele descreve tanto a sua condição de espírito quanto o dever a que ele se aplicou de esperar no Senhor.
“Aguardo”, ou "Eu espero". A palavra denota a intenção de alguém com um grande desejo; o desejo de que se cumpra uma determinada expectativa. Paulo expressa em cheio o sentido desta palavra em Rom 8.19, onde se refere à expectativa da glória por vir a ser revelada em nós.
O salmista disse que estava esperando a Jeová. É o próprio Jeová que ele espera. É o próprio Jeová que satisfará e curará a sua alma. Assim como um doente espera pelo médico que o operará.
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Sem a presença do cirurgião não haverá cura. Assim, o salmista não procura o remédio, a ajuda, mas o Médico celestial que pode curar a sua alma livrando-a das profundezas. Se Ele não vier, nada o aliviará.
A sua alma espera por Jeová, anseia por Ele. Ele espera com toda a sua alma. É o seu ser todo e não apenas um desejo de sua mente. E ele espera na palavra de Jeová; ou, seja a sua alma é sustentada com a palavra da promessa de Deus de perdoar aquele que O buscasse. O salmista estava numa tempestade na terra, mas os seus olhos estavam voltados para o céu, de onde lhe viria o socorro.
E ele também espera com uma tal intensidade, que chega a ser maior do que o desejo das sentinelas pelo romper da aurora, para que sejam livradas dos perigos da noite, e vejam cumprido o seu turno de serviço.
O primeiro fruto da descoberta do perdão pela fé, isto é, que há disponibilidade de perdão em Deus, de uma alma aflita pelo pecado, é de esperar com paciência e expectativa.
O próprio objetivo de uma alma aflita pelo pecado é esperar o próprio Deus. E a palavra da promessa é o grande suporte da alma que espera por Deus.
As almas que esperam verdadeiramente em Deus, quando em profundezas, são aquelas que o fazem com intensidade e diligência, em sua expectativa da manifestação do favor de Deus.
A constância em esperar em Deus, mantendo a expectativa da Sua presença é necessária para que sejamos ajudados. Sem isto nós falharemos.
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Deus se agrada desta constância e importunidade da fé, porque traz muita glória ao seu nome, e revela aos principados e potestades o quanto nós O amamos e quanto confiamos na Sua misericórdia e bondade.
A confiança e expectativa na manifestação desta misericórdia e bondade é o que nos sustenta e alimenta a fé mesmo quando ainda nos encontramos na profundeza e não temos ainda uma indicação clara da liberação do perdão de Deus.
Espera paciente e expectativa é o dever de toda alma que espera por Jeová, para que seja perdoada.
Quando o Novo Testamento ensina que a tribulação produz paciência ou perseverança, e esta esperança, o que está em foco é exatamente a expectativa referida pelo salmista. De outro modo, a não ser pelas profundezas, neste caso não produzidas pelo pecado, mas por circunstâncias exteriores difíceis – o princípio a ser aplicado é o mesmo – a alma é chamada a esperar em Deus, isto é a ter uma paciente esperança pelo livramento. O desconforto experimentado pela alma e a sua busca de alívio em Deus leva-a até a presença do Senhor que vem a ela com consolo e livramento. Tiago diz que a provação da fé na tribulação produz perseverança (Tg 1.2). Paulo diz em Rom 5.3,4 que a tribulação produz perseverança, e a perseverança experiência, e a experiência esperança. A experiência aqui referida é sobretudo experiência do socorro pela graça de Deus. Experiência com o próprio Deus. A
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paciência ou perseverança é o ato de constância. A permanência da firmeza da fé que está em expectativa pela manifestação da misericórdia do Senhor.
Se não há tribulação, se não há profundezas, se a alma estivesse plenamente saciada em todo o tempo, poderia se perder de vista que a presença do Senhor é o que está garantindo isto. Assim, no mundo tereis aflições, e é por meio de muitas tribulações que se entra no reino de Deus (At 14.22), para que a alma em seu desassossego procure pelo seu único lugar de descanso que é o Senhor. Doutra sorte poderia ficar em indolência. Mas pelas aflições é movida a esperar no Senhor. A tribulação lhe ensina a ser perseverante e a ter esperança. Ela vive da esperança da manifestação da bondade, misericórdia e graça do Seu Senhor. E isto faz com que ela seja movida da sua indolência natural para a busca espiritual de Deus.
Esperar ao Senhor, ou no Senhor, significa portanto tranquilidade em oposição a pressa e desespero de espírito; diligência em oposição a indolência espiritual, e negligência de deveres; e expectativa em oposição a desespero, desconfiança e incredulidade.
A alma está nas profundezas mas não está desesperada, intranquila, apressada, indolente, incrédula. Ela aprendeu a descansar no Senhor aguardando pacientemente pelo Seu socorro. Por isso Paulo diz de sua própria experiência com Deus que: “Em tudo somos atribulados, porém, não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não
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desamparados; abatidos, porém não destruídos.” (II Cor 4.8,9).
Quanto a estar tranquilo nas profundezas, esta espera é às vezes expressada através de silêncio. Esperar é estar calado: Lam 3.26: “Bom é aguardar a salvação do Senhor, e isso em silêncio.”. Isto é, "esperar quietamente". É a mesma palavra que nós às vezes usamos para “descansar”, como no Sl 37.7: “Descansa no Senhor e espera nele,”. Em Is 30.15 Deus afirma que “Em vos converterdes e em sossegardes está a vossa salvação; na tranquilidade e na confiança a vossa força, mas não o quisestes.”. E é dito que o efeito da justiça de Deus por meio de Cristo será paz e o fruto da justiça repouso e segurança para sempre, em Is 32.17. Primeiro paz, depois repouso e segurança. Agora, este silêncio e tranquilidade que acompanham a atitude de esperar é uma parte essencial disto, e é contrário, à pressa imprópria da alma que se agita em si mesma para se livrar de suas dificuldades. Assim, quando Deus chamou o seu povo para esperar nEle, Ele expressou a ação contrária que é natural à alma. Hc 2.3,4: “Porque a visão ainda está para cumprir-se no tempo determinado, mas se apressa para o fim, e não falhará; se tardar, espera-o porque certamente virá, não tardará. Eis o soberbo! Sua alma não é reta nele; mas o justo viverá pela sua fé.”.
Deus tem dado à alma uma visão de paz, pela descoberta daquele perdão que está com ele; mas ele nos fará esperar por uma participação sempre atual disto para ter descanso e conforto. Aquele que não fizer assim, mas que ultrapassar
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os limites impostos por Deus apressando-se e inquietando-se para a resolução dos problemas, isto é, transgredindo o método do Espírito de Deus neste assunto, o seu coração não estará reto nele e ele não saberá o que é viver por fé. Isto arruína e desaponta muito uma alma em suas tentativas para obter perdão ou para vencer em meio ás tribulações. O profeta, enquanto falando deste assunto, nos diz que “aquele que crê não foge”, isto é “não se apressa” (Is 28.16), as mesmas palavras que o apóstolo usa por duas vezes em Rom 9.33; 10.11, dizendo que o que crê não será confundido, ou envergonhado, porque esta pressa impede os homens de crerem, e assim desaponta as suas esperanças, e os deixa em vergonha e confusão. Homens com um senso da culpa de pecado, tendo feito alguma descoberta do descanso, segurança e paz que eles podem obter para as suas almas pelo perdão dos seus pecados, podem não suportar o jugo que o Senhor tiver colocado sobre eles, e ficam impacientes debaixo dele, e choram como Raquel pedindo filhos a Jacó.
Além da tranquilidade, que acabamos de comentar é também necessário ter diligência, no ato de esperar em Deus. A diligência está em oposição à indolência espiritual. A diligência é a atividade da mente, no uso regular de meios, para a perseguição de qualquer fim proposto. O fim apontado à alma é descanso e paz naquele perdão que está com Deus. O atingimento disto é obtido por meios instituídos por Deus. Uma negligência deles, por indolência, desapontará a alma certamente em atingir aquele fim.
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Há uma ilustração desta verdade no mundo natural. Aquele que semeia não deve pensar em colher se ele não for diligente em fazer isto seguindo todos os meios necessários para uma boa colheita, como arar e adubar o solo, irrigar a plantação, combater as doenças e pragas e tudo o mais o que é exigido. Se no mundo natural que é temporal, passageiro, é exigido diligência para se ter bons frutos, quanto mais no mundo espiritual, cujos frutos são eternos.
Davi é um exemplo de diligência que nos é dado para ser imitado por nós. Ele diz no Sl 40.1: “Esperei confiantemente pelo Senhor,”. Este confiantemente significa no original diligentemente. E no Sl 123.2 lemos: “Como os olhos dos servos estão fitos nas mãos dos seus senhores, e os olhos da serva, na mão de sua senhora, assim os nossos olhos estão fitos no Senhor, nosso Deus, até que se compadeça de nós.”. Eles intimaram às suas mentes o que elas deveriam fazer, em seu dever de se fixarem inteiramente no Senhor até que Ele lhes desse a resposta esperada.
Oração, meditação, leitura da Palavra e ouvir a sua pregação, são meios designados para este propósito. Se formos indolentes nisto certamente não acharemos descanso para as nossas almas.
O salmista espera em Deus mais do que os guardas esperam pela manhã. Os guardas sabem que a manhã certamente virá, trazendo o raiar do sol, e o salmista sabe também que o Senhor virá fazendo raiar o sol da sua justiça em Cristo, trazendo-lhe o perdão esperado.
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Davi diz no Sl 5.3: “De manhã, Senhor, ouves a minha voz ; de manhã te apresento a minha oração e fico esperando.”. Ele é diligente em suas orações, apresentando-as todas as manhãs a Deus.
O profeta chama esta diligência de “por-se em sua torre de vigia” (Hc 2.1). Ele está esperando agora em expectativa uma resposta de Deus. E isto é aquilo que os pecadores pobres, fracos e trêmulos são encorajados a fazer em Is 35.3,4: “Fortalecei as mãos frouxas e firmai os joelhos vacilantes. Dizei aos desalentados de coração: Sede fortes, não temais. Eis o vosso Deus. A vingança vem, a retribuição de Deus; ele vem e vos salvará.”. Fraqueza e desânimo são os efeitos de incredulidade. Estes seriam removidos por uma expectativa da vinda do Senhor à alma, de acordo com a promessa. E isto, eu digo, pertence à espera da alma na condição descrita.
Enquanto espera pelo tempo de livramento de Deus, a alma se encontra com muitas oposições, dificuldades, e perplexidades, especialmente se sua escuridão é de longa duração; como se dá com alguns por muitos anos, e com alguns, todos os dias das vidas deles. A esperança deles sendo adiada deste modo faz com que o coração deles adoeça, e frequentemente o espírito deles fica desfalecido; e este desfalecimento é um erro na espera, porque a perseverança e a constância poriam um fim nisto. Assim Davi afirma no Sl 27.13: “Eu creio que verei a bondade do Senhor na terra dos viventes.”. Se ele não tivesse o suporte da fé ele teria desfalecido. Ele teria sido subjugado se não tivesse permanecido
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firme na sua fé de que veria a manifestação da bondade do Senhor em seu favor. Se desfalecemos pelo caminho e somos vencidos pela incredulidade, é possível que se viva nas profundezas até mesmo por todos os dias da vida. É preciso obter libertação e Deus quer nos conceder isto, mas é preciso crer, confiar, esperar, permanecer firme na fé. Por isso Davi conclui no verso 14 do mesmo Sl 27: “Espera pelo Senhor, tem bom ânimo, e fortifique-se o teu coração, espera, pois, pelo Senhor.”. Viver pela fé é permanecer confiando em Deus em todo o tempo. Confiando permanentemente na Sua bondade. A graça espera que aprendamos esta lição. A alma não se levantará sem este esforço em fé, porque um abismo chama outro abismo. As coisas não mudarão ao acaso. A vida não prevalecerá sobre a morte se cruzarmos os braços e abandonarmos a nossa confiança no Senhor.
O crente foi chamado à liberdade em Cristo, e não para ficar com a sua alma na prisão. Muitas serão as vezes que grilhões virão sobre a alma para aprisioná-la mas todos eles podem ser despedaçados pela fé em Cristo. Descrer é portanto consentir permanecer na prisão. Paulo e Silas estão aprisionados mas estão louvando e orando. De repente um terremoto vindo da parte de Deus despedaçou os grilhões e eles se viram livres. Isto é uma ilustração espiritual do que acontece com a alma que se encontra no cárcere: ela poderá sair livre de lá se louvar e orar ao Senhor, com a firme expectativa da demonstração da Sua bondade e misericórdia. E
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o apóstolo Paulo põe em realce a ação abençoadora da fé e da obediência para evitar este mal em Gál 6.9: “E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos se não desfalecermos.”. Nós colheremos, se nós não desfalecermos. É uma grande afronta ao Senhor e ao Seu poder descrer que Ele seja competente para dar vitória contra todos os nossos inimigos que se levantam contra as nossas almas. O povo de Israel recebeu a sentença de ter que peregrinar no deserto experimentando o desagrado do Senhor, exatamente porque desfaleceram diante da perspectiva de que deveriam lutar contra os cananeus para possuírem Canaã, apesar de o Senhor ter-lhes prometido que pelejaria por eles. Mas eles não creram nEle, e por isso foram impedidos por Ele de entrarem na terra que manava leite e mel. Eles desfaleceram e caíram. Por isso o crente não deve permitir-se ficar desfalecido em suas dificuldades porque se isto vier a se transformar em incredulidade, ele desonrará a Deus e pisará na graça que lhe está sendo trazida em Cristo, e poderá ficar em profundezas para o resto da sua vida, sem experimentar o perdão, alegria, descanso e paz, que estão disponíveis no Senhor para os que permaneçam firmes na fé, porque a promessa de vida é para o justo que vive da fé.
A promessa para o que crê, como vimos antes é que ele não será envergonhado em sua fé, ele não será confundido, isto é, a fé não falhará, ele não será desapontado no fim, pelo fato de ter confiado e esperado em Deus.
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É preciso portanto fortalecer-se na graça que está em Cristo. Fortificar o coração. Restabelecer as mãos descaídas e os joelhos trôpegos (Hb 12.12) em meio às tribulações e profundezas, para vivermos dentro da vontade de Deus, e em vitória. Isto que é a vitória do evangelho, não ter muitas posses, fama, dinheiro, e tudo o mais que o mundo possa oferecer. Não a paz que o mundo dá, mas a paz de Cristo. Paz esta que se consegue por um viver pela fé. A fé que confia no deserto, em face dos inimigos, nas profundezas, em toda oposição. Esta é a vitória descrita por Paulo em Rom 8.37. Mais do que vencedores por meio de Cristo que nos dá paz e descanso no meio de toda e qualquer tribulação. Daí se afirmar no contexto anterior e imediato antes de Paulo fazer a conclusão de Rom 8.37, nos versos 35-37: “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro.”. Veja o contexto em que se afirma a vitória. Isto nada tem a ver com a vitória que se proclama no mundo evangélico atual, em tantas igrejas que se desviaram da verdade da Palavra, quando se afirma a vitória de Cristo como obtenção das coisas que os gentios buscam, isto é, aqueles que não conhecem a Cristo e que são do mundo, que costumam relacionar a ideia de vencer na vida como obter muitos bens e posição social. À igreja moderna bem cabe a repreensão de Jesus à igreja de Laodiceia,
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porque é pobre da graça, infeliz por não conhecer a alegria de Cristo, cega quanto à verdade do evangelho, nua por viver vencida pelo pecado, miserável por não experimentar a misericórdia de Deus pela sua falta de fé. Apo 3.17: “pois dizes: Estou rico e abastado e não preciso de cousa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu.”. Uma igreja rica de bens do mundo. Abastecida de confortos mundanos, e que está equivocada pensando que nisto consiste a vitória do evangelho e a riqueza da graça de Deus. Na verdade é pobre não pelas riquezas materiais que possui, mas porque vive em pecados não perdoados, esquecida do que é devido ao seu caminhar com Deus, em razão da sua vocação, da sua chamada, e como vimos, o pecado não perdoado sujeita a alma a viver nas profundezas, nas trevas espirituais, e quem está em trevas não pode enxergar.
O motivo da glória de uma tal igreja deveria ser na verdade o motivo da sua vergonha, caso enxergasse a sua nudez e pobreza.
Eles desfaleceram no meio do caminho. Se cansaram de esperar em Deus para viverem uma vida santa, não dominados pelo pecado. E assim substituíram a vitória da cruz sobre o pecado pela vitória do mundo pela realização das suas próprias cobiças. Serem diligentes na fé nas tribulações, esperarem pacientemente no Senhor nas profundezas, isto lhes causa verdadeiro horror. Suas almas aborrecem tal ideia. E sendo indolentes e negligentes com os seus deveres para com Deus de serem
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perseverantes na fé para serem livrados das profundezas, eles preferem uma alternativa para isto, e procuram alívio nas coisas do mundo, e passam a ser religiosos que se consideram triunfantes, apesar de terem sido vencidos pelo pecado, e assim deixam de seguir nos mesmos passos daquela nuvem de testemunhas relacionada pelo autor de Hebreus que obtiveram bom testemunho de terem agradado a Deus por terem permanecido firmes na fé, e fiéis à Sua vontade, vencendo o mundo, o diabo e a carne.
O salmista esperou o Senhor não para atender a desejos egoístas. Ele esperou o Senhor para alívio e comunhão com Ele. Sabia que muito mais do que estar interessado no que poderia receber por conta da misericórdia de Deus, que Ele está muito mais interessado em nós mesmos, em que tenhamos um coração puro que o busque e se apegue a Ele, fazendo o que Lhe é agradável.
Deus mesmo é o próprio objeto da alma que está esperando em suas angústias e profundezas.
O que está em foco pelo salmista não é a busca de alívio pela busca de alívio como alvo. O perdão do pecado pelo alívio de consciência. Não. Ele sabe que o pecado é o único motivo da quebra de comunhão com Deus. Ele sabe o quanto o pecado aborrece a Deus. Ele quer resolver o problema para retornar à comunhão. Ele sente falta do seu Deus do qual o pecado se encarregou de afastá-lo. Por isso se volta para o Senhor em busca de perdão, para que volte a ter harmonia no Seu relacionamento com o Ele.
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Quão diferente é isto deste espírito que procura a Deus para a obtenção de vantagens pessoais, para o simples atendimento de desejos carnais. Certamente não era este o alvo de Davi e de nenhum dos santos de Deus cujas vidas nos são dadas como exemplos a nós em Sua Palavra.
Há muitos servos de Deus que estão em profundezas e não sabem disto, porque continuam em espírito de amargura contra Deus, esperando dEle bênçãos que julgam serem a real demonstração do Seu amor e favor. Só que o que eles chamam de bênçãos a Palavra chama de cobiças carnais ou luxúrias que guerreiam contra a alma como seus grandes inimigos. Eles vivem no pecado e ainda conseguem achar falta em Deus quanto ao que julgam ser uma falha na sua fidelidade ou demora excessiva em atendê-los. São como filhos mimados que julgam mal os seus pais por conta daquilo que não recebem deles e que esperavam receber.
Assim, o que o salmista busca é o próprio Deus, é o próprio Jeová que sua alma espera. Não é a graça, a misericórdia ou o alívio considerados de modo absoluto, mas o Deus de toda a graça e ajuda que é o objeto adequado e pleno que satisfaz a alma que está esperando com expectativa.
A Palavra ordena que corramos a carreira que nos está proposta com perseverança. Paulo fala de uma corrida atlética espiritual em que estamos inscritos e na qual devemos nos esforçar para conseguir o primeiro prêmio. É assim que Deus espera que cada um de seus
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filhos viva. Esta carreira é espiritual e significa sobretudo permanecer firme na fé na comunhão com Deus obedecendo a Sua vontade em todas as coisas. Se alguém pára no meio do caminho, caso se deixe vencer pelo pecado, não há nenhuma graça prometida para conduzi-lo adiante contra a sua própria vontade. Ele se achará salvo no dia do Senhor, mas como que pelo fogo, ele sofrerá o dano da perda de galardão, e viverá neste mundo desonrando a Deus, a Cristo, entristecendo o Espírito, e escandalizando a muitos. Por isso importa que se levante e retome a caminhada pela fé, lavando os seus pecados no sangue de Cristo, e confiando nele como seu Advogado para interceder em seu favor junto do Pai. A ausência de Deus na alma (Os 9.12) é uma aflição e tristeza, e isto é gradual ou parcial, em algumas épocas. Quando o Senhor retira a Sua iluminação, o Seu refrigério, a Sua unção, a Sua presença confortante, com que ele se comunicava no passado, então a aflição e a tristeza surgirão, e a alma entrará em profundezas e em embaraços. Mas esta condição pede espera. Se Deus tem se retirado, se Ele se esconde, que tem a alma a fazer senão esperar que Ele retorne, e isto em grande expectativa. Deus exige isto, então é dever natural e próprio da alma esperar e buscar. Já comentamos em que consiste esta espera e busca.
Em Hb 6.11,12 lemos: “Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando até ao fim a mesma diligência para plena certeza da
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esperança; para que não vos torneis indolentes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas.”. É necessário perseverar e ser diligente até ao fim, isto é, em cada dia de nossas vidas de crentes. Porque a perseverança diligente é um dever. Deus a tem determinado. A falta de perseverança nas profundezas, permitindo-se que se descaia na fé, pelo desfalecimento da alma, que é a cessação da confiança anterior que se tinha em Deus, leva-nos a experimentar o Seu desagrado por conta deste tipo de incredulidade, traduzido em falta de confiança de que Ele possa nos ajudar livrando-nos das nossas profundezas. E isto faz com que não tenhamos a Sua aprovação e não contemos com a Sua presença consoladora que fortifica a nossa alma. Isto pode ocasionar então que muitos permaneçam nas profundezas até os seus últimos dias de vida. É importante ser constante, perseverante no clamar a Deus nas profundezas até que Ele nos socorra. A perseverança bíblica é prosseguir em meio às tribulações. E isto é mais do que confiar que Deus resolverá nossos problemas, mas confiança em que Deus mesmo permanecerá em comunhão conosco depois de resolvido o problema do pecado. É contar com a Sua presença que é a questão em jogo, porque este é o real livramento de todos os nossos problemas. Ele é a resposta que satisfaz o problema da existência, da nossa própria alma e vida.
Por isso lemos em Hb 3;12.13; 4.11 sobre o lugar de descanso do crente que é o próprio Cristo, e
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que pode deixar de ser experimentado por causa de um coração endurecido pela incredulidade que nos afasta do Deus vivo.
Nós não estamos satisfeitos com nossa condição? Nós não podemos esperar debaixo das dispensações presentes do Senhor? Pensemos sobre como nós podemos nos aproximar até a presença dEle, ou nos levantarmos diante da Sua majestade gloriosa. O temor da Sua excelência não cairá sobre nós? O terror dele não nos amedrontará? Nós não pensaremos melhor sobre o modo dEle, e sobre o melhor tempo dEle, e que o nosso dever é estar calado diante dEle?
Não é ordenado que desenvolvamos a nossa salvação com temor e tremor ? Como argumentos carnais poderão prevalecer diante do Juiz de vivos e de mortos ? do Juiz de toda a terra ? Daquele que tem em suas mãos as chaves da morte e do inferno ? Estas não são coisas que sejam estranhas a nós. Este Deus é o nosso Deus. O mesmo trono da Sua grande majestade ainda está estabelecido nos céus. Deixemos então as nossas pressas e iras a que nossos espíritos estão tão propensos, quando se apresentam diante do trono de Deus, e calemos porque Ele conhece a palavra que pronunciaremos antes mesmo que elas saiam dos nossos lábios, então porque nos inquietaríamos em tentar fazer-Lhe conhecida a nossa condição, quando Ele conhece infinitamente melhor as nossas necessidades o nosso próprio coração muito mais do que nós ? Tudo isso que se refere à glória do Senhor nos cerca a todo momento, embora nós não
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percebamos isto. E logo o Senhor se manifestará em glória e nós com Ele trazendo juízos terríveis sobre o mundo, e estaríamos inquietados com nossas leves e momentâneas tribulações presentes ? Elas podem ser comparadas ao eterno peso de glória por vir a ser manifestado em nós? Como deixaríamos de esperar no Senhor por conta de desconfortos que logo, logo deixarão de existir para sempre? Como esperaremos no Senhor apenas para esta vida ? Seremos as mais infelizes de todas as criaturas. Porque este é um mundo de aflições e ainda não se manifestou a plenitude do que esperamos. Como colocaríamos então a nossa esperança nas coisas que são visíveis e passageiras? Como andaríamos por vista quando importa andar por fé? Porque a fé trabalha com as coisas que não são visíveis e que são eternas. E o que se vê é natural e haverá de passar. Em que consiste a nossa esperança ? O que temos esperado em Deus? Em relação às próprias cousas do céu, buscaríamos tais coisas e não Aquele que é a causa e existência de todas elas ? O céu e a terra passarão. O Senhor criará um novo céu e uma nova terra. E o que esperaremos então, senão a Jesus mesmo, assim como o salmista aguardava a Jeová mais do que as sentinelas aguardavam o raiar da manhã.
À vista de todas estas coisas podemos entender porque o Senhor sujeitou a juízo os israelitas que murmuraram no deserto e pelo exemplo deles nos chama a não murmurarmos também, antes, devemos ser-Lhe gratos em tudo.
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Os que têm sido julgados pelo Senhor como membros do seu povo, não devem se entregar ao ressentimento e à amargura ou mesmo ao abatimento de espírito, mas devem se sujeitar humildemente aos seus justos juízos tal como fizeram Aarão quando o Senhor tirou a vida dos seus dois filhos primogênitos, e que se humilhou quietamente debaixo da mão poderosa do Senhor (Lev 10.3), e Davi, quando foi sujeitado a uma confusão extrema pela rebelião de Absalão, seguida por uma multidão de descrentes de toda uma nação, e que se resignou diante da soberania de Deus (II Sam 15.25,26). Assim também devemos trazer nossa almas diante de nós em submissão à vontade do Senhor para termos descanso e paz, para que não caiamos debaixo de maiores juízos, na indignação justa do Senhor contra nós.
Ele pode se mostrar compassivo com aquele que for ignorante da Sua vontade, mas requererá muito daquele a quem muito tem dado o conhecimento da Sua vontade e dons para ser servido. O juízo começa pela casa de Deus e certamente com estes que são submetidos a um maior juízo (Tg 3.1).
Nós realmente estamos numa tempestade, a terra inteira parece cambalear como um bêbedo; mas ainda assim nossas almas podem descansar na habilidade e sabedoria infinita do grande Piloto de toda a criação, que guia todas as coisas de acordo com a deliberação da Sua vontade. São múltiplas as Suas obras, e é infinita a sabedoria com que Ele criou todas as coisas.
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Devemos considerar que de nós mesmos não podemos fazer um julgamento correto do que é bom para nós, e do que é mal para nós (Sl 39.6). Como saberemos quais são as coisas desta vida que serão melhores para nós; se é sermos pobres ou ricos; acumular bens para nossos filhos, ou deixar tudo por conta da providência de Deus? E se nós não conhecemos nada realmente destas coisas, não seria melhor para nós ficarmos quietamente à disposição de Deus? Porque Deus não tem prazer em enviar julgamentos por causa do próprio julgamento ou por causa do desejo de castigar, mas sempre para realizar algum propósito abençoado de sua graça para o Seu povo, mesmo quando sujeita alguns deles ao juízo extremo da morte física. E nenhuma alma em particular procurará considerar justamente o seu estado e condição, para poder ver a sabedoria, a graça, e o cuidado em todas as dispensações de Deus para o próprio bem da alma? E então, como nós não sabemos fazer a devida avaliação do que é realmente bom para o nosso proveito e progresso espiritual, especialmente quando muitos benefícios são trazidos a nós pelas mãos abençoadoras de Deus, através de aflições, angústias, dificuldades, tentações, tribulações e tudo o mais que geralmente consideramos como um mal para nós, quando na verdade em muitas ocasiões isto está trabalhando para nosso bem, seria então importante, em nossa ignorância em deixar todas as coisas externas que nos afligem, quietamente à disposição da soberania e sabedoria infinita de Deus, que sabe
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perfeitamente o que é melhor para nós. Nisto nem a pobreza é uma desvantagem para muitos, mas uma grande vantagem, porque os mantém ligados em dependência a Deus, quanto à Sua providência, e estes são sempre provados em sua fé, e podem assim estar muito perto do Senhor e terem grande crescimento espiritual. A riqueza, como vemos nem sempre será um bem e uma vantagem. Podendo levar muitos à indolência espiritual, que nos afasta de Deus.
Por isso Paulo diz em Rom 8.28 que todas as coisas cooperam juntamente para o bem daqueles que amam a Deus. Todas as coisas que nós desfrutamos, todas as coisas de que nós somos privados, tudo aquilo que nós fazemos, tudo aquilo que nós sofremos, nossas perdas, dificuldades, misérias, angústias realizam juntamente o trabalho que é para o nosso bem, pelo poder, graça e sabedoria de Deus. Pode ser que nós não vejamos como ou por quais meios isto pode ser efetuado, mas Deus é infinitamente sábio e poderoso para fazê-lo, ainda que não saibamos nada sobre os modos que Ele emprega com cada um de nós. A riqueza foi a perdição de muitos homens. O conhecimento elevado e as altas posições foram a ruína de outros. A liberdade e a abundância são para muitos uma armadilha. A prosperidade material destrói o tolo. E nós não somos em qualquer medida capazes por nós mesmos de avaliar o dano e o veneno que estão em quaisquer destas coisas, mas que elas também podem ser nossa ruína, como foram a eles, e diariamente, para multidões dos filhos dos
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homens. É bastante para encher a alma de qualquer homem de horror e assombro, considerar o fim da maioria daqueles que colocam a sua confiança nos bens do mundo e fazem deles a sua razão de viver. Não é sem motivo que a Palavra nos exorta insistentemente a não amarmos o mundo e nada do que no mundo há, porque o amor do mundo é inimizade contra Deus, e geralmente produz intemperança, luxúria, rebelião, revolta, opressão, blasfêmia, incredulidade, orgulho, vaidade, ciúme, avareza. E este é o fruto da abundância e segurança dos bens do mundo. O que ocorreria se Deus não privasse um grande número de seus filhos de todas estas coisas? Um pai terreno pode estragar o caráter de seus filhos cercando-os de mimo e cuidados excessivos, dando-lhes tudo o que desejam, e é bem conhecido de nós a forma de vida que a maioria deles terá em razão disto. Quantos de nós teriam se convertido se tivessem nascido em lares ricos de pessoas que não conhecem o Senhor? Quantos gostariam de arriscar a sua herança eterna por terem almejado e conseguido a mesma vida do jovem rico que recusou-se em deixar tudo e seguir a Jesus?
Assim como nos queixaremos das dispensações de Deus para nós, privando-nos de tantas coisas que poderiam ser a causa da nossa ruína eterna? Como deixaríamos de Lhe ser gratos sabendo que tem disposto todas as coisas para cooperarem juntamente para o nosso bem? Ansiedades de mente e perplexidades de coração sobre nossas perdas não são aquilo para
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o que nós somos chamados em nossas dificuldades. Mas é nosso dever esperar em Deus em silêncio, porque amamos a Deus e tudo está cooperando para o nosso bem.
Por isso o salmista esperava em Deus, e esperava na Sua Palavra, especialmente nas promessas da Palavra e nas suas demonstrações da bondade, misericórdia, graça, generosidade e amor de Deus. Quando as dificuldades surgem, e em nossos dilemas, tentações e desertos, devemos nos entreter com tais pensamentos sobre o caráter de Deus. Isto removerá de nós mil impaciências, ansiedades e falhas. A recordação da bondade e amor de Deus, das Suas boas promessas para nós, como as tem revelado na Sua Palavra e na experiência de vida do seu povo, deve encher as nossas mentes e corações. É assim que devemos agir enquanto esperamos por Ele em nossas profundezas.
Assim, é na Palavra de Deus que devemos nos apoiar para ter firmeza na hora da dificuldade e não em outros meios. Os homens podem ser pacientes no primeiro momento de qualquer dificuldade com a força, coragem, e resolução dos seus próprios espíritos. E debaixo da continuação destas dificuldades eles podem se apoiar em experiências anteriores, e outras fontes habituais e meios de consolação. Mas se as feridas deles provarem serem difíceis de serem curadas, se as doenças deles forem de longa duração, eles terão que recorrer à Palavra da promessa , e aprender a medir as coisas, não de acordo com o estado presente e apreensões
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das suas mentes, mas entregando tudo a Deus e esperando nEle.
VERSÍCULOS SETE E OITO
“7 Espera, ó Israel, no Senhor! pois com o Senhor há benignidade, e com ele há copiosa redenção;
8 e ele remirá a Israel de todas as suas iniquidades.”
O verbo esperar usado aqui no versículo 7 é a mesmo usado no verso 5, cujo significado expomos anteriormente.
“Pois com o Senhor há benignidade”, ou “há clemência”. Esta palavra é unida frequentemente a outra: generosidade, graça, verdade, bondade, benignidade. Isto é parte constituinte das promessas de Deus especialmente para o seu povo.
“E com ele há copiosa redenção;”. Esta palavra é frequentemente usada para a própria redenção, que é feita pela intervenção de um preço, e não uma mera afirmação da liberdade pelo poder que às vezes é chamado também redenção. Está em foco algo como o dinheiro com que os primogênitos dos filhos de Israel foram resgatados conforme determinação de Deus a Moisés. "Redenção" quer dizer, o preço do resgate deles (Núm 3.29; Sl 49.8). Essa redenção é caríssima e preciosa porque valeu um grande preço. A redenção, então, que está com Deus está relacionada a um preço. E a benignidade ou clemência são a causa desta redenção. Em Mt
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20.28; I Pe 1.18, vemos em que consiste este preço.
A redenção é copiosa, isto é, é grande, abundante, envolvente, porque são muitos os nossos pecados, e são muitos os pecadores cujo pecado é coberto por esta redenção. É copiosa não apenas no sentido quantitativo com também no qualitativo. Ela é excelente porque não foi paga com prata, nem ouro, mas com o precioso sangue de Jesus.
O Israel que será remido pelo Senhor de todas as suas iniquidades não é o Israel segundo a carne, porque nem todo nascido de Israel é de fato israelita (Rom 9.6), porque o Israel mencionado é todo o Israel de Deus que for resgatado pelo sangue de Jesus para ter o perdão e esquecimento eterno de suas iniquidades, conforme está prometido em Jer 31.34. É o Israel composto por aqueles que têm um coração puro, e que foi lavado das suas impurezas no sangue de Jesus.
O Espírito está falando nas palavras do salmista a todo o povo de Deus. Nas profundezas do salmista soou a Palavra de Deus de que há perdão tanto para ele quanto para todo aquele que confiar no Senhor, porque há uma propiciação feita para remir do pecado a todo aquele que vier a fazer parte do Israel de Deus.
Como não há quem não peque, todos são necessitados desta redenção, mas serão comprados para Deus pelo sangue de Jesus, apenas aqueles que crerem no Seu nome.
Ainda que nem todos estejam nas mesmas profundezas do salmista, elas ilustram que o
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perdão e a redenção de Deus são poderosos para livrar a qualquer um que esteja nas profundezas do pecado. Como Paulo argumenta que se Deus salvou a ele que era perseguidor da igreja, e por isso classifica a si mesmo como o principal dos pecadores, Ele poderia perdoar a qualquer um que viesse a crer em Cristo.
Mas qualquer crente pode vir a estar nas mesmas profundezas em que esteve o salmista, mas ele é confortado pela promessa da Palavra a ter a mesma confiança que o livrou, porque a benignidade e redenção do Senhor é copiosa, não foi apenas para o salmista mas para todos os que creem.
E sendo copiosa a redenção para todo o Israel, não há a possibilidade de qualquer crente cair de uma forma definitiva para condenação, porque a redenção que o comprou para Deus é de tal preciosidade e valor eterno, que obteve para ele uma salvação também eterna. Se o pecado pudesse retirar a qualquer crente definitivamente da presença de Deus e para sempre, com isto se poria fim ao reino de Cristo porque não há quem não peque. Por isso a promessa da redenção daqueles que creem é para uma salvação que durará para sempre.
Estas profundezas que os crentes experimentam tem o sentido metonímico de dificuldades neste mundo, mas não significam de nenhum modo o abismo em que os espíritos desobedientes estão guardados para o dia da condenação eterna no lago de fogo e enxofre. Tanto é assim, que há uma plena certeza de esperança, e todos são chamados a terem a
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expectativa de que serão livrados pela bondade e perdão do Senhor, porque há uma eterna redenção para eles.
Esta exortação dirigida pelo Espírito através do salmista a todo o Israel de Deus tem também o propósito de lhes ensinar a não tentarem achar libertação do pecado de qualquer outro modo a não ser confiando na clemência ou benignidade do Senhor, porque é Ele quem nos livra de todas as nossas iniquidades. Isto não pode ser feito por qualquer outro meio ou qualquer outro redentor.
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Divórcio e Recasamento
Por John Owen (traduzido e adaptado por Silvio Dutra))
É confessado e aceito por todos que aceitam a Bíblia como a autoridade deles que o adultério é uma causa justa e suficiente para o divórcio entre pessoas casadas, e nisto estão corretos. Porém, uma diferença de opinião existe sobre a extensão dos efeitos deste divórcio. O divórcio é uma separação plena do laço do matrimônio, ou é somente uma separação das obrigações mútuas do matrimônio, sem a dissolução do laço?
Primeiro: Alguns ensinam que o divórcio consiste numa dissolução absoluta e no término dos laços do matrimônio e assim permite para a parte inocente a liberdade de se casar novamente.
Em segundo lugar. Outros ensinam que este divórcio é somente uma separação “da cama e mesa do matrimônio” e então o divórcio não dissolve de fato ou termina a relação do matrimônio. Ao invés, livra a pessoa somente do dever de prover física e sexualmente o seu cônjuge, sem que possa no entanto, contrair um novo casamento.
Estou convencido da primeira opinião, isto é que o divórcio legal consiste numa dissolução absoluta em relação aos laços do matrimônio. Apesar de entender que há restrições e
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dificuldades impostas pelo próprio Deus, em Sua Palavra, para o divórcio, exatamente com vistas a preservar a instituição do casamento, de maneira que o próprio divórcio com o caráter de ser passado com uma carta legal e civilmente reconhecida, e que foi permitido por Deus não por consentimento, mas por concessão, é em si mesmo um fator dificultador para que se possa contrair um novo matrimônio, uma vez desfeito o laço anterior. Há que se considerar também os motivos que deram causa ao divórcio de forma a se identificar partes culpadas e não culpadas pela dissolução dos laços que Deus instituiu com um caráter de indissolubilidade, a não ser pelas situações excepcionais que Ele próprio estabeleceu em Sua Palavra.
Parte inocente em relação ao divórcio, seria então aquela que não deu ocasião à separação e que lutou para preservar o casamento. E a culpada, por conseguinte, seria aquela que, pela transgressão dos princípios instituídos por Deus para a continuidade do matrimônio, deu ocasião à separação ou que manifestou o seu desejo voluntário de fazê-lo, ficando assim a outra parte livre para constituir, se o desejasse, um novo matrimônio, sem estar no pecado de adultério, diante de Deus.
Note-se por exemplo, a título de antecipação dos argumentos que apresentaremos consistentemente adiante que até mesmo a obtenção de uma carta legal pode ser obstruída pela parte culpada, pelo motivo de não desejar concedê-la, conduzindo o processo de separação a uma situação judicial e não
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amigável, que pode levar até anos para a sua conclusão. Neste caso, no ato mesmo da abertura do processo judicial, a parte inocente terá demonstrado o seu desejo de estar debaixo da legalidade não apenas diante dos homens, como também diante de Deus, e ainda que esteja impossibilitado de contrair um novo matrimônio perante a sociedade civil até a conclusão do processo, no entanto, não estaria impedido de gozar de todos os direitos previstos para um membro da igreja de Cristo, por ter constituído uma nova família, enquanto aguarda pela decisão judicial da concessão do divórcio para que possa regularizar a sua situação de estado civil perante a sociedade. Entretanto, julgamos que procede melhor aquele que aguarda a conclusão do processo litigioso, pela fé que Deus honrará a sua decisão, antes que se envolva numa nova relação conjugal.
Estes princípios são inegociáveis porque eles refletem o caráter do princípio que Deus estabeleceu para o casamento, independentemente do afrouxamento que os países possam realizar pela legislação de seus códigos civis. Isto quer dizer que ainda que nenhum crente esteja desobrigado de cumprir as leis de seu país, ele no entanto, não estará justificado diante de Deus se vier praticar aquilo que apesar de ter amparo legal, não o tem por outro lado amparo pelo que está prescrito pelo Senhor em Sua Palavra.
Há implicações sociais muito sérias quando casamentos são desfeitos, e por isso Deus exigiu
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carta de divórcio, porque a carta não implica um simples ato de soltura, mas de compromisso legal assumido perante o magistrado civil de se arcar com as responsabilidades de provisão que cabem principalmente aos homens, quer em relação aos filhos, quer em relação à sua esposa, especialmente se esta não possui meios de subsistência e moradia. O laço desfeito não desobriga entretanto das responsabilidades perante Deus e perante a sociedade, de modo que o equilíbrio desta e a continuidade da vida possam ser mantidos e preservados. Não são apenas questões morais que se encontram em foco no matrimônio mas também questões práticas relativas à preservação da célula mater da sociedade que é a família.
Em outras palavras, todo servo genuíno de Deus terá portanto a devida consideração para com o matrimônio e se esforçará por todos os meios para atingir o alvo de Deus estabelecido para ele, desde o princípio de que marido e mulher passam a formar uma unidade perante Ele, e que não é da Sua vontade que esta união seja desfeita pela simples vontade do homem, porque isto não é da Sua vontade, segundo os princípios que Ele estabeleceu como criador da instituição do matrimônio.
As dificuldades que são impostas pela separação são portanto para serem sentidas realmente como dificuldades de maneira que ninguém se sinta estimulado a viver se casando e se separando, porque isto não é da vontade de Deus por simples motivo caprichoso, senão pelas sérias consequências, que o desapreço pelo
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matrimônio traz para a vida em sociedade como um todo, abrindo várias portas para a permissividade e muitos outros pecados e problemas sociais que advêm da falta da devida honra ao matrimônio, conforme é da vontade de Deus.
“Honrado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula; pois aos devassos e adúlteros, Deus os julgará.” (Hb 13.4).
Entretanto, eu mostrarei que a segunda visão, isto é, que o laço do matrimônio é absolutamente indissolúvel, é antinatural e antibíblica por causa de suas muitas fraquezas e também darei três razões por que a primeira visão é verdadeira.
A segunda visão não é verdadeira pelas seguintes razões:
Primeiro, este divórcio "de cama e mesa de matrimônio” não é um verdadeiro divórcio de acordo com a luz da Bíblia e a lei da natureza. Esta posição é uma recente invenção na história do gênero humano. Até mesmo na igreja romana que afirma que isto é uma verdadeira concessão no Velho Testamento e os divórcios das culturas antigas sempre implicava uma terminação do laço de matrimônio. Ainda os deveres morais e relações para honrar Deus do Velho Testamento não são ab-rogados pelo Novo Testamento, onde os motivos deles e propósitos estão mais claramente definidos.
Os católicos romanos vêm a esta posição por causa da visão antibíblica deles que o matrimônio é um sacramento Cristão e então desde que leva o estado de sacramento é
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indissolúvel. Mas se isto for verdade, então o matrimônio deveria acontecer somente entre crentes e não deveria ter nenhuma autoridade sobre os não crentes e isto não é claramente verdadeiro. O matrimônio é uma ordenação da criação e assim será praticado por todo o gênero humano, não somente os crentes.
Em segundo lugar, um divórcio que permanece perpetuamente "de cama e mesa de matrimônio” é danoso e destrutivo para o gênero humano. Se isto fosse verdade estabeleceria um estado novo de ser, desconhecido pela Bíblia. Neste estado novo um homem seria obrigado a ter uma esposa legalmente e simultaneamente seria obrigado a não ter uma esposa. Todo homem que é capaz de matrimônio é e deve estar em uma (e só uma) destas duas situações - se ele gostaria de ser ou não casado. Deus não chama nenhum homem no estado onde ele está amarrado à sua consciência de não receber a parte adúltera e ao mesmo tempo não tomar outra como a sua esposa devido a este divórcio.
Esta condição antinatural e ilegal e desconhecida pode--e provavelmente vai - conduzir um homem debaixo de uma necessidade de pecar. Isto é o que eu quero dizer quando eu afirmo que esta visão é danosa e destrutiva ao gênero humano. Vamos supor que um homem não tem o dom do celibato. Se este é então o caso que é a vontade expressa de Deus que ele deveria se casar para o alívio dele. Ainda, se ele se casar, ele pecou; e se ele não se casar, ele pecará.
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Em terceiro lugar, esta visão é ilegal. Porque se o laço do matrimônio se desfaz então a relação ainda continua. Este laço de relacionamento é o fundamento de todos os deveres mútuos e obrigações no matrimônio. Então, enquanto o laço permanecer, ninguém pode se abster legalmente de levar a cabo os próprios deveres do matrimônio, nem proibir o seu desempenho. No matrimônio, cada cônjuge tem certos deveres e obrigações de um ao outro que lhes exige que executem de forma que cada sócio não pertence a si próprio, mas um ao outro. Assim cada cônjuge pode reivindicar os deveres do matrimônio legalmente do outro. Eles podem se separar durante um tempo por consentimento mútuo e isto pode impedir a execução atual de certos deveres matrimoniais durante um tempo. Mas fazer tal obrigação de um ao outro completamente nula enquanto ao mesmo tempo a relação de matrimônio continua está contra a lei da natureza e a lei de Deus.
Em quarto lugar, está muito claro na natureza e graça da terra comum entre as nações que nunca apontaram para este tipo de divórcio. O matrimônio é uma ordenação da criação dada por Deus e é praticado assim por todo o gênero humano. Nenhum mero homem alguma vez teria ordenado uma tal relação. Ainda em toda a história nunca houve qualquer menção feita de um divórcio que somente é “de cama e mesa de matrimônio”. O caso sempre foi que aqueles que justamente se divorciaram de suas esposas poderiam se casar de novo. Algumas culturas,
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como os gregos antigos e romanos, permitiram ao marido até mesmo matar a adúltera. Isto foi mudado depois pelos romanos, mas a ofensa ainda permaneceu uma ofensa importante. Nestes casos, o divórcio aconteceu para permitir de propósito para a pessoa inocente a liberdade de se casar novamente. Então, a visão que o divórcio é somente “de cama e mesa de matrimônio” - dos deveres e obrigações do matrimônio somente e não do laço dele - é uma falsa visão.
A primeira visão – que o divórcio dissolve o laço do matrimônio absolutamente e permite o recasamento - é a verdadeira visão. Há três razões para isto.
Primeiro, que aquilo que dissolve a estrutura (união) do matrimônio e assim destrói todas as práticas (obrigações) do matrimônio dissolve também o laço matrimonial. Se você acabar com a estrutura inerente e propósito e fim de qualquer relação moral, a relação deixa de existir. E isto é o que é terminado por adultério e então pede divórcio. Porque a estrutura do matrimônio consiste nisto: As duas pessoas se tornam "uma carne" (Gên 2:24; Mt 19:6) mas esta união é dissolvida por adultério, porque a adúltera se torna uma carne com o adúltero (I Cor. 6:16). Assim ela não é mais nenhuma carne em união com o marido dela, mas ela quebra o laço e pacto do matrimônio absolutamente. E quando ela quebra o laço ela destrói todas as obrigações e deveres que acompanham aquele laço também absolutamente. Porque como se afirma um argumento de um laço que existe se
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ao mesmo tempo estiver quebrado? Aquele silêncio é um laço? Ou como um pode falar de um laço que não liga? Mas isto não é o que a segunda visão ensina? Por isso não cabe na própria legislação civil qualquer direito à parte que adulterou quando o laço é desfeito, por ter sido quebrado de tal forma.
Em segundo lugar, se a parte inocente de um divórcio não tem a liberdade de se casar novamente então duas coisas resultam:
1. A parte inocente está privada da sua liberdade pelo pecado do outro. Isto está contra a natureza. Isto sujeita o íntegro ao poder do mau porque todo cônjuge mau e infiel então tem isto no poder deles, a saber, privar o sócio deles dos direitos e liberdades naturais deles.
2. A parte inocente, se não lhe é permitido recasar, fica exposta a pecar e a julgamento por causa da deslealdade de outro. Nosso Salvador permitiu o divórcio no caso de adultério como uma opção para a parte inocente para permitir a liberdade deles, vantagem, e alívio. Mas se à pessoa não é permitido recasar, esta liberdade não seria nenhuma liberdade, mas provaria ser somente uma armadilha e um jugo a eles. Porque se a pessoa não tiver o dom de celibato, então ela fica exposta a pecar e julgamento.
Em terceiro lugar, nosso bendito Salvador dá direção expressa no caso de adultério. "E eu digo a vocês, quem se divorciar da sua esposa, exceto por fornicação, e se casar com outro, comete adultério" (Mt 19:9). Assim está evidente e é o senso claro das palavras que o oposto também é verdade: "Aquele que despede sua esposa por
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causa de fornicação e se casa com outra não comete adultério.". De acordo com Jesus, o laço do matrimônio está no caso de adultério dissolvido, e a pessoa que se separa da sua esposa está em liberdade para se casar novamente. Enquanto Jesus ensina contra se divorciar da esposa e se casar novamente por qualquer motivo, ele apresenta a exceção do adultério que permite ao marido e a ambos se divorciarem e se recasarem.
Toda exceção é um caso particular que é contraditório à regra geral. A regra aqui é em geral: "Quem se divorcia da sua esposa e se casa com outra comete adultério.". A exceção aqui é: "Quem se divorcia da sua esposa por causa de fornicação e se casa com outra não comete adultério.". Isto poderia ser declarado de outro modo. A regra em geral: "Não é legal se divorciar de uma esposa e se casar com outra; é adultério.". A exceção: "É legal para um homem se divorciar da sua esposa por causa de fornicação, e se casar com outra.".
É inútil discutir que os outros escritores do evangelho, Lucas e Marcos não incluem a cláusula de exceção nos seus evangelhos (Mc 10:11-12; Lc 16:18). Porque embora eles não façam um comentário sobre isto, é duas vezes usado por Mateus (Mt 5:32; 19:9) e então foi falado certamente por nosso Salvador. Também, todo intérprete bom sabe que onde a mesma coisa é informada por vários escritores, as expressões mais breves e mais curtas serão medidas e serão interpretadas pelas citações mais completas e mais longas. E toda regra geral na Bíblia será
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limitada por qualquer exceção presa a isto em outro lugar da Bíblia. Saiba com certeza que é difícil encontrar regras gerais na Bíblia que não admitam qualquer exceção apresentada pela própria Bíblia.
É até mesmo mais inútil discutir que nosso Salvador só fala aqui com respeito aos judeus de forma que a cláusula de exceção tem aplicação a eles. Na resposta de Jesus para os fariseus ele recorre à lei da criação e às ordenações da criação original que têm autoridade sobre todo o gênero humano e não somente sobre os judeus. Ele declarou que a instituição original do matrimônio foi antes da lei de Moisés e então não está limitada somente aos judeus. Então, esta é uma lei que é aplicável a todo o gênero humano.
Também, quando o fariseus indagaram de Jesus relativamente ao divórcio, eles indagaram de um divórcio que era absoluto e que dava liberdade de se casar ao partidário do divórcio. Eles nunca tinham ouvido falar de qualquer outro tipo de divórcio. Eles nunca tinham ouvido falar de uma mera separação "de cama e mesa de matrimônio” no Velho Testamento. Nosso Salvador responde a questão deles de acordo com a compreensão deles e então recorre ao laço do matrimônio e não somente a uma separação dos deveres e obrigações. Então, Jesus nega as causas de divórcio que os fariseus permitiam e então afirma a fornicação como a única causa de divórcio. Ele ensina então que este divórcio do qual eles indagaram, era um divórcio absoluto do laço do matrimônio. Isto é
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como o fariseu entenderia isto e nós não podemos assumir que Jesus não lhes respondeu de acordo com a compreensão deles.
Além disso, o Apóstolo Paulo claramente afirma que a parte inocente que é maliciosa e teimosamente abandonada pelo seu cônjuge está livre para se casar novamente. Isto afirma que a religião Cristã não remove o direito natural e privilégio dos homens no caso de divórcio. “Mas, se o descrente quiser apartar-se, que se aparte; em tais casos não fica sujeito à servidão, nem o irmão, nem a irmã; Deus vos tem chamado à paz.” (I Cor 7:15). Se um cônjuge parte - se devido a diferenças religiosas ou caso contrário - e recusa viver junto com um marido ou esposa, a parte abandonada está em liberdade de se casar novamente. O cônjuge abandonado está em liberdade porque todos os propósitos e obrigações do matrimônio são frustrados por esta condição de deserção. Então, o que deve um irmão ou irmã que são crentes fazer no caso em que eles foram abandonados? O apóstolo diz: "Eles não estão em escravidão, mas livres e assim a liberdade de se casarem novamente.".
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Do Entendimento à Prática da Santificação Evangélica
Texto traduzido adaptado e adaptado por Silvio Dutra, baseado no tratado de John Owen sobre a obra do Espírito Santo
CAPÍTULO 1
A NATUREZA DA SANTIFICAÇÃO E A EXPLICAÇÃO DA SANTIDADE EVANGÉLICA
A regeneração ou conversão do eleito de Deus, é a primeira grande parte da obra de santificação operada pelo Espírito Santo, porque seria uma coisa inconcebível que o pecador fosse justificado em Cristo Jesus e permanecesse exatamente como dantes, debaixo dos seus antigos pecados. Por isso há um real trabalho de santificação do Espírito Santo no momento mesmo do novo nascimento que transforma o pecador num santo de Deus.
Mas este trabalho de transformação do pecador à imagem e semelhança de Cristo prosseguirá numa segunda obra do Espírito Santo, que não é instantânea como a primeira da regeneração, e que se estenderá por toda a vida do crente, no trabalho progressivo da santificação que começou na regeneração.
E é particularmente a natureza deste segundo trabalho progressivo do Espírito Santo que pretendemos analisar neste capítulo.
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Este trabalho da santificação é o complemento do aperfeiçoamento da nova criatura gerada pelo Espírito na regeneração. E este trabalho visa principalmente criar um corpo místico para o Filho de Deus, onde os membros vivam espiritualmente unidos a Ele, que é o cabeça e a vida deles (Col 3.4; I Cor 12.12).
E é imperioso conhecer a natureza deste trabalho do Espírito Santo na santificação progressiva do corpo de Cristo que é a igreja, e particularmente de cada um dos membros que compõem este corpo, para que possamos ser cooperadores na realização deste trabalho, de modo a não ficarmos detidos em nosso progresso por motivo de falsas concepções ou falsos ensinos relativos ao assunto.
Muitos colocam um peso demasiado na responsabilidade do homem neste trabalho, por desconhecerem que a fonte de toda santidade é o próprio Deus, e outros enfatizam a exclusiva operação da graça divina sem o concurso das obras, por confundirem santificação progressiva com justificação e regeneração.
Assim, antes de tudo cabe esclarecer que há atos de Deus na salvação que são exclusivos da Sua graça, sem o concurso das obras, e isto se vê especialmente na eleição que é por pura graça, e também na justificação e na regeneração, sendo que nestas se exige arrependimento, fé e obediência em relação a Cristo e à Palavra, para que instantaneamente se receba a justificação e a regeneração que nos transformam em filhos de Deus e que nos dão o direito de acesso ao céu e sermos livrados da morte eterna, da
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condenação eterna no inferno, e da escravidão à Lei, a Satanás e ao pecado. Tudo isto é obtido por graça, com o concurso da obediência à Palavra que nos ordena o arrependimento e a fé em Cristo, para que possamos obter tão preciosa salvação, se podemos chamar esta obediência de concurso de nossas obras, porque isto consiste simplesmente no ato de crer e se voltar para Deus, e nos sujeitarmos ao trabalho do Espírito Santo em nossos corações, transformando-nos instantaneamente em novas criaturas.
Agora, há um concurso mais efetivo das nossas obras na santificação progressiva, na recepção das bênçãos de Deus, inclusive aquelas que garantirão os nossos galardões futuros, de modo que além de haver um trabalho da graça nisto tudo que é o elemento motivador da nossa fidelidade, obediência e consequentemente de nossas boas obras, há também uma consideração desta nossa fidelidade e obediência a Deus, especialmente aos mandamentos que nos ordena em Sua Palavra, de maneira que sejamos incentivados a permanecer na prática do bem segundo a Sua boa, perfeita e agradável vontade.
Assim, se colocássemos na extremidade de uma gangorra a graça, e na outra a responsabilidade humana, ou nossas boas obras, então esta gangorra estaria desnivelada em muito para o lado da graça, por ser esta infinitamente mais pesada em tudo o que se refere aos atos relativos à salvação, mas a responsabilidade humana estaria exercendo também o seu peso na outra
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extremidade porque a nossa fidelidade e obediência, em vigilância, perseverança, diligência, com vistas à nossa santificação, também conta e muito neste trabalho progressivo que é realizado pelo Espírito Santo mediante a Palavra de Deus.
Mas é fora de qualquer dúvida, que a inclinação desta gangorra penderia muito mais para o lado da graça, porque por maiores e melhores que sejam as nossas boas obras, elas representam um peso muito menor, diríamos infinitamente menor, do que o da graça, na nossa santificação.
Contudo, a par desta grande diferença de importância concurso da nossa diligência, vigilância, perseverança, comunhão, oração, obediência à Palavra, e fidelidade a tudo o mais que se descreve na Bíblia como nossos deveres, é absolutamente essencial para que haja tal crescimento, assim como uma simples pitada de fermento é o que faz crescer toda a massa. Sem o nosso empenho diligente em obediência à vontade de Deus, nenhuma graça será recebida para que este crescimento ocorra.
A natureza desta santificação progressiva pode ser resumida nas palavras do apóstolo Paulo em I Tes 5.23:
“E o próprio Deus de paz vos santifique completamente; e o vosso espírito, e alma e corpo sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.” (I Tes 5.23).
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No original grego temos:
autov de o yeov thv eirhnhv agiasai umav oloteleiv kai oloklhron umwn to pneuma kai h quch kai to swma amemptwv en th parousia tou kuriou hmwn ihsou cristou thrhyeih
Paulo proferiu estas palavras depois de ter relacionado na epístola um grande número de deveres particulares dos crentes, indicando que a santificação deles dependeria da sua obediência àqueles mandamentos. E é exposto o motivo desta santificação: estarem preparados para a vinda do Senhor, isto é, o que eles deveriam fazer não seria propriamente para atender à própria vontade e interesse deles, senão aos do Senhor.
Mas este simples versículo, enfatiza que seria o próprio Deus que realizaria este trabalho de santificação completa do espírito, alma e corpo dos crentes de Tessalônica.
A versão Almeida atualizada traz: “vos santifique em tudo”, em vez de “vos santifique completamente”. Mas este “em tudo” ou “completamente”, não se referem às partes citadas posteriormente pelo apóstolo, a saber, corpo, alma e espírito, porque há uma separação de pensamentos pela conjunção “e” (kaí) entre o que foi dito antes quanto o modo da santificação que deve ser completa, total, perfeita, e as áreas da vida em que ela deveria ser operada por Deus, no homem todo: corpo, alma e espírito.
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E é importante citar que o pensamento de uma santificação completa é destacado no original grego com o uso da palavra oloteleiv que no grego significa perfeito, completo em todas as suas partes, e esta palavra está ligada ao verbo santificar (agiasai), que se encontra na voz ativa do tempo aoristo, que indica uma ação que não foi completada, e que ainda permanece em progressão. Por exemplo: santificou indica uma ação completa. Mas santificando, indica algo que deve ser feito progressivamente.
E uma outra palavra de significado parecido ao da palavra oloteleiv, é usada pelo apóstolo para dizer quais as partes do corpo, da alma e do espírito deveriam ser assim santificadas completamente. Esta palavra é oloklhron, que significa íntegro, inteiro, quanto a uma purificação sem mancha ou defeito. Então a vontade de Deus para conosco é a de uma santificação completa que atinja todas as áreas da constituição humana, na plenitude de todas as suas partes, tanto interiores quanto exteriores, visíveis, quanto invisíveis, conscientes, quanto inconscientes. O que está em foco nesta santificação é a pessoa toda, e todas as suas faculdades operantes em todas as partes constituintes do seu ser, quer físicas, mentais, espirituais, emocionais, sentimentais. Nada em absoluto poderá ficar de fora deste trabalho do Espírito Santo na reconstrução da nova criatura à imagem de Cristo, até levá-la à plenitude desta imagem, a saber à estatura de varão perfeito, que é a estatura do próprio
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Cristo, a ponto de se poder dizer: ”já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mIm”.
Não há objetivo mais fascinante e desafiante do que este que foi proposto por Deus a todos os que têm sido adotados por Ele como Seus filhos amados. Ele objetiva com ardente expectativa dar este crescimento espiritual através da santificação, a todos os Seus filhos. E nisto Ele tem o propósito principal de poder manifestar a eles toda a Sua glória e amor, em plena comunhão espiritual, que jamais poderão ser compartilhados se este crescimento não for realizado. Como pode um bebê entender as coisas da vida de um adulto? E como podem bebês espirituais entenderem a plenitude da vida que há no Deus infinito e perfeito? A natureza de Deus é amor e Ele deseja compartilhar de Si mesmo, de Seus atributos com os Seus filhos, mas eles não poderão entender e tributar o devido valor à gloriosa pessoa de Deus se eles não fizerem progresso no seu crescimento espiritual. E o que é muito precioso e que há na natureza de Deus, que Ele deseja compartilhar com Seus filhos amados é a Sua própria santidade. Por isso se diz que Ele nos disciplina para podermos ser participantes dela (Hb 12.10). E devemos lembrar que é da própria natureza do amor o desejo de compartilhar com outros, de dar-se a outros, de manifestar sua bondade a outros, e poder ter a correspondência de atos, em sabedoria de compreensão daquilo que tem sido compartilhado mutuamente. E se as coisas do Espírito se discernem espiritualmente, e se somente o homem
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espiritual, amadurecido pode discernir as coisas do Espírito (I Cor 2.11-15), então não é difícil entendermos o motivo pelo qual todos os crentes devem crescer espiritualmente segundo o propósito de Deus, porque aqueles que se alimentam de leite e são meninos em Cristo, são ainda crentes carnais que não podem experimentar a plenitude de Deus (I Cor 3.1-3), porque Ele é espírito e os seus adoradores somente poderão adorá-lo em espírito e não segundo a carne, e segundo o conhecimento da verdade implantada em suas próprias naturezas pelo Espírito, mediante aplicação da Palavra de Deus às suas vidas.
E esta santificação, apesar de ser um dever para todos os crentes, entretanto não se encontra no próprio poder deles para ser realizada, porque a quase totalidade deste processo, como tudo o mais na salvação é dependente da graça de Deus e do Espírito Santo, daí se dizer “Pai santifica-os” e “Eu sou o Senhor que vos santifica”. Este trabalho é basicamente de Deus e não do homem. Apesar de, como vimos antes, ter um grande peso neste processo a pequena e falha parte da participação da responsabilidade humana neste processo, ao lado da perfeita infalível ação da graça divina, porque, como já dissemos antes, se o peso infinitamente maior é da operação da graça de Deus, não obstante, nenhuma graça operará em nós se não houver diligência, vigilância, e perseverança, da nossa parte, nos deveres ordenados pela Palavra, e que são relativos à nossa santificação. A medida de graça é sacudida e recalcada para nós, quando
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obedecemos a Deus, oferecendo-Lhe nossos corpos como sacrifício vivo, e não nos conformando a este mundo, e todo o nosso ser para o trabalho de purificação de todas as áreas da nossa vida, pelo Espírito Santo. Assim a nossa obediência e fidelidade a Deus, mediante prática reverente da Sua Palavra é essencial para o recebimento desta medida de graça, sem a qual o trabalho não poderá ser feito. Ninguém se iluda portanto que é possível ser santificado por Deus sem esta diligência nos deveres ordenados na Palavra.
Os crentes aos quais foi dirigida a epístola aos Hebreus estavam deixando de fazer progresso em santificação exatamente em razão desta indolência e inércia espiritual, e por isso foram exortados a firmarem os joelhos trôpegos e as mãos decaídas, e correrem a carreira que lhes estava proposta submetendo-se à correção e disciplina de Deus, que tem em vista nos tornar participantes da Sua santidade.
E tão vital é isto nos conselhos de Deus para todos os Seus filhos que a todos é ordenado nesta mesma epístola que sigam, isto é, que busquem a paz e a santificação, com toda a sua diligência, porque sem isto é impossível participar efetivamente da vida de Deus, porque Ele é perfeitamente Santo, e é uma demanda da natureza do atributo da santidade divina que aqueles que se aproximarem de Deus devem, de igual maneira, ser também santos, porque aquele que não estiver santificado, não pode de modo algum aproximar-se dEle e permanecer na Sua presença. Daí serem tantas e veementes
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as exortações bíblicas no sentido de que nos arrependamos, nos humilhemos, nos quebrantemos, que confessemos os nossos pecados, antes de podermos entrar na presença de Deus. Aqueles sacerdotes do antigo pacto que eram admitidos apenas no Lugar Santo do tabernáculo terreno, deviam se lavar antes na água purificadora da bacia de bronze. Mas aos sumo sacerdotes era exigido que não somente se lavassem com a mesma água purificadora, mas que estivessem em estrita santidade de vida interior, porque somente a eles era permitido entrar no Santo dos Santos, mas apenas uma única vez por ano, indicando isto, o grau de santidade daquele lugar, separado e designado daquela forma pelo próprio Deus, para ser uma indicação ilustrativa da perfeita santidade que existe no terceiro céu, lugar onde se encontra não uma arca de madeira e ouro com tábuas de pedra, mas o trono do próprio Deus trino. E os que se aproximam do Santo dos Santos celestial devem ser lavados antes de seus pecados pelo Espírito Santo. Nenhum crente que ande desordenadamente e que não leve em conta a necessidade de tal purificação, não poderá ser admitido de modo algum naquele Santíssimo lugar, porque o sangue de Jesus foi derramado exatamente para o propósito de que eles possam ser continuamente purificados de toda má consciência, e terem o coração lavado de maneira que possam subsistir na presença deste Deus Santo que é um fogo consumidor, pronto a queimar toda impureza.
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É por isso que o texto de I Tes 5.23 é direto, enfático, totalmente claro quanto à verdade de que todos os crentes serão infalivelmente santificados ao longo de suas vidas, e preservados limpos, até à vinda de Jesus. E se esta é a vocação prevista por Deus para os Seus filhos, não há nenhuma dúvida quanto ao desejo dEle relativamente à santificação plena deles, e o dever da máxima diligência deles em se empenharem na busca deste objetivo que foi proposto por Deus a cada um deles.
“Porque esta é a vontade de Deus, a saber, a vossa santificação: que vos abstenhais da prostituição,” (I Tes 4.3).
“2 Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifesto o que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim como é, o veremos.
3 E todo o que nele tem esta esperança, purifica-se a si mesmo, assim como ele é puro.” (I Jo 3.2,3).
Assim esta santificação é o grande privilégio dos crentes, e se a segurança eterna deles depende absolutamente disto, porque se exigirá evidência de santificação para que se possa ver a Deus, então empenhemos toda a nossa diligência para procurar entender a natureza e a necessidade da santificação, examinando com vívido e reverente interesse tudo o que a Bíblia nos ensina sobre isto.
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Deus é a fonte eterna de toda a santidade e então é somente nEle que poderemos achar a fonte desta graça, e não em qualquer criatura, porque toda a santidade que possa existir no céu e na terra, terá sido recebida de Deus, que é a sua fonte.
Assim, aqueles que pensam que podem santificar-se a si mesmos sem o concurso de Deus e da Sua graça incorrem numa grande ilusão e erro, e se encontram numa postura orgulhosa que afasta a graça de Deus, e isto é uma afirmação arrogante de que não dependem dEle.
Devemos evitar a todo custo o grande erro do pelagianismo, porque apesar de Pelágio ter declarado que a santidade é de Deus, no entanto, ele, e muitos dos que o seguem na sua maneira prática de ver e agir, fazem todo o trabalho de santificação depender do próprio esforço pessoal deles, à parte de um trabalho da graça, porque não buscam isto por um andar contínuo no Espírito, senão em tentativas de aplicação dos mandamentos da Palavra de Deus segundo o homem natural e não segundo o homem espiritual, criado em Cristo Jesus. Isto é o que gera tantos legalistas na igreja, porque eles se iludem com a sua forma externa de santidade, que não chega a produzir uma verdadeira transformação em suas atitudes e hábitos, porque o trabalho não é feito no coração deles, porque obstruem totalmente qualquer ação do Espírito Santo neste sentido.
E aquilo que é de nós mesmos, ou forjado por qualquer meio proveniente de nossas
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habilidades naturais, não é de Deus, porque o que é nascido da carne é carne, e de modo nenhum pode provir qualquer coisa boa e espiritual de nossa natureza terrena decaída no pecado. Assim, quando muito, o que se obterá é aquele tipo de justiça própria do fariseu da parábola que tanto desagrada a Deus e que deixa os homens sem a possibilidade de serem justificados dos seus pecados. Então se um crente procura se aperfeiçoar na carne e não no Espírito, até mesmo os seus pecados não poderão ser perdoados por Deus por causa desta postura orgulhosa que obstrui o trabalho da graça no seu coração. E ainda que este crente não venha a ser condenado eternamente porque foi justificado e regenerado pela fé em Cristo, no entanto, os seus pecados perturbarão a sua comunhão com Deus, porque o pecado faz separação entre Ele e nós, quando não são confessados e deixados. E como poderemos ter nossos pecados perdoados se não confiamos no sangue de Cristo e no trabalho da graça de Deus e do Espírito em nossos corações para termos os pecados perdoados e sermos purificados de toda injustiça, se confiamos que podemos, nós mesmos, purificarmo-nos de nossas transgressões, pelos nossos próprios esforços e méritos? Isto é uma grande afronta a Jesus, ao Seu sacrifício por nós, e ã Sua honra como sacerdote, profeta e rei de nossas almas.
Por isso, não é sem motivo que a justificação e santificação são geralmente associadas à paz. Neste texto de I Tes 5.23, a santificação está associada à paz, porque Paulo diz: “o Deus de
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paz”. Isto porque a santificação produz paz. E não uma paz qualquer, mas a paz que procede de Deus. Condição que é resultante da paz com Ele, em razão deste trabalho de destruir o pecado, que é o que desperta a ira de Deus e que afasta a Sua santa presença de nós. Então uma vez tratado o problema do pecado, através do arrependimento, da confissão, do quebrantamento em Sua presença, e do trabalho de santificação em purificação de nossos corpos, almas e espíritos, então o que se há de experimentar como resultado será a paz com Deus. E esta paz é efetivamente infundida em todas as áreas do nosso ser, de maneira que podemos experimentar o poder real do Senhor em trazer alívio e descanso às nossas almas. E os efeitos desta paz são percebidos e sentidos em nossos próprios corpos e mentes. Deus deixa sempre uma bênção atrás de si quando nos consertamos na Sua presença. Ele cumpre a promessa de sarar a nossa terra quando aplicamos com sinceridade o que Ele nos ensinou em II Crôn 7.14:
“e se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, e orar, e buscar a minha face, e se desviar dos seus maus caminhos, então eu ouvirei do céu, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra.” (II Crôn 7.14).
Assim, devemos buscar a santificação porque um dos resultados dela é esta paz com Deus e uns com os outros. Se amamos a paz que é fruto do Espírito e se somos chamados a esta paz,
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devemos então estar conscientes que nunca poderemos ter isto sem santificação. E a igreja depende vitalmente disto, porque sem a paz e sem almejar a paz, não valorizaremos a santificação o tanto quanto ela deve ser valorizada, porque um dos efeitos imediatos dela é esta paz com Deus, porque Ele demonstrará a Sua satisfação em relação a nós, por causa de estarmos atendendo o Seu desejo para conosco, que é afirmado expressamente na Palavra, como sendo a nossa santificação. E o fruto da paz será a comunhão com Deus e com os irmãos, e é a este fruto da santificação na vida que o apóstolo João se refere na sua primeira epístola:
“6 Se dissermos que temos comunhão com ele, e andarmos nas trevas, mentimos, e não praticamos a verdade;
7 mas, se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus seu Filho nos purifica de todo pecado.” (I Jo 1.6,7).
Esta paz é também objetiva quanto a nos livrar da condenação futura, porque ela põe um ponto final na guerra que Deus tinha conosco, por sermos pecadores. E daí se dizer que pela justificação pela fé obtivemos esta paz com Deus por meio de Cristo Jesus (Rom 5.1). Mas esta paz objetiva, como vimos foi devida à justificação. Mas agora dependemos da paz subjetiva que é operada pela nossa santificação. Porque esta
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trata dos nossos pecados diários e nos habilita a continuarmos mantendo comunhão com Deus.
O Espírito de Deus é chamado de Espírito Santo porque Ele é o autor de toda a santidade em todos aqueles que são feitos dela participantes.
Nosso dever principal neste mundo é, saber o que é ser santo corretamente, e assim realmente ser.
O que não é realmente santo não verá a Deus, e a Bíblia é muito clara e direta quanto a isto. Pois não existe um lugar intermediário para as almas serem aperfeiçoadas depois da morte. Não há purgatório. Há depois da morte somente dois lugares para o destino dos espíritos desencarnados: ou céu ou inferno. Na parábola de Lázaro e o rico epulão Jesus deixou bem claro que aqueles que se encontram no paraíso celestial não podem passar para o inferno, e nem os que se encontram no inferno passarem para o céu, porque o admitir tal possibilidade seria admitir que Deus possa errar no Seu juízo destinando almas que não deveriam ir para o inferno e que acabaram lá se encontrando, ou o oposto a isto em relação ao céu. Sequer podemos imaginar Deus errando por ter deixado em cadeias eternas alguém que na verdade deveria ir para o céu, e retirar então posteriormente tal pessoa das chamas eternas, para reparar um possível erro como este que sequer podemos admitir em pensamento porque desonra a Majestade dos céus, principalmente em Seus atributos de justiça, sabedoria, onisciência e onipotência. Por isso quando Jesus foi pregar aos espíritos em prisão
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depois da Sua morte na cruz (I Pe 3.19,20). Conforme lemos neste texto da primeira epístola de Pedro nós vemos o apóstolo argumentando com os crentes a terem paciência em seus sofrimentos, assim como Jesus foi paciente até a sua morte, porque há grande recompensa nisto e livramento do horror da condenação eterna. E toma como exemplo todos os que morreram no dilúvio e que se encontravam agora em cadeias eternas, com exceção da família de Noé (oito pessoas). Se foram milhões que morreram afogados, todos eles sem uma só exceção se encontram agora nas chamas eternas do inferno, e se não estavam bem convencidos da razão de estarem ali, Cristo foi lhes revelar o triunfo da obediência a Deus que havia beneficiado a Noé, o qual a propósito pregou a eles a oportunidade de arrependimento e salvação por 120 anos, mas sucedeu, como diz o apóstolo Pedro, todos foram rebeldes contra a longanimidade de Deus, da mesma forma como muitos em seus dias estavam sendo rebeldes contra a mesma longanimidade que lhes estava sendo oferecida em Cristo, e o destino eterno então que eles poderiam aguardar não poderia ser outro senão o mesmo a que ficaram sujeitas todas aquelas pessoas que haviam morrido no dilúvio.
“17 Porque melhor é sofrerdes fazendo o bem, se a vontade de Deus assim o quer, do que fazendo o mal.
18 Porque também Cristo morreu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-
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nos a Deus; sendo, na verdade, morto na carne, mas vivificado no espírito;
19 no qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão;
20 os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava, nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas, isto é, oito almas se salvaram através da água,” (I Pe 3.17-20).
Então conclui o apóstolo que é melhor sofrer fazendo o bem, se a vontade de Deus assim o quer, do que fazendo o mal. E destaca que assim como Cristo morreu uma só vez, por causa dos pecados, devemos ter em mente que todos morrem também uma só vez, e depois disto vem o juízo, pois os que praticam o bem por serem de Deus terão um destino diferente daqueles que praticam o mal, assim como ilustra o que se deu com aqueles que rejeitaram a salvação que lhes foi oferecida nos dias de Noé, e com este e com os que foram salvos da destruição das águas na arca. Aquele dilúvio foi erguido como um monumento da justiça de Deus para lembrar os homem em todas as épocas da história da humanidade que ele julgará e condenará eternamente todos aqueles que não forem santos, porque não há nenhuma outra oportunidade para que alguém se salve depois de ter morrido sem salvação, porque tal espírito é lançado imediatamente em cadeias eternas no inferno.
Este ensino sobre o destino que está reservado aos ímpios, na condição de não eleitos de Deus, e nos quais não há portanto nenhum trabalho do
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Espírito Santo em santificação de seus corpos, almas e espíritos, isto é, da vida toda, é reforçado por Pedro em sua segunda epístola, na qual também volta a destacar o contraste da condenação eterna dos rebeldes dos dias de Noé, e a salvação deste e de sua família, e estendendo os exemplos daqueles que já se encontram condenados pela prática de suas más obras, tal como o foram os habitantes de Sodoma e Gomorra. E para mostrar que Deus faz distinção entre os que são seus, daqueles que não Lhe conhecem, citou a salvação de Ló apesar de ter vivido entre os habitantes daquelas cidades que foram colocadas debaixo do juízo de Deus como um exemplo do que sucederá a todos os que praticam males e nos quais não há quaisquer evidências de um trabalho de santificação do Espírito Santo. Torna-se portanto altamente relevante e necessário estudar as características destas evidências a bem de nossas próprias almas, de modo que não nos iludamos acerca do que seja a verdadeira santidade que é exigida por Deus para que não sejamos condenados por causa de um juízo incorreto julgando-nos santos, quando na verdade não o sejamos, e como já afirmamos anteriormente, ninguém poderá acessar ao céu sem uma verdadeira santidade.
O apóstolo pois se levanta contra todo ensino contrário à verdade, contra aqueles que pervertem os retos e justos caminhos do Senhor com suas heresias destruidoras, afirmando possibilidade de salvação sem santificação, inclusive possibilidade de salvação depois da
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morte querendo atribuir a Deus a incapacidade de realizar um reto e perfeito juízo quanto ao destino eterno de cada um segundo as suas obras e falta ou presença de evidências do trabalho de santificação que é o marco identificador, delimitador e comprovador de quem é e quem não é eleito.
“1 Mas houve também entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá falsos mestres, os quais introduzirão encobertamente heresias destruidoras, negando até o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição.
2 E muitos seguirão as suas dissoluções, e por causa deles será blasfemado o caminho da verdade;
3 também, movidos pela ganância, e com palavras fingidas, eles farão de vós negócio; a condenação dos quais já de largo tempo não tarda e a sua destruição não dormita.
4 Porque se Deus não poupou a anjos quando pecaram, mas lançou-os no inferno, e os entregou aos abismos da escuridão, reservando-os para o juízo;
5 se não poupou ao mundo antigo, embora preservasse a Noé, pregador da justiça, com mais sete pessoas, ao trazer o dilúvio sobre o mundo dos ímpios;
6 se, reduzindo a cinza as cidades de Sodoma e Gomorra, condenou-as à destruição, havendo-as posto para exemplo aos que vivessem impiamente;
7 e se livrou ao justo Ló, atribulado pela vida dissoluta daqueles perversos
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8 (porque este justo, habitando entre eles, por ver e ouvir, afligia todos os dias a sua alma justa com as injustas obras deles);
9 também sabe o Senhor livrar da tentação os piedosos, e reservar para o dia do juízo os injustos, que já estão sendo castigados;” (II Pe 2.1-9).
Por que há este juízo de Deus sobre o mundo de ímpios? Exatamente pela falta de santidade. E como podem então os crentes viver privados disto e assim mesmo agradarem a Deus? É em verdadeira justiça e santidade que eles foram feitos novas criaturas em Cristo Jesus. Sem isto não se poderia dizer tal coisa a respeito deles.
“e a vos revestir do novo homem, que segundo Deus foi criado em verdadeira justiça e santidade.” (Ef 4.24).
Como podem os crentes se envergonharem de serem conhecidos como santos e até mesmo da própria Palavra santo, se o que traz a condenação eterna aos pecadores é exatamente esta falta de santidade?
Como podem se envergonhar de serem santos, se a própria terceira pessoa da Trindade se chama Espírito Santo?
Isto não é uma forma de se envergonhar de Cristo e de Suas palavras? Os que procuram ocultar a sua condição de filhos de Deus deveriam trazer à mente as palavras do Senhor aos que assim procedem:
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“Porquanto, qualquer que, entre esta geração adúltera e pecadora, se envergonhar de mim e das minhas palavras, também dele se envergonhará o Filho do homem quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos.” (Mc 8.38).
Como é possível um crente sentir-se bem em ser conhecido como alguém deste mundo (pois os crentes não são do mundo), e se conformarem ao mundo, não se envergonhando em nada quanto a isto, enquanto o Senhor define o mundo como uma geração adúltera e pecadora? Não têm portanto os ímpios vergonha de serem conhecidos como adúlteros e pecadores, e como podem os crentes seguir no mesmo caminho deles? Como podem sentir orgulho de serem achados na mesma condição deles, que é definida por Jesus de tal forma?
Se o próprio esforço pessoal para a obtenção de virtudes morais, que é separado de uma ação da graça de Deus no coração, não pode de modo algum Lhe agradar, porque não há nisto uma verdadeira santificação, quanto mais Lhe agradaria um viver deliberado no pecado?
É tempo pois de se abrir não apenas os olhos, mas sobretudo o coração para se permitir o trabalho da graça divina que nos santifica, e marcar definitivamente uma posição de quem está determinado a fugir de Babilônia para não ser coparticipante dos seus pecados e dos seus juízos.
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“4 Ouvi outra voz do céu dizer: Sai dela, povo meu, para que não sejas participante dos seus pecados, e para que não incorras nas suas pragas.
5 Porque os seus pecados se acumularam até o céu, e Deus se lembrou das iniquidades dela.” (Apo 18.4,5).
E não será boa educação, nem virtudes morais que poderão livrar os homens de tal juízo, senão uma verdadeira santificação operada pelo Espírito Santo. Enganam-se a si mesmos todos aqueles que pensam que estão fazendo um grande favor a Deus por não roubarem, matarem, adulterarem, porque isto é dever de todos os homens, e dizemos que não há nenhum mérito nisto porque pensar que a santidade do Deus Altíssimo, Todo-Poderoso consiste no trapo da justiça humana, é rebaixar, menosprezar o que é realmente esta santidade divina, de modo que isto não deixará de ter a devida paga no juízo.
Por isso é absolutamente essencial investigar, empenhando nisto toda a nossa diligência, qual seja a verdadeira natureza da santificação, para que não sejamos enganados com aquelas coisas que têm uma aparência de santidade, mas que na verdade nada têm a ver com a sua verdadeira natureza. E com isto poderemos estar comprando gato por lebre, e ficarmos satisfeitos com aquilo que não pode produzir a verdadeira satisfação tanto em nossas almas, quanto no coração de Deus. Mas não é apenas uma simples questão de satisfação que está envolvida no
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assunto da santidade, porque há danos sérios que podem ser experimentados por todos aqueles que estiverem trilhando caminhos falsos e enganosos que nunca nos levarão a achar o lugar onde se encontra esta pérola preciosa da santificação.
E este caminho é conhecido senão pelo próprio Senhor. Eles estão ocultos ao olho natural e à compreensão carnal. Nenhum homem pode pelo seu simples entendimento conhecer e entender a verdadeira natureza da santidade evangélica, e não é portanto de se admirar que esta doutrina da santificação seja menosprezada por muitos como sendo uma fantasia e algo inatingível. Como isto não pode ser conhecido se não for experimentado e vivido, então, voltamos a dizer não é para ficarmos admirados com o fato de existir tanta ignorância quanto à natureza da verdadeira santidade. O humilde e obediente à vontade de Deus chegará a conhecer isto porque Ele dá graça e entendimento aos que se humilham e que Lhe obedecem. Mas o orgulhoso, o que não se negar a si mesmo, o que não tomar a cruz, o que se estriba na sua própria sabedoria e conhecimento, jamais chegará a entender e a viver o verdadeira santidade.
E é aqui que devemos voltar ao texto de I Cor 2.11-15, para lembrarmos que coisas espirituais se discernem espiritualmente pela operação do Espírito Santo. Não são então propriamente do domínio do puro e próprio conhecimento racional do homem, mas da esfera da revelação sobrenatural do Espírito Santo.
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Não nos admiremos portanto de serem os legalistas, que não se sujeitam ao trabalho da graça pelo Espírito Santo em suas vidas, exatamente aqueles que são os inimigos mais ferozes e implacáveis da verdadeira santidade evangélica, que aponta para o grande peso da graça divina em santificação, conforme provamos pela ilustração gráfica da gangorra onde contrapomos o peso da graça com a responsabilidade humana.
E não é de se admirar também que os próprios crentes de um modo geral, sejam frequentemente alheios a isto, quanto à apreensão deles da verdadeira natureza da santidade e dos seus efeitos na vida. Geralmente eles se contentam com o trabalho inicial de santificação que ocorreu no dia da sua justificação e regeneração, quando tiveram um encontro pessoal com Cristo, mas não fazem muito progresso em santificação porque isto não somente exigirá deles grande empenho em diligência, como também um completo reconhecimento da dependência da graça de Deus, sujeitando-se efetivamente ao trabalho do Espírito Santo, na transformação e purificação progressiva de todas as áreas de suas vidas, especialmente do coração.
A maioria dos crentes não chega sequer a entender o trabalho inicial de santificação que foi feito em suas vidas pelo Espírito Santo na regeneração. Quão pouco eles conhecem do poder que há nisto, porque conhecemos muito pouco até mesmo dos nossos próprios poderes e faculdades naturais, notadamente aqueles que
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se referem ao espírito. E se diz que o trabalho de santificação deve ser feito no corpo, na alma e no espírito. E quanto conhecemos de nós mesmos? E se é tão pequeno este conhecimento de nós mesmos, quanto maior não é a nossa ignorância quanto aos poderes e faculdades que existem na graça de Deus.
Alguém indagará: “qual é a importância prática de se conhecer a natureza da santidade?”. E nós respondemos que é essencialmente para sabermos que muito pouco conheceremos sobre o modo como este trabalho será realizado, porque conhecemos, como dissemos antes, muito pouco, até acerca de nós mesmos e dos poderes naturais que residem em nosso corpo, alma e espírito. Mas, sabendo que o Deus que é perfeitamente sábio e poderoso, prometeu realizar este trabalho de santificação em todos quantos se dispuserem a obedecer a Sua vontade e confiarem inteiramente nEle para a realização deste trabalho, enquanto vão sendo progressivamente iluminados pelo Espírito a entenderem as coisas que lhes são ordenadas na Bíblia, para colocá-las em prática em suas próprias vidas, especialmente aquelas que dizem respeito à purificação de seus corações de toda impureza e pecados. E conhecendo-se a verdadeira natureza da santidade, não seremos iludidos por aquelas coisas que fingem ser esta santidade evangélica, e que na verdade não são, e que têm iludido e enganado uma grande multidão de pessoas. Nós aprendemos que a santificação depende da nossa diligência em obediência, mas é sobretudo uma obra nova,
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maravilhosa, sobrenatural, e que é conhecida e realizada através de revelação sobrenatural, procedente de Deus, porque Ele é a fonte de toda verdadeira santidade. É Ele quem pode tornar um coração verdadeiramente puro, e dar paz verdadeira às nossas almas. Remover todo mau temperamento e encher-nos de gozo, amor e alegria espirituais indizíveis que nos levam automaticamente a ter comunhão com todos os nossos irmãos que estejam vivendo a mesma experiência que nós. E é importante saber sobre a natureza da verdadeira santidade evangélica, porque é por meio deste conhecimento que podemos entender que uma verdadeira santidade sempre produzirá os bons frutos espirituais esperados por Deus dos Seus filhos. É a santificação quem permite que as nossas boas obras sejam de fato obras da fé. Obras resultantes do poder operante do Espírito Santo em nós. Então se há falta destes frutos, é para se desconfiar do tipo de santificação que temos perseguido. Se ela não conduz à paz, à comunhão, ao amor, e a esta frutificação referida, então é para desconfiarmos, e corrigimos o nosso rumo, através da busca do conhecimento do que seja a verdadeira natureza da santidade, para que não nos enganemos mais em nossos esforços em santificação.
Assim entendemos que a santidade é imanente em Deus porque Ele é santo em si mesmo. Isto é, Ele é santo em Sua própria natureza. A santidade é o estado mesmo da Sua natureza.
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Nós dizemos que esta santidade é evangélica porque ela é o resultado da nossa fé no evangelho, e é infundida em nós no trabalho do Espírito Santo tanto na regeneração quanto no processo progressivo da santificação.
E o argumento que afirma a necessidade da nossa santidade é a eleição e filiação a Deus. No próprio corpo da epístola aos Tessalonicenses, no qual marcamos o texto de I Tes 5.23 como ponto de partida para a natureza da santificação nos crentes, nós encontramos logo no início do primeiro capítulo desta mesma epístola, Paulo afirmando aos tessalonicenses o que lemos no verso 4:
“conhecendo, irmãos, amados de Deus, a vossa eleição;” (I Tes 1.4).
Paulo estava plenamente persuadido da eleição daqueles aos quais estava dirigindo a sua epístola, de modo que o assunto ali tratado é apenas do interesse dos eleitos de Deus, e diz respeito àquelas coisas às quais eles devem estar atentos e se aplicarem justamente em razão desta sua condição de serem eleitos de Deus. Porque tendo estes sido eleitos, atenderam ao chamado à salvação da qual eles devem agora diligentemente desenvolver crescendo na graça e no conhecimento de Jesus Cristo.
Então, se alguém perguntar a um crente porque ele deve se santificar a resposta direta e óbvia deve ser: “porque sou eleito e filho de Deus, que é santo”.
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Não é nosso propósito nos estendermos neste livro acerca de tudo o que está relacionado à eleição e à regeneração, senão à santificação que deve se seguir à regeneração, mas devemos tecer estes rápidos comentários acerca da eleição e da regeneração para o propósito de fixarmos os marcos, os pontos de partida desta santificação evangélica, quanto ao seu modo de realização, de maneira que não fiquemos estagnados e satisfeitos com a santificação recebida na regeneração e paremos ali naquele exato ponto, pensando que tudo o que era exigido de nós, do ponto de vista de Deus, era apenas que tivéssemos um encontro pessoal e transformador com Cristo, sem nos preocuparmos, dali por diante com o estado da nossa alma, corpo e espírito, em santificação diante de Deus.
Muitos têm parado na justificação e na regeneração, como já comentamos anteriormente, muitas vezes, por uma má compreensão quanto à aplicação de determinadas passagens bíblicas, que parecem indicar que a justificação e a regeneração são o tudo do propósito de Deus em relação aos crentes, quando isto não é de modo nenhum verdadeiro, porque há muitas outras passagens bíblicas que afirmam a necessidade da santificação progressiva que deve se seguir à regeneração e que deve ser contínua e duradoura por toda a vida.
Por exemplo, quando lemos Rom 4.2-8:
“2 Porque, se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não diante de Deus.
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3 Pois, que diz a Escritura? Creu Abraão a Deus, e isso lhe foi imputado como justiça.
4 Ora, ao que trabalha não se lhe conta a recompensa como dádiva, mas sim como dívida;
5 porém ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça;
6 assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus atribui a justiça sem as obras, dizendo:
7 Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos.
8 Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputará o pecado.” (Rom 4.2-8).
O que muitos concluem destas palavras?
Eles afirmam que não é necessário obras de justiça da parte do crente porque o texto aqui é muito claro e fala a respeito disto. Mas nós perguntamos a estas pessoas: “sobre o que o apóstolo está falando: sobre justificação ou santificação?”. A resposta está no próprio contexto, pois ele afirma que Abraão foi justificado pela fé nos versos 2 e 3. Então ele está falando do modo da justificação que é realmente somente pela fé sem o concurso das obras.
Mas, nesta mesma epístola aos Romanos ele vai falar também sobre o dever da santificação, que é um trabalho diferente da justificação e que deve se seguir a ela, e então aqui ele destaca a necessidade das obras juntamente com a fé e o trabalho da graça, para a santificação:
“12 Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para obedecerdes às suas concupiscências;
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13 nem tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado como instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a Deus, como redivivos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos de justiça.
14 Pois o pecado não terá domínio sobre vós, porquanto não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.
15 Pois quê? Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo nenhum.
16 Não sabeis que daquele a quem vos apresentais como servos para lhe obedecer, sois servos desse mesmo a quem obedeceis, seja do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?
17 Mas graças a Deus que, embora tendo sido servos do pecado, obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues;
18 e libertos do pecado, fostes feitos servos da justiça.
19 Falo como homem, por causa da fraqueza da vossa carne. Pois assim como apresentastes os vossos membros como servos da impureza e da iniquidade para iniquidade, assim apresentai agora os vossos membros como servos da justiça para santificação..” (Rom 6.12-19).
Em toda esta passagem ele está falando de santificação e não de justificação, e demonstra claramente que além desta justiça de Cristo que nos foi imputada para justificação, nós precisamos desta justiça que é infundida pelo trabalho progressivo do Espírito Santo, no qual há também o concurso das nossas obras de
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justiça, sem as quais não haverá nenhum trabalho da graça em santificação, porque esta graça será derramada por Deus conforme a nossa disposição em obedecer a Sua vontade, e que o apóstolo define pela expressão de apresentar nossos membros a Deus para serem usados por Ele para o fim da nossa santificação.
Uma outra passagem que pode levar a um erro de interpretação, quando nos falta este conhecimento. Destes dois trabalhos do Espírito Santo em santificação, a saber, um na regeneração e outro na santificação progressiva propriamente dita, é a referente às palavras de Jesus dirigidas aos apóstolos quanto ao fato de que já se encontravam limpos pela palavra que lhes havia proferido e que eles necessitavam agora, senão lavarem apenas os pés.
Ora, não padece nenhuma dúvida que apesar de ser uma parte pequena a que se refere à nossa necessidade de purificação diária (dos pés), porque a maior parte deste trabalho de purificação foi feita na regeneração quando nos tornamos novas criaturas, esta parte pequena do trabalho é muito significativa e importante para a nossa aproximação de Deus e uns dos outros, porque com os pés sujos não podemos nos assentar à mesa do banquete espiritual com o Senhor e com nossos irmãos na fé. E esta ilustração de Jesus demonstra a exiguidade da santificação que é exigida de nós. Que deve atingir até mesmo aquelas partes mais escondidas e que não são tão percebidas ao olho desatento, mas que não podem escapar de modo algum ao olhar onisciente de Deus. Então está
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aqui indicada na ação de se lavar os pés, a natureza desta santificação evangélica à qual todos os crentes devem se submeter. E apesar deste trabalho ser realizado individualmente pelo Espírito Santo em cada crente, respectivamente, indica-se nestas palavras de Jesus que o melhor modo de ter este crescimento é na comunhão dos santos e no auxílio mútuo em oração; no meditar da Palavra, na adoração pública e nos serviços que prestam a Deus, especialmente no testemunho do evangelho, de maneira que pela intercessão e exortação mútua ao crescimento em santidade, possam de fato serem santificados pelo Espírito, que manifestará o Seu poder sobrenatural purificador entre eles e neles. E nisto estariam aplicando o ensinamento de lavarem os pés uns dos outros.
E é da natureza desta santificação evangélica nos conduzir à recompensa futura que será dada pelo Senhor a cada um dos que foram fiéis na prática das boas obras que Ele, de antemão, preparou para que eles andassem nelas. Assim, nunca devemos desanimar pela falta de uma recompensa imediata aos nossos esforços e trabalhos em santificação para o uso do Senhor, porque quando Ele vier na Sua glória distribuirá a recompensa prometida a cada um daqueles que foram achados fiéis.
“Iraram-se, na verdade, as nações; então veio a tua ira, e o tempo de serem julgados os mortos, e o tempo de dares recompensa aos teus servos, os profetas, e aos santos, e aos que temem o teu
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nome, a pequenos e a grandes, e o tempo de destruíres os que destroem a terra.” (Apo 11.18).
“Eis que cedo venho e está comigo a minha recompensa, para retribuir a cada um segundo a sua obra.” (Apo 22.12).
A herança prometida de sermos livrados da condenação eterna foi obtida somente pela justificação e regeneração, que são somente mediante o arrependimento e a fé. Daí que somos salvos pela graça sem as obras e que isto não vem de nós, senão como um dom de Deus (Ef. 2.8,9). Mas, paralelamente com esta recompensa, há uma outra recompensa prometida nos céus, e que é relativa aos galardões que serão distribuídos a cada um conforme a sua fidelidade na obra que realizou para o Senhor, e que foi designada a ele, por Ele próprio. E nesta recompensa não está efetivamente em foco apenas a questão dos galardões, mas um viver pleno em Deus, voltado para o Seu inteiro, agrado, e uma vida também efetivamente frutífera e útil a Deus, a nós mesmos e ao nosso próximo, naquilo que se pode chamar de um viver abençoado por Deus, independentemente das tribulações, dificuldades, sofrimentos e provações e perseguições que possamos experimentar neste mundo. Mais do que à distribuição de um prêmio os galardões manifestarão o exercício da justiça perfeita de Deus, ao passar em revista as nossas obras, pelas quais avaliará o quanto vivemos de fato para glorificá-lO; o quanto
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amamos e obedecemos de fato a Sua vontade, pela busca do crescimento espiritual e consagração de nossas vidas ao Seu serviço, ainda que em meio às maiores lutas, tristezas e aflições. O vencedor sobre a carne, o diabo e o mundo, pela força operante do poder de Jesus terá glorificado e santificado o nome de Deus, e será honrado à proporção da Sua fidelidade ao Senhor. E este desejo transformado na realidade de progredir na graça e no conhecimento de Jesus nada mais é do que o progresso em santificação que é ordenado a todos os crentes. E o por vir no céu comprovará pela distribuição de galardoes diferentes em graus, que de fato a santificação é a vontade de Deus para o Seu povo. Deus distinguirá pelos galardões aqueles que mais se consagraram ao Seu querer. Os galardões serão a consumação e o clímax do princípio espiritual que há na natureza Deus que o leva a honrar aqueles que O honram. Por isso a Palavra incentiva os crentes a progredirem cada vez mais em santificação e na prática das boas obras, porque há uma grande recompensa para os que o fizerem. E a medida desta grandeza futura é serviço humilde, fiel em meio às aflições. Há um eterno peso de glória que está associado ao sofrimento paciente por amor a Cristo no tempo presente. Lutero e Calvino estão certamente na glória e grande será o galardão de ambos, mas foi grande a luta, o sofrimento e as tristezas que tiveram que suportar pela causa de Cristo em seus ministérios realizados nos dias difíceis da Reforma. Tal como eles devemos olhar para a
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recompensa futura e não propriamente para a busca de alegrias e confortos neste mundo, senão sermos achados, como eles, inteiramente fiéis a Deus, na realização dos nossos respectivos ministérios.
Quanto à natureza desta santificação evangélica há algo importante e que deve ser também destacado que é a grande verdade que não há nela nenhuma compensação da nossa parte pelos nossos pecados, porque a compensação ou expiação e o perdão total deles, quer de pecados passados, presentes e futuros, foi feita integralmente por Jesus em Sua morte na cruz. Então é estranho à natureza desta nossa santificação, flagelos, penitências, práticas ascéticas e outras coisas parecidas a estas, com o intuito de produzir esta santificação, que já dissemos anteriormente é sobrenatural e não carnal. Daí a recomendação do apóstolo em Col 2.8-23:
“8 Tendo cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo;
9 porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade,
10 e tendes a vossa plenitude nele, que é a cabeça de todo principado e potestade,
11 no qual também fostes circuncidados com a circuncisão não feita por mãos no despojar do corpo da carne, a saber, a circuncisão de Cristo;
12 tendo sido sepultados com ele no batismo, no qual também fostes ressuscitados pela fé no
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poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos;
13 e a vós, quando estáveis mortos nos vossos delitos e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, perdoando-nos todos os delitos;
14 e havendo riscado o escrito de dívida que havia contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário, removeu-o do meio de nós, cravando-o na cruz;
15 e, tendo despojado os principados e potestades, os exibiu publicamente e deles triunfou na mesma cruz.
16 Ninguém, pois, vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa de dias de festa, ou de lua nova, ou de sábados,
17 que são sombras das coisas vindouras; mas o corpo é de Cristo.
18 Ninguém atue como árbitro contra vós, afetando humildade ou culto aos anjos, firmando-se em coisas que tenha visto, inchado vãmente pelo seu entendimento carnal,
19 e não retendo a Cabeça, da qual todo o corpo, provido e organizado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo com o aumento concedido por Deus.
20 Se morrestes com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos sujeitais ainda a ordenanças, como se vivêsseis no mundo,
21 tais como: não toques, não proves, não manuseies
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22 (as quais coisas todas hão de perecer pelo uso), segundo os preceitos e doutrinas dos homens?
23 As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria em culto voluntário, humildade fingida, e severidade para com o corpo, mas não têm valor algum no combate contra a satisfação da carne.” (Col 2.8-23).
Este texto mostra que a natureza desta santificação evangélica não é ritual e nem cerimonial, isto é, não decorre de práticas rituais e cerimoniais, mesmo da Lei do Antigo Testamento, da qual todo cerimonialismo foi revogado por Deus em Cristo Jesus, quando inaugurou na Sua morte a Nova Aliança, e a selou com o sangue que Ele derramou na cruz.
E é importante vigiar muito contra isto, porque a carne se compraz em rituais e cerimônias, e daí a advertência do apóstolo: “Ninguém atue como árbitro contra vós, pretextando humildade ou culto aos anjos, firmando-se em coisas que tenha visto, inchado vãmente pelo seu entendimento carnal,”, e ainda: “As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria em culto voluntário, humildade fingida, e severidade para com o corpo, mas não têm valor algum no combate contra a satisfação da carne.”.
E é por isso que ele diz que os Gálatas haviam deixado de lado o trabalho do Espírito Santo mediante a graça, para se aperfeiçoarem na carne, pois estavam tentando se santificar
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guardando os mandamentos cerimoniais da lei de Moisés (Gl 3.3).
“Sois vós tão insensatos? tendo começado pelo Espírito, é pela carne que agora acabareis?” (Gl 3.3).
E eles estavam fazendo isto porque estavam seguindo o falso evangelho dos judaizantes, que colocava a liberdade dos crentes no Espírito Santo, de novo sob o jugo da Lei cerimonial. E os legalistas da igreja procuram fazer o mesmo. Eles espiam a liberdade que os crentes têm em Cristo com o propósito de intimidá-los quanto à liberdade que possam dar ao trabalho do Espírito Santo em suas vidas, quer no transbordamento de dons, quer na comunicação de graças transformadoras do caráter, que os santificarão. O legalista não está a serviço do Espírito, senão da carne, e a carne se opõe ao Espírito. É bom lembrarmos sempre disto quando refletirmos na natureza da nossa santificação. Eles são os assassinos da graça de Deus porque esta os rebaixa e humilha no seu orgulho de tentarem protestar seu próprio mérito nas conquistas que fazem no reino de Deus.
“3 Mas nem mesmo Tito, que estava comigo, embora sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se;
4 e isto por causa dos falsos irmãos intrusos, os quais furtivamente entraram a espiar a nossa
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liberdade, que temos em Cristo Jesus, para nos escravizar;
5 aos quais nem ainda por uma hora cedemos em sujeição, para que a verdade do evangelho permanecesse entre vós.” (Gl 2.3-5).
Assim é da natureza desta santificação evangélica tributar toda a glória do trabalho a Deus, por sabermos que a nossa diligência e fidelidade não nos levam muito além da condição de servos inúteis, pois somos devedores à Sua graça e misericórdia em todos os aspectos que possam ser considerados. Efetivamente tudo o que fizermos e chegarmos a fazer terá sido por um trabalho do Espírito Santo, ainda que saibamos que muito se exige de nós para a realização deste trabalho, mas este muito que fazemos está desprovido de qualquer mérito que possa nos recomendar a Deus, porque todos os méritos de que dispomos foram adquiridos para nós por Jesus, e é o próprio Deus que nos tem concedido todas as coisas, até mesmo o nosso querer e realizar, pois é Ele mesmo que efetua tudo isto em nós. O que temos que não tenhamos recebido? Assim, exclui-se o mérito mas não a necessidade de diligência e fidelidade de nossa parte. Afirmamos o nosso muito empenho e trabalho, mas a exaltação será toda ela tributada a Cristo e à Sua graça. Se tivermos que nos gloriar, tal como o apóstolo nos gloriaremos no que diz respeito à nossa própria fraqueza, isto é, à nossa completa incapacidade de fazer algo para Deus, se não recebêssemos dEle os talentos, os dons, a
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força, o poder e tudo o mais que nos convém no nosso dever de santificação. Assim Ele dá a tarefa, mas Ele próprio provê todos os meios necessários para a sua realização. Não desprezemos os esforços em diligência tanto nossos quanto de nossos irmãos, porque eles são muito valiosos para nós e para Deus, são muito preciosos e necessários para o trabalho da santificação, mas não nos gloriemos nisto senão no Senhor e na Sua graça.
“Mas pela graça de Deus sou o que sou; e a sua graça para comigo não foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus que está comigo.” (I Cor 15.10).
A natureza desta santidade é também segundo o reino de Deus e não segundo os reinos deste mundo, isto é, ela visa a um sistema que não é segundo o homem e nem segundo o mundo, mas segundo Deus e a um sistema de governo celestial que se funda no amor mútuo, na justiça, na cooperação, na verdade, e o pressuposto para a existência disto é uma perfeita santidade. De modo que a santidade evangélica está destinada a crescer até à perfeição, sem mancha, ruga ou qualquer defeito, porque o fim que se tem em vista é o de que os súditos deste reino celestial possam viver em perfeita harmonia e paz e justiça e amor, por toda a eternidade.
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“Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; entretanto o meu reino não é daqui.” (João 18.36).
Assim toda a santidade que os crente possam obter neste mundo não tem por principal objetivo capacitá-los a mudarem a ordem do sistema mundial, ou conduzir os crentes ao poder antes de que Cristo volte para estabelecer o Seu governo eterno.
São coisas totalmente incompatíveis a sabedoria deste mundo e a sabedoria celestial e divina. Em razão do pecado todo o sistema mundial, e até mesmo os pecadores individualmente estão incapacitados de aceitarem e viverem o modo de vida do céu, que é em santificação, porque o pecado original desfigurou a imagem e semelhança que o homem tinha com Deus. E todos os seus pensamentos, ações ficaram sujeitos às trevas do pecado, e o homem sendo carnal não está sujeito à lei de Deus e nem mesmo pode estar, porque Deus é espírito. Daí decorre que toda esfera de relacionamento humano está contaminada ou dominada por falsidade, amargura, engano, mentira, injustiça, dissensões, facções, e tudo o que é operado pela carne. De modo que o tudo que há de melhor no mundo, no fundo é uma aparência que está destinada a passar porque não pode suportar o crivo do amor e da justiça perfeitos de Deus.
As próprias ações chamadas beneficentes estão cheias de interesse próprio, orgulho,
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oportunismos, interesses, e tudo o que é contrário à verdade, porque onde não há a direção plena do Espírito Santo em sujeição à Sua vontade, não pode existir aquele aroma de perfeita justiça, verdade, paz, amor e todas as demais virtudes celestiais e divinas. Por isso Paulo diz o que diz em I Cor 13.3:
“E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.” (I Cor 13.3).
Então esta santidade evangélica não consiste em nenhuma ação benemérita que o mundo considere elevada porque ela é muitíssimo mais elevado do que isto em sua natureza:
“Onde está o sábio? Onde o escriba? Onde o questionador deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?” (I Cor 1.20).
Por isso o mundo não ama a santidade que é verdadeira, antes a odeia e persegue, porque ela tem este padrão muito mais elevado do aquilo que há de melhor nos sábios e todos aqueles que se comprazem entre si cujas obras virtuosas são segundo o homem e segundo o mundo e não segundo Deus e procedentes do Espírito Santo, e que se manifestam segundo a eficácia operante do Seu poder.
“Na verdade, entre os perfeitos falamos sabedoria, não porém a sabedoria deste mundo,
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nem dos príncipes deste mundo, que estão sendo reduzidos a nada;” (I Cor 2.6).
Então esta santificação verdadeira traz uma sabedoria celestial e sobrenatural que procede do alto, e transforma o caráter dos crentes à imagem e semelhança ao de Cristo.
“e os que usam deste mundo, como se dele não usassem em absoluto, porque a aparência deste mundo passa.” (I Cor 7.31).
“13 Quem dentre vós é sábio e entendido? Mostre pelo seu bom procedimento as suas obras em mansidão de sabedoria.
14 Mas, se tendes amargo ciúme e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade.
15 Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e diabólica.
16 Porque onde há ciúme e sentimento faccioso, aí há confusão e toda obra má.
17 Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente, pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem hipocrisia.” (Tg 3.13-17).
O sábio segundo o mundo se gloria na sua própria sabedoria, mas o sábio segundo Deus se gloria em Deus e não em si mesmo, porque sabe que tudo o que tem, não se encontra em sua própria natureza, mas o tem recebido do alto, de maneira que pode dizer junto com Jeremias:
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“23 Assim diz o Senhor: Não se glorie o sábio na sua sabedoria, nem se glorie o forte na sua força; não se glorie o rico nas suas riquezas;
24 mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em entender, e em me conhecer, que eu sou o Senhor, que faço benevolência, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o Senhor.” (Jer 9.23,24).
Aquele que tem aprendido de Deus, por estar se santificando sabe que não pode fazer qualquer coisa que Lhe seja aceitável, mas somente aquilo que for nele forjado pela graça do Senhor, e isto vai inteiramente na contramão do que o mundo pensa, e é inteiramente contrário à natureza de mérito, que requer que o que tivermos feito tenha sido originado e terminado em nós mesmos sem qualquer auxílio externo.
E aqui nós devemos retornar ao fundamento da nossa eleição, porque tendo sido os crentes escolhidos sem que se levasse em conta qualquer mérito deles, porque eles tinham senão uma grande dívida de pecados para com Deus, que a propósito era eterna e impagável, e se foram eleitos por pura misericórdia, qual seria o mérito que poderiam esperar tanto em sua eleição, regeneração e até mesmo em sua santificação? Tudo que têm recebido não é devido à pura graça e misericórdia de Deus? E não é também por causa dos méritos de Jesus que lhes deu acesso a tal graça e misericórdia? Assim também se exclui o mérito na santificação deles, em tudo o que possam fazer
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para cooperar com o trabalho do Espírito Santo neles. Ainda que, como dissemos antes, seja do agrado de Deus que eles se apliquem a tal obediência e fidelidade. E ainda que Deus venha a recompensá-los por toda esta obediência e fidelidade. E também ainda sendo verdadeiro que ela é de grande valor. Porque ainda assim se exclui todo o mérito pessoal, pois o Senhor não nos dará todas as coisas por nossa própria causa, mas por causa do Seu próprio amor e bondade que tem concedido a nós em Cristo Jesus, pois é por causa dos mérito de Cristo e não propriamente nossos que temos sido alvo deste amor e bondade.
Aquele que requer a santidade de nós sabe que não temos isto em nós mesmos. Não está em nosso próprio poder restabelecer a imagem de Deus em nossas almas, e de uma maneira ainda mais eminente do que a que havia sido criada no princípio por Deus e que estava em Adão. E Deus tem requerido de nós algo que por natureza nós não somos, e não somente isto, para o qual não temos o poder de atingir. Tal é a natureza da santidade evangélica.
Por isso o próprio Deus prometeu fazer Ele próprio o trabalho nos nossos corações quanto a esta santificação que Ele exige de nós:
“Mas este é o pacto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei a minha lei no seu interior, e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo.” (Jer 31.33).
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“e farei com eles um pacto eterno de não me desviar de fazer-lhes o bem; e porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim.” (Jer 32.40).
E este trabalho é feito em graus, no homem interior, que é reconstruído dia a dia:
“Por isso não desfalecemos; mas ainda que o nosso homem exterior se esteja consumindo, o interior, contudo, se renova de dia em dia. “ (II Cor 4.16).
“e vos vestistes do novo, que se renova para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou;” (Col 3.10).
E especialmente em Ezequiel 36.25-27, está indicado este trabalho de santificação pelo Espírito, como consistindo basicamente na transformação e na purificação do nosso coração. O coração de pedra transformado em coração de carne indica a regeneração. E a purificação do coração indica o trabalho progressivo da santificação em graus.
“25 Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias, e de todos os vossos ídolos, vos purificarei.
26 Também vos darei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne.
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27 Ainda porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis as minhas ordenanças, e as observeis.” (Ez 36.25-27).
Mas é o todo da nossa santificação que está incluído nestas promessas. Ser limpo das corrupções do pecado, de todos os ídolos, que representam o nosso apego às coisas vãs e passageiras deste mundo, e ter uma nova disposição de espírito segundo Deus pelo recebimento de uma nova natureza espiritual, real e verdadeiramente nova, e um coração quebrantado inclinado e disposto para temer a Deus, do modo devido, segundo um andar dirigido pelo Espírito nos mandamentos de Deus.
Era com fé nestas promessas que o apóstolo Paulo orava pelos Tessalonicenses para que o Deus de paz os santificasse completamente, de modo que eles fossem conservados plenamente irrepreensíveis em seu espírito, alma e corpo (I Tes 5.23), e no verso seguinte ele declara a sua plena confiança que Deus realizaria neles este trabalho de santificação:
“Fiel é o que vos chama, e ele também o fará.” (I Tes 5.24).
Agora nós nos indagamos de onde o apóstolo retirava esta confiança na santificação deles deste modo completo ao qual já nos referimos? E por que esta convicção mudou tanto na igreja de nossos dias? E ficamos a pensar se isto não é
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devido a uma ministração deficiente ou errônea sobre o significado da santificação aos crentes, e que também seriam fatores concorrentes a falta de oração abundante no sentido de se buscar esta santificação, e um compromisso real dos crentes com a Palavra de Deus e com a causa do evangelho.
Não são muitos os pastores que estão pregando uma busca de purificação total do coração aos membros de suas igrejas. Não há muitos que creiam que a santificação é realmente o segredo da vida espiritual vitoriosa.
Eles se aplicam mais em campanhas em busca de prosperidade material, em empreendimentos imobiliários, em ministérios de curas físicas, sem ter muita preocupação com a purificação da alma, e quando se pensa no estado da alma, o que se enfoca é a tentativa de cura de traumas com técnicas que denominam de cura interior. Mas, nisto aplicam técnicas da psicologia moderna, e são dirigidos pelos postulados da psicologia, e não pela pura Palavra de Deus. O aconselhamento pastoral também é norteado pela psicologia, e não pela aplicação da Palavra. Não é de se admirar portanto que se veja tão poucos crentes santificados e que estejam crescendo na graça e no conhecimento de Cristo, em nossos dias.
E com isto não dizemos que estes ministros deveriam se esforçar para pregarem a prática de virtudes morais de seus púlpitos, porque estas virtudes serão a consequência do trabalho sobrenatural da graça no coração como resultado de uma consagração a Deus, oração,
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meditação na Sua Palavra, e adoração pública, do que meramente o empenho humano em educar o homem exterior de maneira que exiba um comportamento educado e sujeitado à vontade. Isto poderá ser apreciado e necessário, mas não é ainda da natureza da santidade verdadeira e bíblica da qual estamos falando, porque esta produzirá um bom comportamento a partir das atitudes internas do coração pelo trabalho do Espírito em graça, no coração. Como vimos é Deus que realiza esta santificação pelo cumprimento da promessa que Ele fez desde os profetas do Antigo Testamento.
Mas nós devemos a todo custo evitar de pensar e agir com base no seguinte modo: ”se a santidade é meu dever, não há nenhum lugar para a graça neste assunto”, ou então, “se a santidade é um efeito da graça, não há nenhum lugar para o dever.”. Este tipo de consideração parte da premissa de que não se pode conciliar a graça com o mandamento. Entretanto isto não é verdade, porque ambos são dependentes. É a graça que nos habilita a cumprir de fato o mandamento da maneira que convém cumprir e que é segundo Deus. E é a disposição em se cumprir o mandamento, na expectativa de que Deus nos conceda graça para tal propósito que permite que ele seja de fato cumprido. E se não há nenhuma disposição para se obedecer os mandamentos e a vontade de Deus não há porque se esperar que nos seja concedida graça para isto, porque Deus não desperdiça os seus dons. E também não se deixa enganar por aqueles que têm um coração dobre, isto é, que
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têm um olho no dever de cumprir o mandamento, e outro no pecado que desejam praticar ou que estão praticando. Um coração dividido não é agradável ao Senhor conforme nos alerta o apóstolo Tiago:
“4 Infiéis, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus.
5 Ou pensais que em vão diz a escritura: O Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme?” (Tg 4.4,5).
Como vimos dantes as obras e a graça são contrárias apenas no assunto da justificação, e realmente são totalmente incompatíveis ali, mas não no assunto da santificação, e na verdade os dois são dependentes, porque aqui se conta tanto a graça quanto o nosso dever. Nós nem podemos executar o nosso dever conforme o aprendemos na Bíblia, sem a graça, e nem o Senhor nos dará esta graça para cumprir o nosso dever corretamente ou para qualquer outro fim, se nós não nos aplicarmos ao cumprimento devido do que nos é ordenado na Palavra. Então a fé, no caso da santificação é confirmada pelas obras, isto é, nós comprovamos que de fato estamos sendo impulsionados pela graça, através do resultado desta graça em nossas obras. .
Então devemos ter uma consideração devida a ambos (graça e dever) se pretendemos ser santificados. Onde isto não se encontra não há nenhuma santidade. Nossa santidade é nossa
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obediência, e a natureza formal disto surge da obediência reverente à autoridade do mandamento. E para nos incentivar à santificação Deus acrescenta grandes recompensas à obediência ao mandamento, não para nos gloriarmos em nós mesmos, mas para sermos achados no caminho da santificação que nos fará participantes da Sua própria santidade, conforme o propósito que Ele fixou na nossa criação e eleição.
“Mas tu, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mt 6.6).
“Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor.” (I Cor 15.58).
“Honra a teu pai e a tua mãe que é o primeiro mandamento com promessa,” (Ef 6.2).
Contudo nunca devemos esquecer, em razão da natureza desta santidade que tem em Deus a Sua fonte, e da condição da nossa natureza terrena na qual não habita nenhum bem, que nós não temos a capacidade de obedecer o mandamento por qualquer poder em nós mesmos, porque não temos tal suficiência em nossa própria natureza, esta suficiência é de Deus. E quando nos colocamos em tal disposição de mente e de espírito então podemos contar que o nosso
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coração será elevado pelo Senhor e Ele nos proverá daquela graça que nos dará ajuda e alívio.
E sem esta graça prometida nós nunca poderíamos alcançar o menor grau de santidade, e nós nunca mereceríamos o menor centavo desta graça, e então nós devemos louvar e adorar e sermos gratos continuamente a Deus pela Sua generosidade infinita em trabalhar pacientemente em pecadores inábeis e incapacitados, e por ser fiel à promessa que nos fez de livrar-nos de nosso estado de miséria para enriquecer-nos com a Sua graça, conduzindo-nos à Sua imagem e semelhança, notadamente no que se refere à Sua santidade.
E bendigamos ao Espírito Santo por ser o santificador de todos o crentes e autor de toda a santidade que vier a existir neles.
Finalmente, como vimos no texto de I Tes 5.23, esta santificação tem por alvo tornar os crentes irrepreensíveis, não segundo as leis do mundo, mas segundo Deus e as Suas leis. Porque é levado também em conta nesta irrepreensibilidade até mesmo os pensamentos e as intenções do coração. E isto é para ser realizado na transformação total do caráter, em mensurações de amor, mansidão, bondade, obediência, fé, fidelidade, longanimidade, humildade, coragem, paz, alegria, benignidade, sabedoria, e todas as virtudes que compõem o caráter do próprio Cristo. Daí o Senhor ter ordenado aos crentes serem perfeitos assim como o Pai é perfeito. Com isto os está exortando a crescerem até a medida do que há na
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divindade, a buscarem isto com todas as forças e empenho do seu ser, e a terem isto como o principal alvo de suas vidas. E além desta perfeição moral está incluída a noção de crescimento até a maturidade, até o ponto de se ter as faculdades exercitadas de tal modo a poder não somente discernir como também a fazer efetivamente toda a vontade de Deus.
“12 Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda necessitais de que se vos torne a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das palavras de Deus; e vos haveis feito tais que necessitais de leite, e não de sólido mantimento.
13 Porque qualquer que ainda se alimenta de leite não está experimentado na palavra da justiça, porque é menino.
14 Mas o mantimento sólido é para os perfeitos, os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal.” (Hb 5.12-14).
E esta irrepreensibilidade referida é para ser vista não apenas individualmente, mas em todo o corpo místico de Cristo que é a igreja. E a grande prova do interesse de Deus em ter um povo santo, uma nação santa de Sua exclusiva propriedade está prefigurada no fato dEle ter formado e separado uma nação das demais nações nos dias do Antigo Testamento, para revelar a Sua vontade através da mesma. E o Israel terreno foi conduzido pelo Senhor através de séculos debaixo da Antiga Aliança para principalmente demonstrar qual é a Sua
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vontade para aqueles que são do Seu povo. Nós não vemos nenhuma preocupação no Senhor em torná-los uma potência militar, política, econômica e financeira entre as nações, senão em que fossem um povo santo. Esta é a mensagem central que Ele enviou pelos profetas: a santificação deles. Que eles se purificassem de suas iniquidades e que abandonassem o pecado. Nisto o Senhor queria deixar uma mensagem muito clara quanto à Sua vontade para a igreja. Se a eles que viviam num antigo pacto, onde nem todos conheciam de fato ao Senhor era exigida uma tal santidade, quanto mais não esperará isto o Senhor do Seu novo Israel que é a igreja, debaixo de uma nova aliança, onde todos Lhe conhecem, desde o menor até o maior dos Seus filhos.
“Porque eu sou o SENHOR, que vos fiz subir da terra do Egito, para que eu seja vosso Deus, e para que sejais santos; porque eu sou santo.” (Lev 11.45).
“Porque povo santo és ao SENHOR teu Deus; o SENHOR teu Deus te escolheu, para que lhe fosses o seu povo especial, de todos os povos que há sobre a terra.” (Dt 7.6).
“Para assim te exaltar sobre todas as nações que criou, para louvor, e para fama, e para glória, e para que sejas um povo santo ao SENHOR teu Deus, como tem falado.” (Dt 26.19).
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“Mas, como é santo aquele que vos chamou, sede vós também santos em toda a vossa maneira de viver;” (I Pe 1.15).
CAPÍTULO 2
SANTIFICAÇÃO - UMA OBRA PROGRESSIVA
Tendo falado sobre a natureza da santificação, vejamos agora o modo desta santificação, quanto à maneira que ela é concretizada na vida dos crentes.
A esta altura cabe ser dito que o propósito deste nosso estudo não é de modo algum o de se elaborar um tratado conceitual sobre santificação para o mero aprendizado de verdades relacionadas ao assunto, mas despertar e alertar o povo de Deus para a necessidade desta hora em que mais do que nunca se torna necessário ter vidas realmente santificadas para o agrado de Deus e para a realização da sua vontade num mundo em que a iniquidade tem se multiplicado a tal ponto de estar influenciando a própria igreja, e não são poucos os crentes que chegam a duvidar se é realmente da vontade de Deus que eles santifiquem as suas vidas, em razão de ser imenso o contingente de pessoas e até mesmo de crentes que têm banalizado o pecado em todas as suas formas, e pelo abuso e ignorância da longanimidade de Deus, eles pensam erroneamente que Ele não se importa e não julgará as obras da carne e das trevas.
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Então, ainda que sejamos obrigados a trabalhar conceitos para facilitar o entendimento do assunto, não é de modo nenhum o nosso propósito e nem o de Deus nas Escrituras simplesmente iluminar o nosso entendimento, mas seguramente é o de incentivar, estimular, encorajar a todos os crentes a se empenharem em busca da santificação e a paz que é dela resultante.
“Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor;” (Hb 12.14).
Santificação é uma obra do Espírito de Deus no corpo, alma e espírito dos crentes, purificando e limpando as naturezas deles da poluição e da impureza do pecado, renovando neles a imagem de Deus, e os habilitando assim, a um princípio espiritual e habitual de graça, para poderem obedecer a Deus, segundo o teor e mandamentos da nova aliança, em virtude da vida e morte de Jesus Cristo.
Ou mais resumidamente: santificação é renovação total de nossas naturezas pelo Espírito Santo à imagem de Deus, por Jesus Cristo.
Quando o apóstolo Paulo disse em II Cor 5.17 que aquele que está em Cristo é nova criatura, ele abrangeu nestas palavras tanto a realidade de uma renovação que já foi efetuada neles na regeneração (novo nascimento) quanto a este princípio espiritual de renovação contínua que
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foi implantado neles e que os impulsiona a fazerem crescer aquela nova natureza recebida em embrião na conversão. E nisto é absolutamente maravilhoso saber que Deus estabeleceu uma ilustração para servir de paralelo, no que se dá em relação ao nascimento físico, comparado com o espiritual. Toda pessoa nascida ao mundo foi um dia uma só célula que continha nela todos os princípios necessários para o desenvolvimento de todas as suas partes componentes quer em órgãos, quer em membros. E de igual modo, quando um crente é gerado nova criatura em Cristo ele é também como aquela única célula que deverá crescer, chegar a ser embrião, feto, recém-nascido, criança e adulto.
Daí a santificação ser necessária a todos os crentes porque ela é a operação deste princípio espiritual em crescimento que os conduzirá à maturidade espiritual em Cristo.
Por isto Deus não somente nos santifica como também exige que sejamos santificados, porque assim como o propósito da criação natural é que ela se desenvolva e cresça, muito mais é do propósito de Deus nesta nova criação espiritual que ela também se desenvolva rumo ao crescimento total.
Quando nós refletimos nestas verdades é então que nós vemos o absurdo do pelagianismo e o quanto eles estão enganados e errados ao pensarem que podem eles próprios, pela própria capacidade e poder efetuar o desenvolvimento deste princípio espiritual de crescimento. Quem poderá acrescentar um
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côvado à sua vida? Perguntou Jesus quanto ao crescimento natural? Quem pode crescer fisicamente até o ponto que bem desejar? Se isto não depende do homem, mas da operação em curso de crescimento que Deus colocou no homem, quanto mais isto não se aplica ao que é espiritual e invisível, e que não podemos de nenhum modo ver ou tocar?
A única coisa que podemos e devemos fazer é nos alimentar daquelas coisas que nos são ordenadas (obediência, meditação na Palavra, oração etc) para que ocorra tal crescimento, que é operado por Deus.
“6 Eu plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento.
7 Por isso, nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento.” (I Cor 2.6, 7).
E nesta progressividade de crescimento Deus recebe muita glória, porque não está no poder do homem operar este crescimento, senão no poder do próprio Deus. E ele recebe muita gratidão e louvor dos seus servos ao verem a boa obra que Ele está produzindo neles. E eles o amam ainda mais por isto, porque veem neste trabalho toda a manifestação da Sua bondade para conosco em Cristo Jesus, e podem apreciar melhor o valor da beleza e riqueza da Sua santidade.
Tanto no crescimento natural quanto no espiritual, não foi o homem que designou isto, mas o próprio Deus que determinou que esta
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operação de crescimento seja realizada progressivamente até que se chegue à maturidade.
E como o trabalho é feito em graus, então se verá crentes mais santificados do que outros. E isto refletira obviamente no grau de maturidade espiritual deles. Ninguém poderá dar um salto de bebê a adulto, sem passar pela infância e adolescência espiritual. Nada poderá ser feito pelo crente, senão retardar, acelerar ou impedir a realização do processo de santificação por indolência (retardamento), diligência e obediência (aceleramento) ou por desobediência (impedimento). No caso do impedimento, o processo poderá ser retomado com um retorno à diligência e obediência requeridas por Deus a Ele e à Sua Palavra.
O próprio Deus pode acelerar este processo que é feito gradualmente chamando e capacitando a alma a uma maior consagração, por uma manifestação maior do Espírito Santo na vida, cativando corações à obediência, e revelando-lhes a beleza da santidade que há em Cristo. Um fogo espiritual que é acendido assim na alma em avivamento espiritual em muito contribuirá para a aceleração deste processo de crescimento. Muito mais se verá de crescimento em menor tempo e com melhor qualidade. Assim como plantas numa lavoura crescem melhor em solos mais férteis e onde há maior provisão de nutrientes, luz e tudo o que for necessário ao crescimento, do que outras que se encontram em condições menos favoráveis a este crescimento.
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Nisto também Deus é glorificado porque somos convencidos da nossa insuficiência e do quanto dependemos das operações do Seu Espírito na alma para que possamos fazer aquilo que seja da Sua vontade por uma transformação de nossas vidas numa maior santidade.
Não admira portanto porque a igreja reformada experimentava contínuos avivamentos, pois eles oravam intensamente por isto, pois estavam completamente instruídos da sua necessidade e importância para o aceleramento da obra de santificação.
Um crescimento em santificação ou santidade nos é ordenado frequentemente na Bíblia, e também frequentemente prometido.
“1 Finalmente, irmãos, vos rogamos e exortamos no Senhor Jesus que, como aprendestes de nós de que maneira deveis andar e agradar a Deus, assim como estais fazendo, nisso mesmo abundeis cada vez mais.
2 Pois vós sabeis que preceitos vos temos dado pelo Senhor Jesus.
3 Porque esta é a vontade de Deus, a saber, a vossa santificação: que vos abstenhais da prostituição,
4 que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santidade e honra,” ( I Tes 4.1-4).
“17 Vós, portanto, amados, sabendo isto de antemão, guardai-vos de que, pelo engano dos homens abomináveis, sejais juntamente arrebatados, e descaiais da vossa firmeza;
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18 Antes crescei na graça e conhecimento de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. A ele seja dada a glória, assim agora, como no dia da eternidade. Amém.” (II Pe 3.17,18).
Aqui nos é ordenado que não permitamos ser movidos da nossa firmeza em Cristo por seguirmos falsas doutrinas que podem impedir o nosso progresso em santificação, e que nos abstenhamos disto nos empenhando continuamente no nosso crescimento na graça e no conhecimento de Jesus. Quanto mais crescemos na graça mais conhecemos a Cristo e a Sua vontade para conosco. Daí ser essencial permanecer firme na busca da santificação.
Paulo citou o que estava ocorrendo na igreja de Tessalônica como um bom exemplo de crescimento em santificação:
“Sempre devemos, irmãos, dar graças a Deus por vós, como é justo, porque a vossa fé cresce muitíssimo e o amor de cada um de vós aumenta de uns para com os outros,” (II Tes 1.3).
E nós vemos que onde ocorre este crescimento em santificação também ocorre um aumento do amor de uns para com os outros.
E em face disso, como poderia Deus ser indiferente à nossa deterioração espiritual e falta de progresso em santificação?
Não é o simples esforço para o melhoramento das virtudes morais que propiciará isto. E nem o simples esforço legalista de cumprir os
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mandamentos de Deus sem o concurso da graça e do Espírito Santo que o produzirá. Como já temos comentado fartamente este é um trabalho da graça especialmente no coração, que é operado pelo próprio Deus.
E este trabalho de santificação, em seu princípio, é como a semente que é lançada na terra, a saber a semente da Palavra de Deus, por meio da qual nós nascemos novamente.
“22 Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro;
23 Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre.” (I Pe 1.22, 23).
E o processo deste crescimento é dependente de um trabalho simultâneo de purificação tanto de pecados quanto de convicções que são estranhas e contrárias à verdade da Palavra de Deus. Por isso é ordenado àqueles que pretendem ser discípulos de Jesus, aprendendo e crescendo nEle, a necessária auto negação, ou o ato de negar-se a si mesmo, deixando de lado convicções e desejos que sejam contrários a este crescimento.
Nós vemos assim quanto trabalho está envolvido na santificação. A reconstrução de uma vida pela renovação de todas as suas partes (corpo, alma e espírito) é muito mais trabalhoso e difícil do que qualquer construção material, e
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é por isso que este trabalho não pode ser realizado pelo próprio homem, como temos dito anteriormente, pois em face de sua dificuldade e extensão é algo para ser realizado e somente pode ser realizado pelo próprio Deus. E Ele fará isto em graus em face desta complexidade não somente das operações que devem ser realizadas, quanto das faculdades que residem no corpo, na alma e no espírito do homem.
“Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus,” (II Cor 3.5).
E este trabalho será feito nos crentes até a volta de Jesus Cristo, quanto então todos serão aperfeiçoados em santidade.
“Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo;” (Fp 1.6).
E assim como a semente que germina na terra e cresce e se transforma até o ponto de ser uma planta madura, pronta a produzir os seus frutos, assim também se dá com o trabalho de santificação que é operado pelo Espírito Santo.
E tal como a planta que cresce por um princípio de vigor que nela opera e que faz com que suas células se multipliquem e formem aquelas características essenciais que virão a definir a sua própria espécie, do mesmo modo o princípio operante da nova criatura impulsionado pelo Espírito Santo, faz com que as graças da
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santidade aumentem e se multipliquem de modo a produzir mais e mais aquelas características que são inerentes à nova natureza que nos define como filhos de Deus.
O lançar mão do arado e não olhar para trás indica muito deste trabalho de arar o próprio coração para estar em condição de receber mais e mais a Palavra de Deus. Não olhar para trás neste caso implica não permitir que este trabalho seja interrompido, de modo que o Espírito Santo, que é na verdade quem efetua este trabalho, possa acrescentar continuamente suas graças em nós no trabalho da santificação.
E as graças que aram o nosso coração, aumentam fazendo com que a fé também aumente, de pequena fé a uma grande fé, de uma fé fraca a uma fé forte. E é isto que nos torna capazes de executar deveres difíceis de obediência nas coisas relativas ao ministério que temos recebido de Deus para cumprir. De outro modo, sem este crescimento e fortalecimento da fé, não o poderíamos suportar e nem tampouco cumprir, porque muitas são as oposições que se levantam contra isto, e em sua própria natureza, o trabalho é sobrenatural e não somos suficientes para a sua execução, pela nossa própria capacidade e poder.
“3 Olhai por vós mesmos. E, se teu irmão pecar contra ti, repreende-o e, se ele se arrepender, perdoa-lhe.
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4 E, se pecar contra ti sete vezes no dia, e sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo: Arrependo-me; perdoa-lhe.
5 Disseram então os apóstolos ao Senhor: Acrescenta-nos a fé.” (Lc 17.3-5).
Era para este conhecimento do poder de Deus e capacitação para a realização da Sua vontade, que o apóstolo Paulo orava pelos efésios:
“14 Por causa disto me ponho de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
15 Do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome,
16 Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior;
17 Para que Cristo habite pela fé nos vossos corações; a fim de, estando arraigados e fundados em amor,
18 Poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade,
19 E conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus.” (Ef 3.14-17).
E nós vemos destacado o resultado do trabalho da santificação no que ele diz no verso 16: “Para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior;”.
Este “corroborados”, no original grego é krataiwyhnai, e significa fortalecido, ser tornado forte, aumentar em força, ficar forte. E
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ele diz o modo como isto será feito (com poder) e de quem é este poder que fará o trabalho (o Espírito Santo).
“12 E o Senhor vos aumente, e faça crescer em amor uns para com os outros, e para com todos, como também o fazemos para convosco;
13 Para confirmar os vossos corações, para que sejais irrepreensíveis em santidade diante de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo com todos os seus santos.” (I Tes 3.12,13).
Estas graças operadas pelo Espírito são a fonte da nossa santidade, no aumento delas em nós pelo trabalho da santificação.
E nada se perde deste trabalho progressivo do Espírito nos crentes, porque uma graça não é substituída por outra, senão acrescentada, conforme dizer do apóstolo Pedro:
“5 E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência,
6 E à ciência a temperança, e à temperança a paciência, e à paciência a piedade,
7 E à piedade o amor fraternal, e ao amor fraternal a caridade.” (II Pe 1.5-7).
O que foi conquistado será mantido e a isto será aumentado e receberá outras graças que também serão aperfeiçoadas em seu crescimento.
O que não aprendeu ainda a ser misericordioso será com certeza aperfeiçoado em misericórdia.
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O de mau temperamento será aperfeiçoado em mansidão.
E o modo do Espírito Santo implantar estas virtudes é pela formação de hábitos. Assim como aprendemos determinadas habilidades e comportamentos pelo hábito de repeti-las. A santificação é pois em seu progresso um hábito que é incorporado em nós, em relação a todos os nossos deveres espirituais, à medida que eles nos vão sendo ensinados e implantados em nós pelo Espírito Santo.
Então em santificação progressiva a diligência, a vigilância, a oração, a meditação na Palavra, dentre outras coisas, devem estar se tornando um hábito, de modo que possamos saber que estamos de fato sendo santificados. Onde falta este hábito, o progresso em santificação não pode estar sendo verdadeiramente efetivo, porque ela sempre haverá de conduzir em seus resultados a esta condição habitual de pensarmos e agirmos em conformidade com estes padrões divinos de comportamento que serão corroborados, fortalecidos, no homem interior, a saber, no nosso espírito.
Estes hábitos espirituais de fé e de amor, crescem e progridem através do seu exercício. Assim como não se pode aprender a tocar música a não ser pela repetição da aprendizagem até a formação do hábito de tocar, e este exercício deve continuar para a manutenção e o aperfeiçoamento musical, de igual modo a santificação não pode ser operada devidamente sem esta repetição em contínuos exercícios dos deveres ordenados a nós na
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Palavra de Deus. Eles devem ser aprendidos e exercitados continuamente, se desejamos de fato ser santificados pelo Espírito.
E por meio de qual instrumentalidade o Espírito Santo nos impulsionará à formação destes hábitos em obediência à Palavra de Deus? Isto será feito principalmente pela oração e pela pregação da Palavra. Daí o fato de os apóstolos não terem se permitido desviar do ministério da oração e da Palavra para se dedicarem a servir as mesas. E bem farão os pastores e presbíteros que seguirem o exemplo deles fazendo com que não sejam desviados de suas chamadas entregando esta importante tarefa ao cuidado dos diáconos, para que eles possam se dedicar com liberdade e exclusividade à função de apascentarem espiritualmente o rebanho do Senhor com a oração e com a Palavra.
Nós vemos então que é de suma importância que dos púlpitos das igrejas flua o verdadeiro alimento espiritual celestial com o qual o rebanho é alimentado. E este alimento é a Palavra que procede da boca de Deus. Veja. Que procede da boca de Deus e não propriamente da boca do homem. O sermão deve ter sido recebido do alto para que possa produzir o efeito esperado pelo Espírito nos corações na formação de hábitos espirituais em que se traduzirá a sua santificação.
Por isso é essencial não apenas ouvir sermões, mas aplicá-los à vida. E isto se fará por meio de recordação, meditação e oração pedindo a Deus que aplique em nós aquilo que temos ouvido.
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E aqui reside uma das principais causas por não se ver tantos crentes se entregando ao trabalho de uma santificação verdadeira, porque os púlpitos não somente têm negado o verdadeiro alimento espiritual, como têm desviado os crentes da verdade, por lhes ensinarem a serem meros pedintes de realização de sonhos e interesses pessoais a Deus. Eles não podem estar interessados no trabalho de santificação de seus corpos, almas e espíritos, porque isto não lhes é ensinado como algo para ser buscado, senão a mera realização dos seus desejos pessoais e carnais. Quantos estão verdadeiramente interessados em buscarem em Deus um crescimento espiritual para o agrado da Sua vontade, e conforme é do agrado desta vontade? Prosperidade material e financeira, e saúde física tornaram-se o conteúdo da quase totalidade das pregações nos púlpitos das igrejas, e quão diferente é isto do que ocorria na igreja primitiva, na igreja reformada e nos dias de avivamento nos séculos XVII e XVIII.
Quantas pregações são ouvidas quanto à necessidade de se mortificar a carne, de se deixar o pecado, de se purificar o coração, e sobre o exercício da disciplina na igreja, sobre o temor e reverência devidos a Deus, sobre a necessidade de se amar e cumprir a Palavra, sobre o juízo vindouro, sobre arrependimento, vigilância, jejum, oração, paciência no sofrimento e longanimidade para com os inimigos, para não citar outros assuntos de interesse e importância para a nossa santificação?
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Em que se centraliza o que pregamos: no interesse do homem ou no interesse de Deus?
Então vemos que esta progressividade da santificação depende da pregação da verdadeira e genuína Palavra, sem nada lhe acrescentar ou retirar. E que a progressividade está também determinada pela imensa variedade de assuntos bíblicos necessários ao alimento e crescimento dos crentes, e que não podem ser ministrados a um só tempo. A sábia distribuição deste alimento, na época própria, será o fator principal contribuinte para a santificação dos crentes.
“10 Para que possais andar dignamente diante do Senhor, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda a boa obra, e crescendo no conhecimento de Deus;
11 Corroborados em toda a fortaleza, segundo a força da sua glória, em toda a paciência, e longanimidade com gozo;” (Col 1.10,11).
E a progressividade da santificação também é determinada pelas experiências diversas que devemos ter neste mundo, pelas circunstâncias que funcionarão como arados que destorroarão o endurecimento dos nossos corações, para que estes se tornem penetráveis pela Palavra e pela vontade de Deus. As tribulações, os sofrimentos, as humilhações, as próprias enfermidades físicas, as aflições nos relacionamentos em muito contribuirão para o nosso aprendizado de sermos pacientes, misericordiosos, longânimos, perdoadores, mansos,
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dependentes de Deus, e especialmente para aprendermos a orar e recorrer a Ele, e a Lhe sermos gratos por tudo. A experiência de que Deus é conosco nas nossas aflições servirá para se consolar outros que estiverem necessitando desta consolação.
“3 Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação;
4 Que nos consola em toda a nossa tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus.” (II Cor 1.3,4).
É especialmente por este motivo de que o trabalho de santificação será realizado nas tribulações que tenhamos que sofrer, conforme se encontram no controle de Deus, em relação a cada um de Seus filhos, que lhes é ordenada a necessidade de perseverança, porque será através dela que poderão ser aperfeiçoados em santificação, conforme é do Seu eterno propósito.
“3 E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência,
4 E a paciência a experiência, e a experiência a esperança.” (Rom 5.3,4).
“E a que caiu em boa terra, esses são os que, ouvindo a palavra, a conservam num coração
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honesto e bom, e dão fruto com perseverança.” (Lc 8.15).
Assim, nós podemos compreender melhor o sentido das palavras em Tiago 1.2-4, porque o que está em foco ali é esta santificação que é produzida pelas provações, que em vez de destruir a fé do crente, tem por fim aperfeiçoá-la:
“2 Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações;
3 Sabendo que a prova da vossa fé opera a paciência.
4 Tenha, porém, a paciência a sua obra perfeita, para que sejais perfeitos e completos, sem faltar em coisa alguma.” (Tg 1.2-4).
Nós vemos também sendo declarado neste texto qual é o fim da santificação: o aperfeiçoamento espiritual dos crentes, em plena maturidade espiritual, de modo a aprenderem a paciência, ou perseverança (hupomoné) cristã.
É somente quando o crente está pronto a vencer as tribulações, provações, perseguições, pela amadurecimento da sua fé, que ele estará efetivamente preparado para fazer a obra de Deus, porque esta lhe trará certamente perseguições da carne, do diabo e do mundo.
“16 Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça;
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17 Para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra.” (II Tim 3.16, 17).
Neste e em vários outros textos da Escritura nós vemos a declaração deste desígnio de Deus para que os Seus filhos sejam aperfeiçoados no seu crescimento espiritual. Esta é uma doutrina das Escrituras, a saber a do aperfeiçoamento dos santos. E é basicamente a isto que visa a santificação.
“Ora, amados, pois que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus.” (II Cor 7.1).
“Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo;” (Ef 4.12).
“Vos aperfeiçoe em toda a boa obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o que perante ele é agradável por Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Amém.” (Hb 13.21).
“E o Deus de toda a graça, que em Cristo Jesus vos chamou à sua eterna glória, depois de haverdes padecido um pouco, ele mesmo vos aperfeiçoará, confirmará, fortificará e fortalecerá.” (I Pe 5.10).
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Nós vemos nestas passagens das Escrituras a necessidade deste aperfeiçoamento para a realização da obra de Deus. E como podem alguns alegar que isto é apenas uma referência para o por vir? Com isto eles conseguem tornar os crentes carnais e indolentes, descuidados totalmente em relação ao empenho em diligência para o seu crescimento espiritual.
Este modo progressivo de Deus trabalhar a nossa santificação está declarado em Is 27.2,3:
“2 Naquele dia haverá uma vinha de vinho tinto; cantai-lhe.
3 Eu, o Senhor, a guardo, e cada momento a regarei; para que ninguém lhe faça dano, de noite e de dia a guardarei.” (Is 27.2,3).
Esta água do Espírito Santo será regada diariamente em nossas vidas tanto para nos purificar do pecado quanto para realizar o crescimento que procede de Deus em santificação.
E o modo de não se desperdiçar esta água preciosa é sendo obediente à Palavra de Deus. Ela fará o trabalho de crescimento e purificação, mas depende da nossa obediência para que o trabalho possa ser realizado.
E assim como a chuva que rega a terra procede do céu, a nossa graça que molha a terra espiritual dos nossos corações procede também do céu, no qual Cristo se encontra. E a vida eterna que temos depende desta água viva que é
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derramada por Ele sobre nós pela santa presença do Espírito.
“1 Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus.
2 Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra;
3 Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.” (Col 3.1-3).
E este trabalho de santificação será paciente de modo a não se apagar o pavio que fumega, e de não se esmagar a cana quebrada. Deus fará aumentar a pequena chama de santidade que houver em nós e pode transformá-la num fogaréu. E as nossas imperfeições, pelas quais estamos quebrados serão curadas, de maneira que não sejamos esmagados pelos juízos de Deus por causa destas imperfeições resultantes do pecado.
E a progressividade do trabalho de santificação está inclusa nas palavras de Jesus em João 15.4, 5:
“4 Estai em mim, e eu em vós; como a vara de si mesma não pode dar fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes em mim.
5 Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.” (João 15.4,5).
Estas palavras indicam a necessidade de dependência permanente do Senhor e do Seu
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trabalho sobrenatural em nós para que possamos ser santificados. E isto demanda uma purificação constante e diária. Uma consagração e devoção a ele em cada minuto de nossas vidas. Não podemos tê-lo por um prazo determinado, para decidirmos nos consagrar a Ele por mais um outro prazo. Não é assim que se santifica a vida, senão permanecendo nEle em todo o tempo, buscando-O de todo o coração, força e entendimento, de maneira que Ele possa operar eficazmente em nós.
É preciso estarmos determinados que somos como ramos na videira, e devemos portanto nos comportar nesta condição em relação a Jesus, não nos afastando da nossa comunhão com Ele por um só segundo, porque isto traria prejuízo ao nosso crescimento espiritual, assim como o ramo que não pode ter vida caso seja desligado da videira.
Assim o começo da graça na santificação procede de Deus, e a continuação e o aumento desta santificação também procede dEle. E este “sem mim nada podeis fazer” serve para nos alertar e nos tornar humildes perante Deus, sabendo que até mesmo a nossa obediência, vigilância, diligência, dependem dEle, em nos inspirar e incentivar a isto, porque de outro modo, ficaríamos cansados e desanimados no meio do caminho, e por isso é necessário que sejamos fortificados diariamente na graça de Jesus, para que possamos efetuar o bem que
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desejamos, e não sermos vencidos pelo mal que não queremos.
“Tu, pois, meu filho, fortifica-te na graça que há em Cristo Jesus.” (II Tim 2.1).
Este crescimento progressivo da graça em santidade pela santificação pode ser comparado com o crescimento gradual das árvores e plantas de um modo geral.
“5 Eu serei para Israel como o orvalho. Ele florescerá como o lírio e lançará as suas raízes como o Líbano.
6 Estender-se-ão os seus galhos, e a sua glória será como a da oliveira, e sua fragrância como a do Líbano.” (Os 14.5,6).
“3 Porque derramarei água sobre o sedento, e rios sobre a terra seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade, e a minha bênção sobre os teus descendentes.
4 E brotarão como a erva, como salgueiros junto aos ribeiros das águas.” (Is 44.3,4).
E nós vemos isto em muitas outras passagens das Escrituras, a saber, Deus comparando o nosso crescimento espiritual aos das plantas.
Assim como as plantas possuem um princípio vital em si mesmas que as conduz ao crescimento, de igual modo a graça é a semente da vida eterna que contém um princípio vivente e crescente.
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Assim, se o crescimento que alguém pensa estar tendo em santidade, se não vier de um princípio de vida espiritual no coração, não será de modo nenhum um fruto da santidade e nem é pertencente a ela.
A fonte da água da graça que jorra de Jesus Cristo é uma fonte para a vida eterna (João 4.14), e assim trabalhará no sentido de produzir a plenitude desta vida no crente, e sabemos que a natureza desta vida é a santidade que procede de Deus.
Então é da natureza da santidade prosperar e crescer, assim como é a natureza das árvores e plantas em geral.
E assim como o crescimento destas árvores e plantas é progressivo, até gerarem o fruto próprio a cada espécie, de igual modo a santificação cresce progressivamente, e este e um outro motivo do trabalho de Deus no crente para o seu crescimento espiritual ser comparado ao crescimento das árvores.
E este crescimento de árvores e plantas é secreto e imperceptível, nem é discernido nos seus efeitos e consequências.
O olho mais alerta pode discernir pouco de seu movimento em crescimento.
E não é o mesmo que ocorre com o crescimento progressivo em santificação? Isto não pode ser visto e medido pelo olho ou pelos demais sentidos naturais. E a única forma de se conhecer a medida do crescimento é pelo tipo de fruto que comprovará se árvore é boa ou má, e se está sadia ou não.
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Mas há ainda um grande paralelo comparativo no crescimento das plantas e dos crentes, porque este crescimento, tanto num quanto noutro, não é uniforme por todo o período de sua existência. Há saltos de crescimento em determinadas épocas em que se faz muito maior progresso do que em outros períodos. E isto se vê particularmente no trabalho da graça nos crentes que em certas ocasiões se intensifica em ações vigorosas, gerando grande aumento de fé, amor, humildade, abnegação, generosidade e nas demais virtudes que estão em Cristo.
Todos os crentes são árvores plantadas no jardim de Deus, e alguns prosperam mais do que outros neste crescimento em santificação, e há decadência de crescimento, mesmo nestes a que nos referimos em determinadas épocas, mas o maior crescimento que possa existir será ainda secreto.
Esta progressividade da santificação é também citada em Pv 4.18:
“Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito.” (Pv 4.18).
E esta luz perfeita do meio dia se achará nos crentes desde o crescimento dos primeiros e fracos raios de luz da aurora, isto é, do amanhecer, mas isto será feito no caso deles, entre nuvens, mas não podem impedir este sol poderoso da graça de brilhar na vida do crente,
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em suas obras feitas na luz e pela luz de Jesus, porque ainda que sejam feitas muitas brechas no curso da nossa obediência por causa da entrada de pecados atuais, o Senhor nos curará destes e manterá a comunhão conosco por causa do nosso empenho em santificação. E através de operações constantes e renovadas da graça Ele nos fará participantes do seu conforto e alegria.
Então se está disponibilizada aos crentes estas renovadas infusões de graça para curá-los de suas apostasias, toda vez que houver neles um sincero arrependimento pelo desejo de retornar ao trabalho da santificação, como podemos crer que estão sinceramente buscando a Deus aqueles crentes que estão continuamente Lhe pedindo que tenha misericórdia deles por causa dos seus pecados, e que nunca se levantam em santidade de vida? Será de fato real o interesse deles pela santificação? Ou estarão se aproximando de Deus para o atendimento de seus prazeres egoístas?
“2 Cobiçais, e nada tendes; matais, e sois invejosos, e nada podeis alcançar; combateis e guerreais, e nada tendes, porque não pedis.
3 Pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes em vossos deleites.” (Tg 4.2,3).
A verdadeira religião nos levará a buscar aquilo que não seja do nosso próprio interesse mas o que é dos outros, especialmente de Deus.
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“Não atente cada um para o que é [propriamente seu], mas cada qual também para o que é dos outros.” (Fp 2.4).
A verdadeira religião não nos levará a nos aproximarmos de Deus apenas quando julgamos ter necessidades específicas e urgentes para serem por Ele atendidas, mas sim, a buscá-lo continuamente para a transformação de nossas vidas de modo que possamos ser úteis em suas mãos, servindo ao próximo, e particularmente os domésticos da fé.
Onde faltar este desejo de ser bênção para outros, por esta consagração da vida a Deus, o que teremos num menor ou maior grau será alguém vivendo para atender aos seus desejos egoístas, atitude que tanto desagrada não apenas a Deus, como àqueles que são do convívio de tal pessoa.
Já comentamos antes que Deus elegeu o crente para viver num corpo servindo à cabeça e aos demais membros deste corpo. Ninguém deve viver exclusivamente para si, mas deve exercitar-se em amor. Se fomos criados individualmente, no entanto não o fomos para a individualidade. E esta comunhão em amor demanda generosidade em vez de egoísmo.
E o egoísmo é uma enfermidade para a alma como muitas outras espécies de pecado, que enfraquecem este princípio vital da santificação que opera por graça.
Um bebê natural deve ser bem assistido e deve ser mantido saudável para que possa crescer. Mas se for deixado entregue a si mesmo e se
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deixar de receber os cuidados necessários virá não somente a enfermar, enfraquecer, e até mesmo poderá morrer. De igual modo quando nós somos regenerados, nós somos como bebês recém-nascidos, e se nós tivermos o leite genuíno da Palavra pelo qual possamos crescer é bem certo que seremos achados saudáveis e progressivamente em crescimento. Mas, se ao contrário, nos permitirmos ser vencidos por tentações, negligências, conformidade com o mundo, seria algo surpreendente se fôssemos achados inanimados e fracos?
Por isso é necessário para este crescimento contínuo em santificação que haja também uma contínua alimentação adequada da Palavra, em esforços contínuos de diligência para sermos sempre achados no nosso primeiro amor.
E o trabalho de santificação será feito por Deus se nós não colocarmos nenhum tipo de obstrução a ele por prática deliberada de pecado e por indolência espiritual, e Ele o fará independentemente de estarmos conscientes ou não destas operações, porque a realização do trabalho depende da fidelidade dEle em cumprir o que tem prometido e não de nós mesmos. Pois dissemos antes que a tendência do princípio vital de graça que foi implantado nos crentes na regeneração é um princípio que está destinado a crescer conforme a determinação de Deus relativamente a ele.
E isto bem explica a perfeição do trabalho da santificação que não pode ser impedido na vida de um eleito, porque a promessa fiel do Senhor é que cumprirá cabalmente a obra de
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santificação que começou em nós ainda que muitos crentes possam obstruir o progresso desta obra por suas negligências e pecados.
Nós vemos então a necessidade da aplicação da ordenança de Jesus para que vigiemos e oremos em todo o tempo, para não cairmos em tentação, e o motivo apontado por Ele é o que a carne é fraca. Ele está falando que em face da impossibilidade da natureza terrena de fazer este trabalho de santificação, que os crentes devem se fortalecer diariamente e devem também se purificar diariamente na Sua graça, e isto eles farão através da vigilância e oração de um viver diligente, de quem está bem inteirado que não será possível viver a vida que lhe foi proposta por Deus sem isto. Nós vemos então por este critério bíblico quantos crentes carnais há na igreja de nossos dias. Eles são muito diferentes dos crentes da igreja primitiva. Muitos diferentes dos que haviam nos dias da Reforma. Dos que estiveram debaixo da direção de Wesley, Whitefield, Jonathan Edwards, Spurgeon, e tantos outros servos de Deus, que os instruíram devidamente acerca do dever de se santificarem, e que não apenas os instruíram como os ajudaram com suas orações e exortações a fazerem progresso em sua maturidade espiritual.
É nosso dever crescer e progredir em santidade; porque é isto o que Deus requer de nós, e nós devemos crer que Ele nos ajudará nisto capacitando-nos em tudo que for necessário a tal crescimento.
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É nosso dever também nos examinarmos continuamente para verificarmos se estamos progredindo ou não em santidade, apesar da dificuldade desta avaliação, em razão deste trabalho ser secreto e silencioso no coração como vimos anteriormente com nossa comparação com as árvores e plantas.
Mas em nossa própria constituição física, há uma ilustração deste desenvolvimento secreto da santificação, conforme palavras do apóstolo em II Cor 4.16:
“Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia.” (II Cor 4.16).
O que ele está dizendo neste texto é que assim como ficamos decadentes quanto ao nosso vigor físico, que vai definhando através da velhice até conduzir à morte, e que esta decadência não é logo percebida, salvo se a pessoa for acometida por grave enfermidade, de igual modo, o trabalho de renovação interior em santificação do espírito acompanha esta decadência exterior, de modo que enquanto o homem exterior vai morrendo em sua constituição física, o interior, criado em Cristo Jesus, vai ficando cada vez mais forte e semelhante a Ele.
Assim, como este trabalho de crescimento interior em santificação é secreto e não facilmente discernível à percepção natural, então embora alguns crentes possam estar sendo assaltados por tentações ou sendo vencidos por pecados específicos, em
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determinadas épocas, não poderemos fazer um julgamento correto quanto ao progresso de suas graças em santidade. Um navio pode ser lançado para lá e para cá e ainda manter o curso e intactas as suas cargas.
De tal maneira está determinado por Deus que a graça seja invencível e que ela superabunde onde abundou o pecado, que somente Deus pode julgar quais as situações em que o crescimento na santificação será detido por causa das corrupções da carne. Mas no geral, a prática eventual de pecados não poderá deter este trabalho porque entre a fraqueza da carne, e o vigor que se recebe de Deus quando nos aproximamos dEle com um coração sincero e para o propósito correto de agradar-Lhe e obedecer-Lhe. Então a graça se revelará poderosa para destruir o pecado, e todas as barreiras que poderiam nos separar da comunhão com Deus, apesar de estarmos rodeados de fraquezas em nós mesmos. A vitória da cruz prevalecerá sobre o pecado, e a graça reinará triunfante em nossos corações, pelo poder do Espírito Santo que em nós habita.
É importantíssimo ter sempre isto em vista, para que não saiamos pelo mundo afora proclamando um evangelho no qual o pecado seja mais poderoso do que a graça, e o faremos certamente se tivermos a ideia de que um mínimo pensamento eventual pecaminoso poderá desfazer por completo ou interromper o trabalho de santificação que foi implantado em nós na regeneração.
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Por outro lado, não devemos permitir o maligno pensamento de que podemos viver pecando, por conta do que foi dito anteriormente. Aqui devemos lembrar das palavras do apóstolo Paulo em Rom 6., porque é por este tipo de pensamento, que denota um coração perverso, que obstrui o trabalho de santificação, porque é esta disposição carnal deliberada que é a maior inimiga da santidade, porque aqueles que são dirigidos pelo Espírito Santo, não dão boa acolhida ao pecado, antes procuram mortificá-lo para o inteiro agrado de Deus, por saberem o quanto Ele detesta o pecado.
“1 Que diremos pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça abunde?
2 De modo nenhum. Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” (Rom 6.1,2).
E quão sutil é o limiar entre uma mente carnal e uma mente espiritual. Pode-se migrar de uma posição a outra por uma simples mudança de convicção, num rápido e breve pensamento. É aqui que incorrem em erro aqueles que cansados do legalismo, começam a pregar que não importa como vivam os crentes, Deus continuará abençoando as Suas vidas, por causa desta provisão superabundante da graça. Paulo advertiu então a igreja sobre este tipo de mentalidade carnal que justifica o pecado, pois o pecado nunca deve ser justificado, senão odiado e extirpado. Assim, enquanto estamos persuadidos e sabemos que a graça é
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superabundante e manterá o trabalho de santificação apesar da nossa fraqueza, incapacidade e eventuais pecados, devemos continuar abrigando permanentemente fortes pensamentos contra o pecado e a necessidade de um imediato arrependimento toda vez que viermos a pecar.
Entretanto, não desconhecemos que através das agressões violentas que a alma sofre através das tentações, tribulações e até mesmo por determinados pecados, é comum que a alma fique quebrantada, desestruturada, e as suas convicções arraigadas podem ser confrontadas pela Palavra de Deus e ceder a ela para a sua reconstrução. Então através de sucessivos golpes de dinamitação espiritual da alma, Deus a vai remodelando segundo a Sua Palavra. As resistências da alma são rompidas por estes duros golpes que lhes são desferidos, e em meio a isto, a santificação executa o trabalho que lhe foi designado por Deus.
A face da terra é também reorganizada pelas tempestades e incêndios florestais. E até mesmo as árvores são beneficiadas pelos ventos para se firmarem e frutificarem, porque o vento ajuda à polinização de suas flores. Então as tribulações não têm o propósito de destruir a fé dos crentes, senão de fortificá-la. E é em face disto que Tiago diz que devemos ter grande alegria por passar por várias provações, e Paulo diz que devemos nos gloriar nas próprias tribulações, em razão do trabalho benéfico para o nosso crescimento em santificação que resulta delas.
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Assim, através das provações Deus pode abrir novos canais para que a graça continue fluindo na alma, de maneira que aqueles canais que haviam secado possam ser substituídos por estes novos canais que alimentarão a alma com a água viva que lhe proverá o crescimento espiritual necessário.
Mas pode ocorrer com muitos, que haja grandes decadências na graça e na santidade, e que a obra de santificação anterior neles, possa ser obstruída por uma longa época. Muitas ações da graça serão perdidas em tais pessoas, por causa de suas rebeliões e negligências contumazes, e para as quais não se buscou arrependimento. Então as poucas coisas relativas à sua santificação que permaneceram estão prontas a morrer e a Bíblia fala abundantemente sobre isto, conforme o exemplo que temos em Apo 3.2:
“Sê vigilante, e confirma os restantes, que estavam para morrer; porque não achei as tuas obras perfeitas diante de Deus.” (Apo 3.2).
E quanto se tem visto disto em nossos dias, porque aqueles que caminhavam bem e que demonstravam uma grande santificação estão sendo achados em grande apostasia das verdades que eles tão tenazmente haviam defendido dantes. Isto porque se deixaram levar por ventos de doutrinas, por orgulho espiritual, amor às riquezas terrenas, e por tantas outras coisas que podem levar um crente a decair da fé.
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E mesmo nestes casos, não podemos passar um atestado final de que não há nenhuma santidade sincera onde achamos tais decadências. Mas nós devemos indagar quais são as razões que conduzem a isto, porque elas são contrárias ao progresso gradual em santificação. Estas decadências são ocasionais e contrárias à verdadeira natureza e constituição da nova criatura, e uma perturbação da obra da graça. São doenças em nosso estado espiritual das quais nós seremos curados, e portanto, pelas quais o nosso estado espiritual não pode ser medido.
A enfermidade do espírito não deve ser justificada, mas curada, e o Espírito Santo tem prescrito o remédio do arrependimento e da diligência para que possamos ser curados. Enquanto isto não for feito, a cura não será processada. E quanto mais cedo o fizermos será melhor para nós, porque a enfermidade poderá avançar e nos debilitar grandemente de modo que torne mais dificultosa a cura.
E assim, se temos visto que a obra da santificação está determinada por Deus para ser progressiva, e que é o desígnio da graça fazer com que a santidade aumente em nós, e isto numa medida cada vez mais perfeita, então é nosso dever ter toda a diligência para que o nosso crescimento espiritual possa progredir (Hb 6.11; II Pe 1.5-7). .
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E há algumas coisas que podem dificultar este progresso em santificação, e dentre estas enumeramos as seguintes:
1 - uma presunção ou persuasão infundada de que já somos perfeitos.
Aqui convém ler Fp 3.12-14:
”12 Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para o que fui também preso por Cristo Jesus.
13 Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão diante de mim,
14 Prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus”.
Paulo mostra que nem ele próprio havia alcançado a perfeição absoluta. E certamente jamais a alcançaremos neste mundo. E é daí que decorre que o trabalho da santificação é progressivo continuamente, porque se houvesse a possibilidade de tal perfeição absoluta, não poderíamos ter uma certeza absoluta quanto à progressividade deste trabalho.
Devemos destacar entretanto, que o apóstolo declara o dever de todos seguirem o seu exemplo correndo para o alvo, a saber, para alcançar o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. E aqui ele está se referindo ao dever de corrermos rumo à perfeição total,
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porque Deus colocou este objetivo soberano diante de todos os crentes para incentivá-los a crescerem e se aperfeiçoarem espiritualmente em santificação.
Nós vemos nas palavras do apóstolo uma disposição de ânimo de quem está numa corrida ininterrupta e para a qual por mais que nos aproximemos do final nunca o alcançaremos nesta vida, mas do qual nos aproximaremos mais e mais, nos distanciando de muitos outros que estarão correndo atrás de nós. Então a força do argumento é que ninguém deve estar satisfeito com o nível de santificação que alcançou, e deve se empenhar sempre para obter muito mais. Assim concluímos que aqueles que se julgam perfeitos podem estar parados no meio do caminho sem fazer nenhum progresso em santificação.
2 – uma segunda coisa que pode atrapalhar o progresso em santificação é a tola suposição que, apesar de estarmos interessados num estado de graça, nós não precisamos agora estar tão preocupados com uma estrita santidade e obediência em todas as coisas ordenadas por Deus, como estávamos no passado. Os que pensam deste modo deveriam fazer uma séria avaliação quanto ao fato de estarem ainda na posse de alguma graça ou santidade, porque esta persuasão não vem dAquele que nos chamou. Não há uma máquina mais eficaz do que esta na mão de Satanás para nos afastar da santidade ou abafá-la quando esta for alcançada. Nem há qualquer outro tipo de pensamento que
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possa surgir nos corações dos homens e que seja mais oposto à natureza da graça do que este.
3 – e ainda, como fator obstrutor do progresso em santificação, podemos citar o cansaço e desânimos, que são resultantes das adversidades e oposições que sofremos por causa do evangelho e do nosso amor à justiça.
Alguns encontram um motivo para desistirem do progresso em santificação, nas dificuldades tanto interiores quanto exteriores, e desfalecem e abandonam a diligência nos deveres ordenados na Palavra e desistem de sua luta contra o pecado. E há ainda um grupo que é impedido de crescer pelo fascínio pelas riquezas deste mundo e pelos demais cuidados deste mundo, no qual passam a colocar inteiramente os seus corações.
CAPÍTULO 3
CRENTES O ÚNICO OBJETO DA SANTIFICAÇÃO, E ASSUNTO DE SANTIDADE DE EVANGÉLICA
A santidade evangélica está limitada aos crentes. É somente por eles que Jesus orou por esta misericórdia, graça ou privilégio:
“6 Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste; eram teus, e tu mos deste, e guardaram a tua palavra.
7 Agora já têm conhecido que tudo quanto me deste provém de ti;
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8 Porque lhes dei as palavras que tu me deste; e eles as receberam, e têm verdadeiramente conhecido que saí de ti, e creram que me enviaste.
9 Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus.” (João 17.6-9).
“14 Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo.
15 Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal.
16 Não são do mundo, como eu do mundo não sou.
17 Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade.
18 Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.
19 E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade.
20 E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela sua palavra hão de crer em mim;” (João 17.14-20).
Quando Jesus orou ao Pai para que Ele santificasse os crentes na verdade (v. 17) Ele não limitou este pedido apenas aos apóstolos e discípulos de seus dias, pois estendeu Sua intercessão para que todos os crentes que viessem a crer no futuro fossem também santificados (v. 20). Nós vemos assim que todos os crentes, até que Ele volte estão debaixo desta
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intercessão e vontade, para que sejam santificados.
E esta santificação seria realizada neles pelo Espírito Santo, conforme Ele havia prometido em João 7.38,39:
“38 Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre.
39 E isto disse ele do Espírito que haviam de receber os que nele cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado.” (João 7.38,39).
E esta obra de santificação é comparada ao fluir de água viva, dado o caráter vivificante desta santificação, que cresce progressivamente, e que procedem do alto, do templo de Deus, conforme foi dado ver ao profeta Ezequiel:
“1 Depois disto me fez voltar à porta da casa, e eis que saíam águas por debaixo do umbral da casa para o oriente; porque a face da casa dava para o oriente, e as águas desciam de debaixo, desde o lado direito da casa, ao sul do altar.
2 E ele me fez sair pelo caminho da porta do norte, e me fez dar uma volta pelo caminho de fora, até à porta exterior, pelo caminho que dá para o oriente e eis que corriam as águas do lado direito.
3 E saiu aquele homem para o oriente, tendo na mão um cordel de medir; e mediu mil côvados, e me fez passar pelas águas, águas que me davam pelos artelhos.
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4 E mediu mais mil côvados, e me fez passar pelas águas, águas que me davam pelos joelhos; e outra vez mediu mil, e me fez passar pelas águas que me davam pelos lombos.
5 E mediu mais mil, e era um rio, que eu não podia atravessar, porque as águas eram profundas, águas que se deviam passar a nado, rio pelo qual não se podia passar.
6 E disse-me: Viste isto, filho do homem? Então levou-me, e me fez voltar para a margem do rio.
7 E, tendo eu voltado, eis que à margem do rio havia uma grande abundância de árvores, de um e de outro lado.
8 Então disse-me: Estas águas saem para a região oriental, e descem ao deserto, e entram no mar; e, sendo levadas ao mar, as águas tornar-se-ão saudáveis.
9 E será que toda a criatura vivente que passar por onde quer que entrarem estes rios viverá; e haverá muitíssimo peixe, porque lá chegarão estas águas, e serão saudáveis, e viverá tudo por onde quer que entrar este rio.
10 Será também que os pescadores estarão em pé junto dele; desde En-Gedi até En-Eglaim haverá lugar para estender as redes; o seu peixe, segundo a sua espécie, será como o peixe do mar grande, em multidão excessiva.
11 Mas os seus charcos e os seus pântanos não tornar-se-ão saudáveis; serão deixados para sal.
12 E junto ao rio, à sua margem, de um e de outro lado, nascerá toda a sorte de árvore que dá fruto para se comer; não cairá a sua folha, nem acabará o seu fruto; nos seus meses produzirá novos frutos, porque as suas águas saem do
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santuário; e o seu fruto servirá de comida e a sua folha de remédio.” (Ez 47.1-12).
Estes rios de água viva referidos por Jesus em João 7.38,39, crescem progressivamente em sua abundância de águas, à medida que eles avançam. Temos aqui no texto de Ezequiel uma clara referência ao crescimento progressivo do derramar da graça na obra da santificação. Alguns veem neste texto uma referência ao derramar do Espírito Santo que se intensificaria mais e mais em toda a face da terra, à medida que o tempo passasse, até a volta de Jesus.
“Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.” (II Cor 3.18).
Este crescimento e progresso da obra de santificação nos crentes traz muita glória ao nome do Senhor, e por isso Paulo diz que a transformação à imagem do Senhor, pelo trabalho de santificação é realizado de glória em glória. E não padece dúvida que a glória que sucede a glória anterior é maior do que esta, porque houve um crescimento de graças na santificação efetuada, e assim sucessivamente até que se chegue à estatura de varão perfeito.
E se a perfeição em glória, a perfeição absoluta, pelo trabalho de santificação será manifestada somente na volta do Senhor, no entanto não o é
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a glória de varão perfeito, o homem maduro segundo Deus, no corpo místico de uma igreja também madura, e capacitada com todos os dons e graças espirituais para o seu serviço, com crentes amadurecidos, e perfeitamente habilitados para toda boa obra, porque esta glória é para ser atingida ainda neste mundo, conforme o propósito estabelecido por Deus. E é a este tipo de perfeição que se referem as seguintes passagens, dentre outras:
“Por isso todos quantos já somos perfeitos, sintamos isto mesmo; e, se sentis alguma coisa de outra maneira, também Deus vo-lo revelará.” (Fp 3.15).
“Saúda-vos Epafras, que é dos vossos, servo de Cristo, combatendo sempre por vós em orações, para que vos conserveis firmes, perfeitos e consumados em toda a vontade de Deus.” (Col 4.12).
“Mas o mantimento sólido é para os perfeitos, os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem como o mal.” (Hb 5.14).
“Tenha, porém, a paciência a sua obra perfeita, para que sejais perfeitos e completos, sem faltar em coisa alguma.” (Tg 1.4).
“Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam;” (I Cor 2.6).
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“Quanto ao mais, irmãos, regozijai-vos, sede perfeitos, sede consolados, sede de um mesmo parecer, vivei em paz; e o Deus de amor e de paz será convosco.” (II Cor 13.11).
“Para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra.” (II Tim 3.17).
“Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo,” (Ef 4.13).
“A quem anunciamos, admoestando a todo o homem, e ensinando a todo o homem em toda a sabedoria; para que apresentemos todo o homem perfeito em Jesus Cristo;” (Col 1.28).
É notório que esta obra de aperfeiçoamento espiritual até a plena maturidade não pode, de modo algum, ser realizada pelo Espírito Santo naqueles que são do mundo e que não conhecem e não amam a Deus, e Jesus foi muito claro quanto a esta possibilidade no texto de João 14.17:
“O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós.” (João 14.17).
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O Espírito Santo não foi dado portanto como Consolador daqueles que são do mundo, senão somente daqueles que não são do mundo e que portanto, se convertem a Deus. E muito menos Ele é o Santificador dos que são do mundo, porque este trabalho somente pode ser realizado naqueles que se submetem à vontade de Deus, a saber, aqueles que nasceram de novo e foram tornados Seus filhos.
E onde não está ocorrendo este trabalho de santificação na igreja visível não será incomum que crentes verdadeiros fiquem em grande perplexidade diante daqueles que se dizem crentes e que na verdade não são, por serem hipócritas, cristãos nominais que passam por filhos de Deus e que não são, e por conseguinte não apresentam evidências de qualquer trabalho de santificação em suas vidas, comprovando assim que este trabalho é realizado pelo Espírito Santo exclusivamente naqueles que são filhos de Deus. Como eles costumam imitar os dons e os frutos do Espírito, isto pode gerar alguma dúvida quanto à real condição espiritual deles nos que são menos experientes, mas os amadurecidos em santidade, saberão discernir plenamente que não há um verdadeiro trabalho de santificação em tais pessoas. O joio é plantado no meio do trigo, pelo Inimigo, com o propósito de produzir escândalos e para prejudicar o avanço da obra de Deus. E os verdadeiros crentes devem estar atentos a isso para não se deixarem influenciar por eles, de modo a abandonarem a sua firmeza em Cristo e na boa doutrina que estiverem
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aprendendo. É comum que crentes carnais sejam abordados por este joio que procura estabelecer uma relação de amizade com os crentes carnais, para que estes sejam detidos no crescimento em santificação pelo reforço de uma mentalidade carnal que receberão por sugestão e influência do comportamento deste joio que desconhece inteiramente a mente de Cristo e a obra da santificação, porque esta não é destinada a eles, e nem mesmo pode ser, senão somente a verdadeiros crentes, que tenham sido regenerados pelo Espírito.
Estamos apresentando a seguir o modo e o método de operação do Espírito Santo nos crentes, para uma melhor compreensão da Sua obra quanto às características dos receptores desta obra, principalmente para que possamos discernir quem são aqueles com os quais devemos estabelecer o nosso companheirismo cristão, de modo que possamos nos prevenir de nos tornarmos amigos do peito de quem não é e nem mesmo pode ser amigo do peito de Deus, em razão de não ser um autêntico eleito, e que se passe por crente, sendo na verdade joio, para tentar impedir o nosso crescimento em santificação, pelo trabalho de influenciar nossas mentes com comportamentos e afirmações que sejam contrárias à verdade revelada nas Escrituras.
Quanto a isto, antes de apresentarmos este modo e método de operação do Espírito nos verdadeiros crentes, devemos enfatizar que é o próprio Deus que determina este afastamento daqueles que se passam por crentes e que na
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verdade não são. E tão essencial é a manutenção da disciplina e da sã doutrina na igreja, que até mesmo é recomendado que aqueles que estão sendo obedientes e se santificando evitem estar em comunhão com aqueles que andam de modo contrário à Palavra:
“Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai o tal, e não vos mistureis com ele, para que se envergonhe.” (II Tes 3.14).
“9 Todo aquele que prevarica, e não persevera na doutrina de Cristo, não tem a Deus. Quem persevera na doutrina de Cristo, esse tem tanto ao Pai como ao Filho.
10 Se alguém vem ter convosco, e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis.” (II João 9, 10).
Feitas estas considerações passemos agora ao modo e ao método do Espírito Santo em suas operações relativas aos eleitos:
O Espírito Santo é prometido e recebido para estas quatro operações fundamentais
1 – Regeneração, 2 – santificação, 3 - consolação, e 4 – edificação.
Primeiro, como vimos, o Espírito Santo é prometido somente aos eleitos. Isto significa que Ele somente regenera os eleitos. Quem não é eleito não pode ser regenerado. Jesus deixou isto muito claro a Nicodemos explicando-lhe o
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modo como o Espírito opera o novo nascimento, como vento que sopra onde quer. Isto indica a soberania de Deus na concessão desta graça somente àqueles que são escolhidos.
No dizer do apóstolo Paulo isto não depende de quem quer ou de quem corre, mas do uso soberano de Deus de Sua misericórdia, que é exibida para a salvação a quem Ele tem escolhido. E para marcar esta eleição, ele cita o exemplo de Esaú e Jacó, da própria escolha de Israel entre todas as nações, e fala também do endurecimento de faraó, no nono capítulo de Romanos.
E para este trabalho de regeneração, para reconstrução à imagem do próprio Cristo, são escolhidos pecadores, que é a condição de todos os homens neste mundo, pessoas desprovidas de méritos e qualificações que as pudesse recomendar à salvação, pessoas em completo estado de miséria espiritual, pobres para Deus e violadoras dos Seus mandamentos e vontade. Então esta escolha é por pura misericórdia divina, e daí se dizer que os eleitos são vasos de misericórdia, porque será neles em especial que Deus manifestará o caráter da Sua grande misericórdia, porque eles a receberão e contarão com ela em suas vidas, por toda a eternidade.
Estes que serão transformados em filhos de Deus estavam em trevas, e serão chamados para a Sua luz, e serão submetidos a um trabalho de purificação do pecado e de reconstrução dos atributos divinos em sua personalidade. E isto é
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feito inicialmente pelo Espírito Santo na regeneração.
Agora, em segundo lugar, os que foram assim regenerados devem ser santificados. Então dizemos que somente estes e nem mesmo os eleitos que ainda não foram regenerados, podem contar com o trabalho do Espírito em santificação. Nenhuma obra de aperfeiçoamento espiritual poderia ser realizada em Nicodemos se ele não tivesse primeiro nascido de novo.
Mas as diversas operações do Espírito Santo não param na regeneração e na santificação, porque Ele é também o Consolador, e neste trabalho Ele conforta os que estão se santificando especialmente com a alegria e paz da Sua presença, em confortos inexprimíveis, especialmente nas aflições e dificuldades que tenhamos que enfrentar. Mas, por ordem, ninguém espere esta consolação se esta não for precedida pela santificação. Ele não consola a nenhum crente enquanto este permanece deliberadamente no pecado. E sejam estes pecados ocultos ou não. A falta de consolação é indicadora de que algo precisa ser feito em arrependimento, perdão, quebrantamento ou qualquer outra forma de humilhação necessária para que o Espírito nos exalte em tempo oportuno.
É muito comum que crentes sejam achados debaixo de correções e não de consolações, por motivo de não se disporem a perdoar e a amar os
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seus inimigos. Guardando mágoas em seus corações e fechando-se à ação da graça eles ficam em prisões espirituais, sujeitos aos verdugos, até que decidam abrir seus corações para serem libertados dos rancores que os levaram à prisão, para que então possam experimentar as doces consolações do Espírito, estando com suas almas em plena liberdade espiritual para louvar a Deus, com paz e alegria em seus corações.
Então, pelo que temos visto até aqui, o método do Espírito é então primeiro regenerar, depois santificar, e depois consolar, sempre nesta ordem.
E há ainda operações diversas do Espírito e não menos importantes, relativas ao exercício do ministério, e estas são descritas pelo apóstolo Paulo em I Cor 12 a 14. Ali é descrito todo o ferramental em dons e serviços que são distribuídos aos crentes para a edificação da igreja. Mas aqui há uma consideração importante a ser feita, porque se nas três operações anteriores de regeneração, santificação e consolação, não são contemplados senão apenas os eleitos, quanto a alguns dons sobrenaturais descritos nestes capítulos citados de I Coríntios (profecia, curas etc) estes podem ser concedidos excepcionalmente, para propósitos determinados por Deus, também a não eleitos. E há uma razão para isto, porque se nas três primeiras operações descritas inicialmente existe uma ligação direta e implantação de graças na natureza do eleito, o mesmo já não
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ocorre com estes dons sobrenaturais, que são capacitações, serviços que não se ligam à natureza do receptor, pois vêm e vão assim como vieram, e não produzem nenhuma transformação no caráter daquele que os utilizou. Por isso podemos entender a possibilidade de Judas ter curado enfermos, profetizado, expulsado demônios, e realizado outros serviços na condição de apóstolo do Senhor, sem no entanto ser um verdadeiro eleito convertido, pois se diz dele que era filho da perdição. Do mesmo modo podemos entender porque Saul profetizou, e porque Jesus dirá que não conhece a muitos que protestarão no tempo do fim que profetizaram e realizaram milagres em Seu nome, se bem, que dentre estes deve ser considerada também a imitação do Inimigo quanto a estes dons, e até mesmo a falsidade da alegação.
“4 Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo.
5 E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo.
6 E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.
7 Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil.” (I Cor 12.4-7).
Obviamente, quando o apóstolo cita os dons, ministérios e operações para a edificação da igreja, ele tem por alvo instruir verdadeiros crentes, e não estava, de modo nenhum, visando
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instruir não eleitos quanto à possibilidade e dever de buscarem estes dons e ministérios.
E devemos considerar que se a regra da medida da comunicação do Espírito para a regeneração é a eleição; e a regra para a santificação é a regeneração; e a da consolação é a santificação, a regra para a edificação tem também o seu critério, pois se diz em I Cor 12.7 que é dada a cada um para o que for útil. E isto o Espírito faz em Sua soberania como Lhe apraz. Mais especificamente esta regra de medida da comunicação do Espírito para a edificação segue em linhas gerais a necessidade de se pregar o evangelho para o que for útil a outros (I Cor 12.7), e assim entendemos que estas capacitações serão concedidas prioritariamente à igreja, e especialmente aos seus líderes, constituídos pelo Espírito para apascentá-la.
E assim como os crentes devem orar para que sejam consolados em suas tristezas e tribulações, de igual modo eles devem orar para receber os melhores dons, com os quais possam servir à igreja e ao próximo.
Um dos principais motivos para se orar pela capacitação do Espírito para a realização dos serviços que visam à edificação do corpo de Cristo, que é a igreja, tem em vista, principalmente evitar que façamos a obra de Deus na energia da carne, e segundo o homem, e não no poder de Deus e segundo Deus.
Nisto devemos imitar o apóstolo Paulo:
“Pelo poder dos sinais e prodígios, na virtude do Espírito de Deus; de maneira que desde
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Jerusalém, e arredores, até ao Ilírico, tenho pregado o evangelho de Jesus Cristo.” (Rom 15.19).
“1 E eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria.
2 Porque nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado.
3 E eu estive convosco em fraqueza, e em temor, e em grande tremor.
4 A minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder;
5 Para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus.” (I Cor 2.1-5).
“19 Mas em breve irei ter convosco, se o Senhor quiser, e então conhecerei, não as palavras dos que andam ensoberbecidos, mas o poder.
20 Porque o reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder.” (I Cor 4.19, 20).
“Porque o nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em muita certeza, como bem sabeis quais fomos entre vós, por amor de vós.” (I Tes 1.5).
Visando também à edificação da igreja em amor, o Espírito Santo constitui também os ministérios para a referida edificação:
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“11 E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores,
12 Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo;
13 Até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo,
14 Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulentamente.
15 Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo,
16 Do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor.” (Ef 4.11-16).
Nós vemos então que a concessão excepcional de dons sobrenaturais do Espírito, a não crentes, não é e nem pode ser para este propósito de edificação da igreja em amor, senão para juízos dos seus receptores, que ainda que contemplados com tais dons, nem assim se voltaram para Deus.
Isto pode ser considerado no caso de curas obtidas pela pregação do evangelho e quando os beneficiados por elas não se arrependem de seus pecados e não se convertem a Deus, como
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foi o caso dos habitantes das cidades de Cafarnaum e Betsaida, nos dias do ministério de Jesus, e das palavras de juízo que Ele dirigiu a eles pela falta do referido arrependimento. Aquelas curas servirão somente para agravar o castigo deles no dia do Juízo Final, porque comprovarão a ingratidão deles a Deus e o endurecimento dos seus corações.
Então há grande responsabilidade envolvida no uso e na recepção dos dons do Espírito Santo, em Suas operações para manifestar o poder de Deus entre os homens. Portanto, deve haver grande submissão a Ele mesmo quando oramos para sermos dotados destes dons para o serviço ministerial que recebemos do mesmo Espírito, porque Ele concede estes dons segundo a Sua soberania, conforme Lhe apraz, e sempre para fins úteis, e não para meros caprichos relacionados à vontade humana.
Será requerido por Ele um bom uso destes dons, da mesma maneira que Ele não terá por inocente quem fizer um mau uso deles, principalmente por motivo de orgulho espiritual.
Nós devemos lembrar das palavras do apóstolo Pedro a Simão, o Mago, que tencionava receber os dons do Espírito para fins espúrios:
“18 E Simão, vendo que pela imposição das mãos dos apóstolos era dado o Espírito Santo, lhes ofereceu dinheiro,
19 Dizendo: Dai-me também a mim esse poder, para que aquele sobre quem eu puser as mãos receba o Espírito Santo.
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20 Mas disse-lhe Pedro: O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por dinheiro.
21 Tu não tens parte nem sorte nesta palavra, porque o teu coração não é reto diante de Deus.
22 Arrepende-te, pois, dessa tua iniquidade, e ora a Deus, para que porventura te seja perdoado o pensamento do teu coração;
23 Pois vejo que estás em fel de amargura, e em laço de iniquidade.” (At 8.18-23).
Nós vemos assim que em todas as operações do Espírito Santo, aquelas que estão ligadas diretamente à natureza das pessoas nas quais Ele trabalha com a graça, na transformação de suas naturezas, nós vimos que a regeneração, a santificação, e a consolação são operações que Ele realiza exclusivamente com os eleitos, com os crentes verdadeiros, e de modo nenhum os não eleitos podem ter participação nisto, assim como Jesus expressou em suas palavras quando comissionou Paulo para ser apóstolo dos gentios:
“Para lhes abrires os olhos, e das trevas os converteres à luz, e do poder de Satanás a Deus; a fim de que recebam a remissão de pecados, e herança entre os que são santificados pela fé em mim.” (At 26.18).
Ele deixa bem claro nestas palavras que os que são santificados são apenas aqueles que têm fé nele, isto é, aqueles que foram salvos pela graça, mediante a fé.
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Se houvesse algum outro modo ou meio pelo qual os homens pudessem ser santificados, Jesus não teria limitado isto à fé que está nele.
Somente em Jesus podemos receber graça sobre graça para a nossa santificação:
“E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça sobre graça.” (João 1.16).
Então onde não se vê esta multiplicação da graça do Senhor em avanço de crescimento espiritual, é porque não está ocorrendo a santificação esperada por Ele naqueles que sãos seus.
E estas graças são os aspectos multiformes daquela graça que nos salvou
“Cada um administre aos outros o dom como o recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça de Deus.” (I Pe 4.10).
E estas graças santificadoras são concedidas exclusivamente por Deus aos Seus filhos. Ele, em Sua bondade dispõe os meios naturais a todos os homens, e preserva a criação com interposições do Seu poder de modo a não permitir que o diabo destrua a todos os homens conforme bem Lhe aprouver. Se não houver permissão de Deus, Ele nada pode fazer, mesmo em relação aos não eleitos. Mas estes benefícios dos quais todos os homens desfrutam como o sol e a chuva que Deus em Sua bondade faz vir sobre todos eles, não são aquelas graças especiais do Espírito que Ele reserva somente
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para os eleitos, para a conversão deles, e para tudo o mais que for necessário ao crescimento deles.
“E os apóstolos davam, com grande poder, testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça.” (At 4.33).
“Porque, se pela ofensa de um só, a morte reinou por esse, muito mais os que recebem a abundância da graça, e do dom da justiça, reinarão em vida por um só, Jesus Cristo.” (Rom 5.17).
“Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo.” (Ef 4.7).
“Tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem.” (Hb 12.15).
E são as evidências desta santificação, exatamente por ser ela operada exclusivamente nos crentes, a melhor prova de quem é verdadeiramente eleito e filho de Deus, porque sendo um trabalho da graça tanto no corpo, quanto na alma, quanto no espírito, e um trabalho sobrenatural transformador do caráter, não devemos nos enganar pensando que possa haver alguma real santificação quando tudo o que se vê são meros esforços religiosos externos e aplicações voltadas para melhorar o comportamento, e por isso a obra de
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santificação é distinta de qualquer outra mera obra que haja na terra relativa a devoções religiosas. E por ela chegamos a saber que um verdadeiro crente não seria identificado apenas por aquilo que ele confessa crer, mas por este trabalho transformador do Espírito Santo no homem total, a saber, no corpo, alma e espírito, que o conduzem a uma semelhança cada vez maior com nosso Senhor Jesus Cristo.
E se pela santificação há de se aumentar progressivamente o conhecimento do Pai e do Filho (João 17.3), então há de se experimentar mais e mais a plenitude da vida eterna obtida na salvação, porque este conhecimento pessoal possibilita que amemos a Deus do modo como convém, porque não podemos amar senão o que conhecemos.
A ignorância é a mãe de muitos males, porque ser ignorante da verdade significa o mesmo que permanecer em trevas espirituais. Neste sentido os próprios demônios são designados como espíritos das trevas porque eles próprios permanecem em trevas de ignorância porque não lhes é facultado conhecerem em si mesmos as virtudes que pertencem ao reino de Deus. Jesus definiu o amor a Ele como sendo o cumprimento dos Seus mandamentos. E como cumpriremos aquilo que não conhecemos? Daí a importância de um ensino da verdade tal como ela se encontra revelada nas Escrituras. Sem este conhecimento é possível adorar o verdadeiro Deus só que da maneira errada, e isto não consistiria numa verdadeira adoração, daí Jesus ter dito à mulher samaritana, a par dos
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melhores esforços dela, que os samaritanos adoravam o que não conheciam, mas os judeus podiam adorar em espírito e em verdade, porque foi a eles que Deus havia se revelado até então, assim eles adoravam o que conheciam porque foi concedido a eles o privilégio de serem o povo depositário da revelação divina.
Dizemos que a obra de santificação é exclusiva dos crentes porque Jesus não põe vinho novo em odres velhos, nem remendo novo em roupa velha, porque a nova natureza que temos recebido tem sido colocada num homem novo que é chamado a continuar se renovando através do processo da santificação. Este novo homem foi criado na regeneração, e o chamado velho homem, que era o eleito antes da regeneração debaixo de seus pecados e transgressões recebeu a sentença de morte na sua identificação com a morte de Jesus na cruz. Então a demanda do trabalho da recriação consiste no despojamento progressivo do velho homem, e do revestimento também progressivo do novo.
A carne ou natureza terrena é inimizade contra Deus. Ela está cheia de vaidade, cegueira e loucura. Nada nela pode ser admitido no reino de Deus, pelas corrupções que se apoderaram dela por causa do pecado original. Então ela deve ser crucificada e sepultada. E a nova natureza, que é celestial, divina, é a semente recebida na regeneração e que é perfeita e santa em todas as suas partes, deve crescer e ocupar o lugar da velha natureza, e é desta nova natureza que devemos nos revestir progressivamente,
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neste trabalho de renovação que o apóstolo chama de renovação da mente (Rom 12.2). .
“22 Que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano;
23 E vos renoveis no espírito da vossa mente;
24 E vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade.” (Ef 4.22-24).
“8 Mas agora, despojai-vos também de tudo: da ira, da cólera, da malícia, da maledicência, das palavras torpes da vossa boca.
9 Não mintais uns aos outros, pois que já vos despistes do velho homem com os seus feitos,
10 E vos vestistes do novo, que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou;” (Col 3.8-10).
Como o princípio do pecado e da natureza corrompida é chamado em nós “o velho homem”; o princípio de santidade em nós, a renovação de nossas naturezas, é chamado de “o novo homem” porque este princípio se refere à pessoa como um todo.
CAPÍTULO 4
A CORRUPÇÃO DO PECADO - EM QUE CONSISTE E A SUA PURIFICAÇÃO
A purificação é a primeira noção da real santificação interna.
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Estar absolutamente sujo e ser santo são condições totalmente contrárias. E esta purificação, como vimos antes é realizada pelo Espírito Santo, sem que a obra da santificação consista completamente nisto, mas é esta purificação que é primeiramente requerida, e conforme consta nos próprios textos da Palavra referentes à santificação, como vimos em Ez 36.25.
Se em Ez 36 o Espírito Santo é apresentado como água purificadora, em Is 4.4 Ele é apresentado como um espírito de ardor que queima as impurezas.
“Quando o Senhor lavar a imundícia das filhas de Sião, e limpar o sangue de Jerusalém, do meio dela, com o espírito de justiça, e com o espírito de ardor.” (Is 4.4).
A água e o fogo são os meios pelos quais todas as coisas materiais são purificadas.
Tal é a imundície do pecado aos olhos santos de Deus que somente o sangue de Jesus pode purificar-nos do pecado e tornar-nos aceitáveis a Deus. Não que o sangue seja passado em nós, mas ele é a base na qual as nossas iniquidades são expiadas, porque elas são tão profundas que nada além da morte do próprio Deus na pessoa de Seu Filho que se fez homem, poderia receber o castigo equivalente à grandeza da ofensa do pecado. Uma grave ofensa exige um grave castigo. E o pecado que é uma ofensa de dimensão infinita, somente poderia ser
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liquidado por um castigo também de dimensão infinita, e isto o Pai fez derramando toda o furor da Sua ira contra o pecado em Seu próprio Filho que se deu por nós na cruz. Em nossa compreensão finita, nós não podemos alcançar toda a dimensão que está envolvida nesta purificação. O que podemos dizer é que isto não é como o simples ato de se tomar um banho para lavar o corpo.
“25 Vós, maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela,
26 Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra,” (Ef 5.25,26).
“O qual se deu a si mesmo por nós para nos remir de toda a iniquidade, e purificar para si um povo seu especial, zeloso de boas obras.” (Tito 2.14).
“Mas, se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado.” (I Jo 1.7).
“E da parte de Jesus Cristo, que é a fiel testemunha, o primogênito dentre os mortos e o príncipe dos reis da terra. Àquele que nos amou, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados,” (Apo 1.5).
“Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo
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imaculado a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo?” (Hb 9.14).
Estes textos mostram o quanto o pecado nos suja e para que possamos ser apresentados diante de Deus devemos ser limpos pelo sangue de Jesus. Este “pelo sangue” significa “por meio do sangue”. É estando debaixo da cobertura deste sangue precioso que foi derramado por causa dos nossos pecados, que não somos destruídos pela ira de Deus, como também somos reconciliados com Ele.
E a Bíblia está repleta de ensinos sobre a necessidade desta purificação relativa ao pecado, tanto em ilustrações como as referentes às purificações cerimoniais constantes do Velho Testamento, quanto em citações diretas.
“Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal.” (Is 1.16).
“Lava o teu coração da malícia, ó Jerusalém, para que sejas salva; até quando permanecerão no meio de ti os pensamentos da tua iniquidade?” (Jer 4.14).
“Ora, amados, pois que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus.” (II Cor 7.1).
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“E qualquer que nele tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também ele é puro.” (I Jo 3.3).
“Com que purificará o jovem o seu caminho? Observando-o conforme a tua palavra.” (Sl 119.9).
“De sorte que, se alguém se purificar destas coisas, será vaso para honra, santificado e idôneo para uso do Senhor, e preparado para toda a boa obra.” (II Tim 2.21).
A sujeira do pecado não tem sido devidamente considerada por muitos crentes, e mesmo por muitos líderes na igreja de Cristo, porque o pecado e a impureza que dele decorre se tornaram tão habituais em todo os segmentos da sociedade (escolas, trabalho, lares, artes, imprensa, entretenimentos etc) que se tem a falsa concepção de que nada é pecaminoso em si mesmo.
Então torna-se imperioso ensinar ao povo de Deus o que é realmente o pecado e as suas terríveis consequências, de modo a não se brincar ou mesmo transigir com tão perigoso inimigo que é descrito nas Escrituras como se fosse uma criatura viva cheia de enganos e artimanhas cruéis que tem por finalidade nos conduzir traiçoeiramente à morte.
E é deste princípio ativo que opera na nossa natureza terrena ou velho homem que devemos mortificar, numa matança operada pela
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lavagem da água e do fogo espirituais do Espírito Santo, da Palavra de Deus, do sangue de Jesus.
A Palavra nos purifica principalmente dos nossos pensamentos vãos e impuros, e conceitos falsos e malignos, substituindo-os pelos padrões santos e verdadeiros que procedem do próprio Deus.
O sangue de Jesus é a base por meio da qual pode ser realizada toda a purificação de pecados.
O lavar do Espírito Santo consiste tanto na criação de uma nova disposição direcionada para aquilo que é limpo e aprovado por Deus, como na criação de uma renovada forma de pensar, sentir e agir, purificadas de toda má consciência e contaminações pecaminosas, quer da carne, quer do espírito. É o que podemos chamar resumidamente por criação de um coração puro, que não é governado pelo mal, mas pela bondade, paz, amor, justiça, santidade, e todos os atributos de Deus.
A sujeira do pecado produz uma clara percepção de afronta à santidade de Deus, e de uma incapacidade de se ter comunhão com Ele. E não é incomum que isto seja acompanhado por um sentimento de desaprovação e desejo de manter-se afastado da Sua presença. Esta característica comum do sintoma do pecado manifestou-se claramente no primeiro casal no Éden, que depois da queda, foram se esconder de Deus por detrás das árvores do jardim, por estarem envergonhados e com medo de estarem diante dEle e por se sentirem incapacitados de poderem se apresentar a Ele com uma boa consciência, sem qualquer culpa.
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Então o trabalho da purificação na santificação tem em vista nos reabilitar diante de Deus, removendo a nossa culpa e tornando boas as nossas consciências perante Ele.
E é esta purificação que nos dá coragem para nos aproximarmos de Deus (Hb 10.19-22).
Como sacrifício e sumo sacerdote, Cristo fez a purificação dos nossos pecados em Si mesmo e no Seu ofício sacerdotal, sendo tanto o sacrifício como o sumo sacerdote que apresentou a si mesmo e o Seu sangue como oferta para satisfazer a justiça e a santidade de Deus em relação à cobertura dos nossos pecados. E é pela fé neste Seu sacrifício e ofício que somos limpos e aceitos por Deus, tanto no que se refere à expiação para a remoção da culpa dos nossos pecados em livramento da condenação eterna, quanto para a cobertura dos nossos pecados atuais, pela cobertura do Seu sangue e do ofício de sumo sacerdote que ele continua realizando em nosso favor à direita do Pai, sempre intercedendo por nós, para que sejamos limpos, purificados, aceitos, em nossa aproximação de Deus, confiando que é por Sua morte que somos assim reconciliados com Deus e admitidos na comunhão com Ele. Mas a eficácia deste ofício de Cristo em purificação das nossas iniquidades demanda arrependimento, fé, confissão. Onde faltar isto, faltará também a eficácia da purificação que necessitamos. A graça que é concedida por Deus para esta purificação exige que reconheçamos o que necessita ser limpo, que busquemos ser limpos, e que demos o devido valor à graça e a misericórdia de Deus
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que está manifestada em nosso favor em Cristo Jesus.
Onde há endurecimento em relação ao pecado, justificativa do pecado, e falta de aceitação do convencimento do Espírito quanto ao que é verdadeiramente justo e reto, segundo a vontade e a Palavra de Deus, não poderá haver nenhuma purificação sendo efetuada.
Exige-se uma sincera e séria consideração relativamente ao pecado para a purificação, porque como temos afirmado anteriormente, o pecado não é uma coisa de somenos aos olhos de Deus, e exigiu o pagamento de um alto preço para ser purificado, a saber, a morte de Jesus.
“Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal, e a iniquidade não podes contemplar. Por que olhas para os que procedem aleivosamente, e te calas quando o ímpio devora aquele que é mais justo do que ele?” (Hc 1.13).
“4 Porque tu não és um Deus que tenha prazer na iniquidade, nem contigo habitará o mal.
5 Os loucos não pararão à tua vista; odeias a todos os que praticam a maldade.” (Sl 5.4,5).
A beleza espiritual da alma consiste em sua conformidade com Deus.
A santidade e conformidade com Deus são a honra de nossas almas.
Por isso tudo o que está na alma e que é contrário a Deus suja a alma e a torna desprovida desta beleza espiritual pela falta de conformidade com Deus.
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E como Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, não é de admirar o quanto Ele detesta o pecado, porque foi o pecado que desfigurou esta imagem e semelhança.
E o modo de agradarmos a Deus deve incluir portanto que também detestemos o pecado tanto quanto Ele o detesta.
E se por natureza nós estamos completamente sujos por causa do pecado, quem pode tirar uma coisa limpa do que está inteiramente sujo?
Não admira portanto que mesmo no caso de crentes, e no melhor deles, pode ser vista uma assumida carnalidade, pelo retorno ao domínio de uma mente carnal, caso este venha a negligenciar a necessidade da santificação diária, por um abandono dos hábitos que conduzem a esta santificação, como a oração, a meditação na Palavra, o autoexame com vistas à confissão de pecados e arrependimento, o louvor e a adoração, a comunhão dos santos, a vigilância, a diligência, a mortificação de pecados e todos os demais atos que descreveremos mais detalhadamente no capítulo relativo aos deveres de santidade. Isto decorre de termos uma inclinação natural à carnalidade em razão da natureza terrena, e esta sempre assumirá o comando caso não seja mortificada diariamente, pelo Espírito. Por isso é imposto aos crentes o dever de uma vigilância diária e de uma oração incessante, de modo que a carne possa ser vencida pela nova natureza que há neles.
Consequentemente é para todos os momentos da vida a advertência do apóstolo para que nos
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limpemos a nós mesmos de todas as poluições da carne e do espírito (2 Cor 7:1), porque há pecados que são internos e espirituais, como orgulho, amor-próprio, cobiça, incredulidade, e toda a poluição é resultante deles, e há também pecados carnais e sensuais, como gula, cobiça, impureza sexual etc.
Assim, tudo o que houver de bom em qualquer homem terá sido proveniente de Deus que é a fonte de todo o bem, porque no homem há uma fonte de tudo o que é mau, que é o seu próprio coração do qual procede toda a sorte de males.
“18 Mas, o que sai da boca, procede do coração, e isso contamina o homem.
19 Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias.” (Mt 15.18, 19).
Então, pela conversação de uma pessoa nós podemos avaliar o quanto ela tem estado com Deus ou não no trabalho de purificação do seu coração, porque a boca falará do que estiver cheio o coração.
Desta forma podemos estar plenamente convictos que onde não houve expiação do pecado permanece a impureza e não há nem pode haver qualquer verdadeira santidade. E temos visto que não há qualquer expiação à parte do sangue de Jesus.
E o modo de se beneficiar desta expiação é dirigir os passos na direção de caminhar na luz de Deus, porque assim fazendo o sangue de
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Jesus será a cobertura dos nossos pecados, para que possamos ser lavados deles (I João 1.7).
Esta expiação nos abriu a porta à salvação, mas é um ato contínuo, que sempre está presente em toda verdadeira santificação, porque como temos demonstrado, onde não há expiação do pecado não pode haver nenhuma santidade.
E esta verdade mostra o quão inútil é o pensamento de tentar se santificar ocupando-se somente em obter virtudes morais, negligenciando e desconhecendo a necessidade de expiação do pecado pelo sangue de Jesus. Quem prega virtude moral para santificação está enganando a própria alma e a de outros. As virtudes dos homens sem a expiação do sangue são como trapos de imundície diante de Deus, porque falam do seu orgulho, da sua atitude de independência dEle, e do desprezo ao sacrifício expiatório de Jesus.
De modo que tudo é puro para os que foram purificados dos seus pecados pelo sangue de Jesus, mas nada é puro para os contaminados e infiéis, que não foram lavados neste sangue, porque o entendimento e a consciência deles estão contaminados (Tito 1.5). Assim, até mesmo as virtudes dos ímpios são abominações para Deus, pela falta de expiação do pecado deles; e pela busca destas virtudes exteriores sem contarem com a graça do Senhor, numa afirmação do desejo deles de não serem trabalhados pelo Espírito em santificação.
A menos que nossa impureza do pecado seja expiada e lavada nós nunca poderemos agradar a Deus. Nada defeituoso poderá entrar na Nova
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Jerusalém (Apo 21.27). Isto demonstra a grande importância da santificação na vida de todos aqueles que desejam de fato agradarem a Deus.
Há muitos na igreja que tentam agradar ao Senhor como o fizera Caim no passado. Eles tentam estabelecer o modo de culto e a forma como deverão adorar e servir a Deus. Eles não se sujeitam ao que Deus tem determinado para que o pecador possa se aproximar dEle, e isto, basicamente, confiando no sacrifício que já foi dado (Cristo) e com um coração reverente, alegre e sincero.
E nós não somos capazes de nós mesmos, sem a ajuda especial e operação do Espírito de Deus, em qualquer medida ou grau, de nos livrarmos desta poluição do pecado.
Nos é ordenado que nos limpemos de nossas impurezas, que mortifiquemos o pecado, mas tudo o que podemos fazer é nos aproximarmos da fonte que nos limpará perfeitamente. É com fé e com um sincero desejo de sermos purificados que o sangue de Jesus se mostra eficaz para nós, e que o Espírito Santo executa o Seu trabalho santificando-nos, separando-nos de nossas impurezas, para que possamos servir ao Deus vivo.
É absolutamente procedente de Deus o que podemos chamar de estado de graça que indica a nossa santidade pela comunhão com Ele. Dele procede a atmosfera espiritual de santidade tanto em nosso interior quanto ao redor de nós. É o Espírito que inclina os nossos corações ao desejo de nos mantermos purificados e empenhados em agradar a Deus segundo o que
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temos aprendido acerca da Sua vontade na Sua Palavra.
Se houvesse em nossa própria natureza o poder de vencer o pecado não seria ordenado a nós que orássemos a Deus pedindo que nos livre de cair nas tentações, e que nos livre do mal, conforme o Senhor nos ensinou na oração dominical.
Toda purificação interior de pecados no trabalho real de santificação não poderia ser operada pelos sacrifícios de animais no Velho Testamento, que tipificavam o único sacrifício que pode expiar a culpa e o pecado – o de Cristo. Assim os que foram lavados de suas iniquidades no VT o foram pelo mesmo sacrifício de Cristo que se ofereceria também por eles na plenitude do tempo.
Por aqueles meios externos do cerimonialismo do Velho Testamento o pecado era apenas aquietado, mas não removido. Era domado, trazendo ao ofertante uma consciência de dever de reverência a Deus e do temor de pecar. Mas o pecado continuava vivo, caso não fosse purgado por uma verdadeira determinação de se aproximar de Deus, para que o trabalho de expiação pelo sangue de Cristo, e pelo poder do Espírito Santo pudesse ser realizado. De igual modo, há muitas religiões que aplicam jejuns, macerações, ascetismo em todas as suas formas, para deter a sensualidade, e ainda que esta seja contida no exterior, continua viva no interior, e não pode ser dali removida senão pelo sangue de Jesus e pelo Espírito Santo. Assim, não há nenhuma santificação verdadeira à parte da
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expiação do sangue de Jesus e do trabalho do Espírito Santo.
Antes de sermos lavados do pecado, necessitamos ser livrados dele, pela justificação, e pelo pagamento do preço da redenção efetuado por Cristo. Aquele que não teve a sua dívida de pecado quitada pelo sangue de Jesus não tem o direito de ser livrado do senhorio do pecado, e o pecado permanecerá como senhor absoluto de sua vida. Então este trabalho de purificação deve obrigatoriamente ser antecedido pela expiação e redenção que há em Cristo Jesus. Porque somente com a morte (o sangue) de alguém que fosse perfeito homem e também poderoso para ser o cabeça da raça humana que fosse redimida pelo seu sangue, poderia o pecado ser expiado. Ninguém poderia então fazer este trabalho senão o próprio Cristo, que se fez homem exatamente para poder realizar a nossa redenção da escravidão ao pecado.
Então na purificação de nossos pecados o Espírito Santo é o agente operante, e o sangue de Cristo a base meritória sobre a qual este trabalho do Espírito pode ser realizado.
E esta purificação tem um propósito muito mais profundo do que simplesmente dar paz à nossa consciência, pois o trabalho do Espírito Santo em purificação do pecado visa principalmente à restauração da nossa imagem e semelhança com Deus em santidade (Tito 3.5).
E sob este aspecto verdadeiro nós entendemos melhor a necessidade na obra de santificação de
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ser criado um hábito em nós de repugnância a toda forma de pecado que se ache em nós ou em outras pessoas, especialmente nos crentes, porque é o pecado quem faz com que não estejamos conformados à natureza de Deus.
Aqueles que aprenderem a caminhar diariamente com Deus conhecerão esta aversão pelo pecado, assim como ela se encontra na pessoa de Deus. Eles se entristecerão juntamente com o Espírito, pelo menor pecado que se manifeste neles ou em outros. Eles odiarão o pecado e conhecerão o quanto necessitam da misericórdia de Deus. O quanto são dependentes da Sua graça e longanimidade. E estarão dispostos a arrancar o próprio olho se este lhes escandalizar.
“28 Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela.
29 Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.
30 E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.” (Mt 5.28-30).
Estas palavras que podem soar exageradas a alguns, expressam o sentimento real que invade o coração daqueles que pela prática constante da santificação, passam a amar a
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santidade de Deus mais do que a segurança de suas próprias vidas. Eles estarão dispostos a sofrer dores e perdas equivalentes à perda de um membro de seus próprios corpos, do que voltarem à prática do pecado, deixando-se vencer pelas tentações.
E em todo aquele que houver esta repugnância pelo pecado, haverá um coração puro que é agradável a Deus, e também o cumprimento do propósito da Sua vontade em relação a nós, porque não criou o homem para o pecado, senão para a perfeita santidade. E a prova disto está na nova natureza celestial que recebemos do Espírito Santo na regeneração. Ela nos foi dada para nos revelar que não somos deste mundo, mas cidadãos do céu que estão peregrinando na terra como forasteiros, porque a nossa pátria eterna está no céu. E esta regeneração foi o primeiro grande passo que foi dado no Senhor para a restauração da imagem de Deus nas nossas almas. E quanto mais nos purificarmos das poluições do pecado, no processo da santificação contínua e diária, mais e mais há de ser restaurada em nós tal imagem e semelhança com Deus.
Quando colocamos este supremo propósito de Deus em relação a todos os crentes, ao lado do que as igrejas andam oferecendo aos filhos de Deus como o alimento ou o objetivo que eles devem alcançar, como sendo mera prosperidade material, financeira, sentimental e física, nós podemos contemplar o quão longe estão caminhando da verdade revelada quanto ao supremo propósito que Deus espera que seja
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buscado incansavelmente por todos os seus filhos. É importante pois não se permitir ser enganado pelos homens, para não se achar frustrado no final, porque nenhuma destas coisas poderão nos recomendar um só milímetro ao agrado do nosso Pai celeste, e ao nosso próprio agrado, pois como dissemos, isto conduzirá a uma grande frustração no final, quando percebermos que coisas materiais não podem, em sua própria natureza, satisfazer realidades espirituais, e Deus é espírito, assim como os crentes são espírito, e o alimento que satisfaz verdadeiramente às suas almas deve ser espiritual, porque o que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do espírito é espírito.
Quando se busca prosperidade material como o alvo da vida cristã por conta de uma negligência da necessidade de santificação, o princípio da velha natureza corrompida, que é sujo e que continua sujando de modo vergonhoso e repugnante continuará no comando e operando, e o princípio da graça implantado na alma pelo Espírito Santo, estará apagado por esta atitude carnal, porque este princípio é puro e purificador, limpo e santo.
O Espírito Santo nos purifica e limpa fortalecendo as nossas almas pela Sua graça, para não somente nos limpar dos nossos pecados atuais, como também para nos capacitar e inspirar à execução dos nossos hábitos de santidade.
E devemos sempre lembrar que é pelos pecados atuais (transgressões diárias) que a nossa poluição natural se torna habitual e aumentada.
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E será sempre pelo sangue de Cristo que esta poluição do pecado poderá ser destruída, pelo trabalho de purificação efetuado pelo Espírito Santo. Não é propriamente o sangue de Cristo que o Espírito Santo aplica, mas ele opera em nós e somente pode operar em nós nos purificando, porque este sangue foi derramado em nosso favor, pois caso contrário, em vez de um trabalho de purificação a única coisa que poderíamos esperar seria a nossa condenação eterna no inferno. É o sangue que faz expiação em virtude da vida (Levítico 17.11) e sem derramamento de sangue não há remissão de pecados (Hebreus 9.22) – estes textos se referem ao sangue de Jesus – o primeiro de Levítico refere-se profeticamente ao sangue que seria derramado e que faria expiação, e o segundo é a afirmação da obra já realizada por Jesus na cruz. Não se pode então fazer um estudo ou pregação sobre santificação que não leve esta obra expiatória do sangue de Cristo em consideração, pelo convencimento e gratidão do trabalho meritório que ele realizou por nós e sem o qual não poderíamos ser restaurados à imagem e semelhança com Deus de modo algum.
E é o Espírito Santo de Deus que conduz os crentes em toda a verdade, e lhes capacita a orar de acordo com a mente e a vontade de Deus, e que os guia na experiência da fé, orando por aquelas coisas profundas e mistérios que eles não podem compreender. Quantos e quantos corações são purificados continuamente de impurezas, amarguras, de toda a sorte de pecados, quando a alma se humilha diante de
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Deus e ora no Espírito? E aqueles que foram beneficiados e purificados passam a sentir uma nova realidade espiritual celestial em seus corações, ela é real, verdadeira, transformadora, mas ninguém poderá explicar qual foi o modo pelo qual o Espírito Santo operou todo aquele lavar renovador, revelando a nós o quão somos dependentes dEle e do Seu poder.
“26 E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis.
27 E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos.” (Rom 8.26,27.
Somente Ele pode fazer este trabalho porque somente Ele conhece a condição real do coração, e que não raro é desconhecida ao próprio crente. Mas Aquele que examina o coração e tudo conhece pode executar, pelo Seu poder, perfeitamente, o trabalho da nossa purificação.
E como o coração é enganoso, é aqui que os conselheiros costumam se equivocar e serem também enganados, porque não conseguem enxergar que a real necessidade do crente é esta paz que decorre da purificação de suas mentes e corações por Deus, e não propriamente da resolução dos seus problemas e queixas, que não raro podem estar sendo produzidos pela
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rebeldia deles contra o trabalho da santificação. Todo conselheiro deve antes de tudo observar a condição da alma do aconselhando em relação à santificação. Crentes carnais não podem esperar ser consolados pelo Espírito, pois como vimos antes, primeiro o Espírito santifica, e depois consola. Eles devem ser encorajados então a confessarem seus pecados, a se humilharem diante do Senhor, a se submeterem ao que é ordenado na Palavra de Deus, a restaurar a comunhão com Ele, e aí então poderão contar com a Sua bênção pelo trabalho renovador do Espírito em seus corações.
Por exemplo, quando crentes estão magoados e irados contra alguém, eles não devem jamais serem justificados quanto às suas queixas, senão incentivados a dilatarem seus corações, para serem livrados de toda ira e mágoa, de modo que possam perdoar e amar seus ofensores, para que possam ser também perdoados e abençoados por Deus. A Bíblia é muito clara quanto a este dever, e por mais que eles possam ficar contrariados, é este dever que deve ser apontado a eles com mansidão, e Deus fará o resto honrando a Sua Palavra.
Concordar com as queixas deles seria exaltar o pecado e o pecador, quando a Palavra rebaixa tanto um quanto outro. O pecado deve ser desmascarado e trazido à tona para que possa ser destruído pelo trabalho do Espírito. E se havia grilhões demoníacos aprisionando a alma em cadeias, pela determinação do próprio Deus para a correção do contradizente, estes serão
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também quebrados e a alma será colocada em liberdade e será conduzida do vale profundo da tristeza e depressão ao monte da paz e da alegria. Mas isto não será feito de modo nenhum se a alma não permitir ser antes santificada pela submissão à Palavra de Deus.
Não é portanto de se admirar que a Bíblia ordene frequentemente que nos sujeitemos à prática da Palavra e à vontade de Deus, mesmo quando a Sua potente mão estiver nos corrigindo. Não há outro caminho para a cura da alma. E aquele que se justificar no seu endurecimento permanecerá mais endurecido. Aquele que se justificar estando sujo pelo pecado ficará ainda mais sujo.
Se a cura do pecado não exigisse de nós a necessidade de nos humilharmos diante de Deus, e a sentirmos dor, tristeza e repugnância por estarmos sendo vencidos por pecados, que são uma transgressão e traição à vontade do nosso Deus, não seria necessário que Cristo morresse no nosso lugar na cruz. O Seu sacrifício teria sido em vão, porque o pecado poderia ser tratado por um meio menos doloroso. Mas a morte dEle nos lembra quantas dores o pecado produz no coração de Deus, e também nos nossos próprios corações se estivermos sendo santificados diariamente, como é o nosso dever.
Há no capítulo 19 do livro de Números, uma bela e significativa ilustração da necessidade que temos da aspersão do sangue de Jesus para a purificação dos nossos pecados, de modo que possamos ser beneficiados pela Sua morte.
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Este capítulo de Números descreve particularmente a forma de preparação das cinzas de uma novilha vermelha que seria queimada, para que com estas cinzas fosse preparada a chamada água da purificação.
No final do capítulo 17, os israelitas haviam reclamado do rigor da lei que proibia a aproximação deles do tabernáculo, e assim, também em resposta àquela reclamação o Senhor os dirigiu à purificação que seria feita com esta água especialmente preparada para que eles pudessem vencer seus temores.
Esta purificação com a água com as cinzas de uma novilha vermelha é citada em Hb 9.13,14 como sendo uma purificação cerimonial, figura da limpeza das consciências dos crentes das poluições do pecado, que é efetuada pelo sangue de Cristo: “Porque, se a aspersão do sangue de bodes e de touros, e das cinzas duma novilha santifica os contaminados, quanto à purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará das obras mortas a vossa consciência, para servirdes ao Deus vivo?” (Hb 9.13,14).
É a firme convicção e fé de que fomos lavados de fato pelo sangue de Jesus de todos os nossos pecados, o único fator que pode nos dar uma consciência boa, limpa, sem culpa, por sabermos que estamos justificados diante de Deus, e que o sangue de Jesus não somente apagou os nossos pecados, como também apagou a nossa culpa em relação a eles. Assim, importa pela fé, que eduquemos
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adequadamente a nossa consciência, de modo que se torne numa boa consciência, como é do desejo de Deus, que não nos acuse mais, porque fomos efetivamente perdoados. E agrada ao Senhor que tenhamos esta firme posição de fé na obra que Ele efetuou em nosso favor. Temos aqui nos referido àquela mesma confiança de fé à qual se refere o autor de Hebreus quando diz o seguinte: “De modo que com plena confiança digamos: O Senhor é quem me ajuda, não temerei; que me fará o homem?” (Hb 13.6). Se nos deixamos acusar facilmente em razão dos nossos pecados e ficamos enfermos por causa da nossa consciência, já tendo sido lavados pelo sangue de Cristo, então temos uma má consciência que age contra nós e que não foi devidamente educada pela fé, de modo a se firmar não na nossa própria justiça, mas na de Jesus que nos foi imputada, quando nEle cremos.
Por isso quando o crente peca ele não é convidado pela Palavra a ficar se acusando e gemendo num canto, senão a confessar o seu pecado e a confiar inteiramente no Advogado que intercede por Ele junto do Pai. Ele deve honrar o sacrifício e o sumo sacerdócio de Jesus crendo que o Seu sangue e intercessão são os únicos fatores que nos permitem nos aproximarmos de Deus. É esta confiança que nos faz ficar de pé sabendo que somos lavados pelo sangue que agrada a Deus, e não ficarmos nos acusando e culpando sem aceitar que possamos de fato ser perdoados, porque esta última atitude não honra a Deus e não o faz
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verdadeiro quando diz que é unicamente pelo sangue de Seu filho que os nossos pecados são perdoados. Evidentemente, quando assim falamos, não excluímos a tristeza pelos pecados que cometemos, mas nos referimos a não nos permitirmos ser acusados pela consciência e pelo Inimigo de nossas almas ao ponto de não crermos que é a fé no sangue de Jesus que agrada a Deus e que realmente nos purifica de nossos pecados, e não deveríamos por isso, recusarmos esta oferta graciosa e tão preciosa que Deus preparou para lavar os pecadores de suas imundícies. Sejamos sinceros e gratos ao Senhor por isto.
Se o pecador que fosse purificado pela aspersão da água que continha as cinzas da novilha vermelha, que havia sido sacrificada e queimada para que ele pudesse ser purificado pelas suas cinzas, podia se aproximar do tabernáculo sem o temor de ser morto, quanto mais a aspersão do sangue de Cristo que purificou de seus pecados aqueles que foram justificados de seus pecados pela fé nele, podem e devem ter uma consciência purificada de todo o pecado e que descanse e se regozije na comunhão com Deus, baseando-se não na própria justiça, mas na de Jesus. É importante que nossas consciências sejam purificadas nesta fé porque é somente por meio disto que podemos experimentar paz com Deus e em nós mesmos. E a novilha vermelha deveria ser imolada e queimada por Eleazar, fora do arraial, e assim era um tipo perfeito de Cristo que também foi crucificado fora das portas de Jerusalém para nos purificar de nossos
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pecados. “Por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta.” (Hb 13.12).
A água da purificação deveria ser aspergida especialmente naqueles que estivessem separados ou afastados do santuário (tabernáculo), em razão da impureza deles por terem tocado em qualquer coisa imunda, conforme definida na lei, especialmente o contato com mortos. Tinha portanto o propósito de gerar confiança de que poderiam se aproximar do tabernáculo, sem serem mortos, por terem sido purificados por aquela água especialmente preparada para tal finalidade. Está portanto bastante claro por esta figura da lei que ninguém poderá entrar no santuário celestial se não tiver sido purificado pelo sangue de Jesus.
“Tendo pois, irmãos, ousadia para entrarmos no santíssimo lugar, pelo sangue de Jesus, pelo caminho que ele nos inaugurou, caminho novo e vivo, através do véu, isto é, da sua carne, e tendo um grande sacerdote sobre a casa de Deus, cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé; tendo o coração purificado da má consciência, e o corpo lavado com água limpa, retenhamos inabalável a confissão da nossa esperança, porque fiel é aquele que fez a promessa;” (Hb 10.19-23).
“16 Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal.
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17 Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas.
18 Vinde então, e argui-me, diz o SENHOR: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a branca lã.” (Is 1.16-18).
Se Deus é tão enfático contra os nossos pecados, nós deveríamos então nos envergonharmos deles. Nós deveríamos imitar o publicano da parábola toda vez que nos aproximássemos do Senhor e contemplássemos algum caminho mau no nosso coração. Nós deveríamos nos envergonhar de sequer tentar contemplar os céus, quanto mais contemplarmos a face santíssima do Senhor. E é exatamente esta tristeza pelo pecado que nos trará a bênção da purificação do Espírito Santo. Nós seremos purificados de toda injustiça e seremos justificados por Deus, porque Ele continuará nos imputando a justiça do próprio Cristo, e infundirá em nós um senso e capacitação à prática da justiça, pelo poder operante do Espírito Santo.
Nós deveríamos fazer este autoexame, e fazer disto um hábito toda vez que nos aproximarmos de Deus, quer na oração em nossos lares, quer nos cultos de adoração ou oração públicos. Nisto consistiria a preparação para que pudéssemos nos achegar ao Santo dos Santos, assim como os sacerdotes tinham que se preparar antes no tabernáculo, lavando-se e evitando tudo aquilo
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que poderia contaminá-los cerimonial ou moralmente, segundo era exigido pela Lei. Não estamos mais debaixo da lei cerimonial do Velho Testamento, mas continuamos debaixo do mesmo princípio da preparação pela purificação da consciência e do coração antes de nos achegarmos à presença de Deus.
Embora a única fonte para limpar o pecado esteja perto de nós, contudo nós não podemos ver isto se o Espírito Santo não abrir o nossos olhos, como ele fez com os olhos de Hagar; é Ele quem mostra a fonte a nós e nos conduz até ela para sermos purificados. Esta é uma parte eminente do ofício dEle e obra.
O fim principal do envio do Espírito por Jesus a nós, e por conseguinte da Sua obra inteira, é o de glorificar o Filho; como o fim e trabalho do Filho é o de glorificar o Pai. E o grande modo por meio do qual o Espírito glorifica a Cristo é revelando esta preciosa expiação que há no Seu sangue a nós.
Sem a revelação do Espírito Santo nós não podemos descobrir nenhuma das coisas que há em Cristo, e Ele teria sido enviado em vão se nós pudéssemos descobrir estas coisas por nós mesmos. Assim o Espírito é o grande Mestre da igreja que nos ensina tudo que nos convém conhecer de Cristo, de modo que Ele seja glorificado.
E é o Espírito então quem nos ensina a ter um verdadeiro senso espiritual da corrupção do pecado, e uma visão correta e piedosa da virtude da limpeza do sangue de Cristo.
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Deve estar bem claro diante de nós que a impotência da lei de Moisés para poder purificar verdadeiramente os pecados com todo o seu aparato sacrificial não significa de modo algum a inutilidade total da lei, senão que aqueles sacrifícios apenas eram uma figura do único sacrifício pelo qual o pecado é expiado, a saber, o de Cristo. Assim o que se quer dizer é que não eram propriamente os sacrifícios prescritos na Lei de Moisés que purificavam do pecado, mas o sangue dAquele para o qual eles apontavam. O ponto em vista é portanto o de afirmação desta verdade teológica, e não de qualquer desprezo pela lei que é santa, boa e perfeita, e cujo mandamento é também santo justo e bom. É preciso ter portanto muito cuidado ao se fazer abordagens relativas à lei, para não se incorrer nos erros extremos do antinomismo e do legalismo.
“23 Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus;
24 Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus.
25 Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus;
26 Para demonstração da sua justiça neste tempo presente, para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.” (Rom 3.23-26).
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É pela simples fé no Senhor e no Seu sangue derramado na cruz que somos redimidos do pecado, e é por meio desta mesma fé que somos purificados de nossos pecados atuais.
E esta fé é apresentada como o simples ato de olhar para Cristo, assim como o povo olhou para a serpente de bronze no deserto, nos dias de Moisés.
Este olhar significa voltar toda a nossa atenção e aspiração e confiança para o Senhor e esperar a resposta que virá dEle em forma de poder operante na transformação e purificação de nossas vidas.
A fé é a causa instrumental da nossa purificação:
“E não fez diferença alguma entre eles e nós, purificando os seus corações pela fé.” (At 15.9).
A fé é a graça principal por meio da qual a nossa natureza é restaurada à imagem de Deus, e pela qual somos livrados de nossa corrupção original.
A fé é a graça por meio da qual nós constantemente nos ligamos a Cristo. E se a mulher que tocou nas vestes dEle obteve virtude para curar a sua hemorragia, muito mais podem contar como certa a purificação de suas almas, todos aqueles que permanecem unidos a Ele pela fé.
É a fé que nos mantém firmes na batalha cruenta entre o Espírito e a carne, para a subjugação desta última.
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E para o mesmo propósito da purificação de nossos pecados Deus usará as tribulações, porque elas são o forno por meio do qual ele separa a escória do pecado do ouro que é assim refinado pelo fogo.
“Eis que já te purifiquei, mas não como a prata; escolhi-te na fornalha da aflição.” (Is 48.10).
“12 E, se alguém sobre este fundamento formar um edifício de ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno, palha,
13 A obra de cada um se manifestará; na verdade o dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja a obra de cada um.” (I Cor 3.12,13).
Todas as aflições purificadoras do povo de Cristo são também suas aflições porque é por meio delas que Ele está purgando todo o pecado de suas vidas para que possa ser desposado por Ele como uma noiva imaculada.
“Em toda a angústia deles ele foi angustiado, e o anjo da sua presença os salvou; pelo seu amor, e pela sua compaixão ele os remiu; e os tomou, e os conduziu todos os dias da antiguidade.” (Is 63.9).
E estas aflições do corpo de Cristo são experimentadas especialmente pelos ministros deste corpo que têm esta missão de aperfeiçoar os crentes em santificação para que sejam
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desposados pelo Noivo em total santidade de vida.
“Regozijo-me agora no que padeço por vós, e na minha carne cumpro o resto das aflições de Cristo, pelo seu corpo, que é a igreja;” (Col 1.24).
E muito deste sofrimento é sofrimento por causa do pecado. Por causa da constatação do quanto o pecado ofende a santidade de Deus. E isto formará zelos e empenhos no sentido de se buscar a cura deste mal no sangue que Jesus derramou para a nossa purificação.
E na cura deste sangue acharemos descanso, alívio e paz para as nossas almas.
Mas onde os homens odeiam a prática da santidade, é em vão lhes ensinar acerca da natureza dela. O grande desafio que John Owen tinha diante de si nos seus dias era o frio moralismo do catolicismo e do anglicanismo, mas em nossos dias o problema é de outra grandeza e ordem, porque estamos vivendo os dias em que a iniquidade tem se multiplicado. Não é a substituição do evangelho e do conceito de santidade, por virtude e moralismo, o nosso maior inimigo, senão a luxúria desenfreada que há no mundo e que tem até mesmo se infiltrado na igreja. Como dissemos antes, o nosso grande problema é a banalização do pecado. E é aqui que devemos concentrar os nossos ataques. Dantes, Satanás tentava impedir a obra de santificação do Espírito Santo com um apelo substitutivo para o cultivo de meras virtudes morais. Hoje, como dissemos, ele tem feito um ataque frontal
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conquistando o coração de não crentes e de crentes, para a prática aberta da imoralidade e de uma vida irresponsável e dissoluta, e também por um apelo aberto aos corações dos homens para se libertarem de todo tipo de jugo, inclusive o de Jesus pela Palavra, e na outra extremidade ele acena com oferecimentos carnais de felicidade plena nos negócios, na prosperidade material, no culto do corpo, no acúmulo de riquezas, na busca de fama e de notoriedade e de tudo aquilo que se relacione à cobiça e ao egoísmo humano, dissimulando estes pecados sob a capa de uma pretensa vitória da cruz, e de uma fé bem sucedida. É aqui que jaz a quase totalidade dos problemas da igreja de nossos dias. E não é de se estranhar que numa atmosfera de carnalidade e falta de santificação como esta, não se veja uma grande concorrência às reuniões de oração e de consagração das igrejas, como se via nos períodos de avivamento da sua história, quer na igreja primitiva, quer na reformada, onde Deus era o centro de tudo, e onde a santificação era devidamente considerada e valorizada. É portanto abrindo os olhos das pessoas para a enormidade da sujeira do pecado, inclusive daquilo que muitos já nem consideram pecado, por causa do mundo tecnológico em que vivem, que as tem fascinado com realizações humanas que chegam até mesmo a fazê-las pensar que não dependem mais de um Criador e Salvador, pois muito do que recebem via televisão, Internet etc, é bem recebido por todos sem que façam uma análise crítica do que assistem à luz
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da Palavra de Deus e da instrução direta do Espírito Santo em suas vidas. Mas vale lembrar, que para fazerem isto, teriam que estar na luz do Senhor porque é na Sua luz que vemos a luz, e não se pode ter isto, de modo algum, quando estamos debaixo do pecado, seja ele dito tecnológico ou não, e a bem da verdade nem cabem tais classificações porque pecado é pecado, seja qual for a sua fonte inspiradora, porque sempre é um estado ruim da alma que se rebela contra a vontade de Deus.
Mas nós não podemos ignorar estas coisas sem algumas reflexões sobre nós mesmos, e um pouco de consideração de nossa própria participação nelas. Se aos próprios apóstolos foi ordenado pelo Senhor vigiarem quanto a estado da condição de suas almas, e que se guardassem da hipocrisia dos escribas e fariseus, quanto mais nós não deveríamos então vigiar e refletir em todo o tempo sobre estas coisas.
Em primeiro lugar deveríamos passar em revista o nosso próprio estado, em razão da nossa natureza terrena. Não devemos esquecer que há uma trave nos nossos olhos que deve sempre ser retirada primeiro para que possamos remover o argueiro (cisco) do olho dos nossos irmãos, que necessitam ser admoestados tal como nós, à santificação. Esta sincera e honesta reflexão sempre será muito útil para os que almejam se santificarem porque é necessário estarmos familiarizados com a nossa própria condição espiritual. E sabermos que por natureza sempre estamos sujos, completamente poluídos pelo pecado. E que isto
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é como uma lepra espiritual que está apegada à nossa natureza terrena, e que nos torna repugnantes à vista de Deus, e nos coloca num estado de separação dEle.
E enquanto estamos neste mundo não há uma cura definitiva desta lepra chamada pecado. Ela será uma doença controlada e será curada à medida que nos santifiquemos verdadeiramente. E a parte do corpo que melhor evidenciará se estamos em condição de cura ou sob esta enfermidade é a nossa língua, porque por ela se verá o quanto estamos debaixo do pecado ou não, porque uma língua santificada não estará murmurando, maldizendo, despejando amargura e acusações para todos os lados. Ao contrário, silenciará e pedirá misericórdia a Deus para os piores inimigos, e com o mesmo silêncio aguardará pelo Seu livramento e bênção.
É por isso que havia tão extensas e pesadas leis para tratar com o leproso e para poder declará-lo limpo e curado, no Antigo Testamento, para servir de ilustração do pecado que está apegado à natureza terrena. Nisto se vê o quanto o pecado é trabalhoso para ser tratado. E sendo extremamente contagioso não é facilmente que se fica curado definitivamente dele. Por isso o autor de Hebreus fala de uma luta contra o pecado até ao sangue.
“Ainda não resististes até ao sangue, combatendo contra o pecado.” (Hb 12.4).
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E o apóstolo Judas fala de se detestar até a roupa contaminada pelo pecado:
“E salvai alguns com temor, arrebatando-os do fogo, odiando até a túnica manchada da carne.” (Jd 23).
Não é com folhas de figueira que se cobre a nudez do pecado, como tinha tentado Adão, mas com o sangue e com as vestes brancas da justiça do próprio Jesus.
Que ninguém se engane então pensando que poderá cobrir o seu pecado com boas obras. Ou tendo pensamentos pequenos quanto à realidade do pecado, dizendo que é uma pequena coisa. Ou mesmo chegando a esquecer que é um pecador. E não é incomum de se ver isto na igreja em nossos dias, quando tantos arrogantes se aproximam de Deus protestando o direito de serem abençoados pela sua própria justiça, esquecidos que se não fosse o sangue de Jesus a única recompensa que poderiam receber de Deus seria queimarem eternamente no fogo do inferno por causa dos seus pecados, dos quais eles se esqueceram de humildemente confessar e abandonar.
Que ninguém seja enganado pois com palavras vãs. Palavras que façam cócegas no ego, e que sirvam para abrandar o comichão dos ouvidos. Que todo crente sensato se mantenha bem longe do espírito de auto glorificação, porque isto é uma coisa horrenda para Deus, que teve que pagar um alto preço para que pudéssemos
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ser lavados de nossas iniquidades no sangue do Seu Filho.
Que ninguém desconsidere a enormidade de danos que serão trazidos pelo pecado a todos aqueles que não foram justificados e santificados:
“9 Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas,
10 nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.
11 E é o que alguns têm sido; mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito do nosso Deus.” (I Cor 6.9-11).
Se alguém ama suas corrupções, seus pecados, e está orgulhoso de suas impurezas, se fica satisfeito com seus ornamentos externos, sejam de moral, de dons, deveres, profissão, corpo, vestuário, riquezas etc, não há remédio para esta pessoa enquanto permanecer debaixo desta inclinação perversa.
Mas há grande esperança para aqueles que têm um santo temor de Deus e dos Seus juízos contra o pecado, porque com isto eles buscaram ser lavados de suas iniquidades para não despertarem a ira de Deus contra eles, por um andar contrário à Sua vontade revelada nos Seus mandamentos. E este temor é essencial a uma
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verdadeira santificação. Na verdade, este senso é produzido também pelo Espírito Santo, que nos convence não somente do pecado, como também da justiça e do juízo de Deus em relação ao pecado.
Contudo nenhum membro do corpo de Cristo é profano, ou pode ser considerado um ramo podre na videira, porque se a raiz é santa, os ramos são santos. E a cabeça santa deste corpo não toleraria que houvesse nele um ramo podre. Assim, cada membro deste corpo possui o seu grau de santidade, ainda que não esteja se santificando, porque obteve esta santidade na regeneração, quando foi implantada nele a semente divina da vida eterna, tendo o regenerado começado a ser coparticipante da natureza de Deus.
“Pelas quais ele nos tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.” (II Pe 1.4).
De modo que se um crente vem a ser desligado da comunhão da igreja visível por motivo de disciplina, com vistas à manifestação de um arrependimento futuro, no entanto ele permanece ligado a Cristo e ao seu corpo místico, porque na condição de justificado e regenerado já não pode mais ser desligado dali.
E ainda que este eleito regenerado não venha a se arrepender, e mesmo que seja submetido a um juízo de morte física da parte do próprio
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Deus para efeito de disciplina, ele será aperfeiçoado totalmente no céu, e continuará ligado à cabeça da igreja, que é Cristo, porque nada mais pode separar o crente do amor de Deus que está em Cristo Jesus. Ele não pode ser mais condenado, conforme a promessa que Jesus tem feito a todo o que nEle crer e for salvo.
Pela justificação o crente alcançou a maior bem-aventurança que foi prometida por Deus aos que são justificados pela fé:
“5 Mas, àquele que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça.
6 Assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras, dizendo:
7 Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas, E cujos pecados são cobertos.
8 Bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado.” (Rom 4.5-8).
Deus fez a promessa de perdoar as nossas iniquidades e de jamais nos imputar o pecado para condenação, cobrindo com o sangue e a justiça de Jesus todos os nossos pecados, porque Ele bem conhece o coração humano em seu estado de miséria debaixo do pecado original, e que continuamente se inclina para o pecado, ainda que a nossa vontade não o deseje. Ele revelou isto depois do dilúvio quando declarou que pelo motivo do homem ser carnal e continuamente mau o desígnio do seu coração, e quando decidiu usar de longanimidade por
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este motivo, para com toda a humanidade, na expectativa de que pela Sua graça, muitos chegassem ao arrependimento, e cressem na esperança da sua salvação de serem um dia perfeitos assim como Ele é perfeito. Então não poderia haver outro modo de salvar pecadores que estão desta forma sujeitos ao pecado por conta da natureza terrena deles, e em razão do poder do pecado ser maior do que a própria vontade deles. Como vemos nas palavras do apóstolo Paulo em Romanos 7. Assim, a justificação seria pela graça, mediante a fé, e conforme a promessa de Deus de salvar aqueles que se arrependessem dentre os pecadores. Eles não serão salvos pelo seu presente estado de perfeição em santidade, mas pela sinceridade de serem santos, o que eles comprovarão em sua perseverança e diligência em buscarem ser fiéis a Deus em tudo o que lhes tem ordenado.
Mas se falharem nesta completa fidelidade, o pacto que Deus fez com eles está planejado e ordenado de tal forma que transgressões da aliança não colocarão o aliançado para fora dela, e Ele poderá continuar contando com o trabalho da graça em sua vida, para o seu aperfeiçoamento espiritual.
E como temos afirmado, isto se dá por conta da natureza do pecado que assediará o crente até o dia da sua morte, e deste modo não poderia haver um plano de salvação que exigisse perfeição total em santidade neste mundo, sem que se praticasse mais o mínimo pecado. E assim fica comprovada quão grande foi a misericórdia de Deus para conosco em Cristo
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Jesus, porque está salvando não pessoas perfeitas, mas pecadores, e temos falado quanto Ele detesta o pecado, e como isto permanece verdadeiro, comprova-se então que o amor cobre multidão de pecados, e podemos entender quão grande é o amor de Deus pelos Seus filhos, porque os ama, apesar de terem essa nódoa terrível na constituição pessoal deles, que é o pecado.
Em resumo, o Senhor nos une a Ele não porque estamos perfeitos, mas porque no próprio modo dele e a seu tempo Ele pode nos fazer assim; e não porque nós estamos completamente limpos, pois necessitamos sempre lavar os pés, mas porque ele pode nos limpar com o Seu sangue.
Então o que Ele contemplará não será o nível da nossa santificação para que possamos nos aproximar dEle, mas a sinceridade do nosso coração em permitir o Seu trabalho de purificação e por almejarmos ser assim purificados.
A esta altura nós estamos alcançando uma melhor compreensão da grande diferença que há entre uma santidade evangélica, e uma vida de virtude moral produzida pelo próprio esforço humano.
“1 Portanto nós também, pois que estamos rodeados de uma tão grande nuvem de testemunhas, deixemos todo o embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com paciência a carreira que nos está proposta,
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2 Olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o qual, pelo gozo que lhe estava proposto, suportou a cruz, desprezando a afronta, e assentou-se à destra do trono de Deus.
3 Considerai, pois, aquele que suportou tais contradições dos pecadores contra si mesmo, para que não enfraqueçais, desfalecendo em vossos ânimos.” (Hb 12.1-3).
CAPÍTULO 5
A OBRA POSITIVA DO ESPÍRITO NA SANTIFICAÇÃO DE CRENTES
Nós veremos agora aquela parte da obra do Espírito Santo por meio da qual Ele comunica o grande, permanente, positivo efeito de santidade às almas dos crentes, e por meio da qual Ele os guia e ajuda em todos os atos, obras, e deveres de santidade.
Na santificação dos crentes, o Espírito Santo trabalha neles, em suas almas, mentes, vontade, e afetos, e cria um hábito piedoso, sobrenatural, e uma disposição de viver para Deus, que é a substância ou essência daquilo que a santidade consiste. Este é aquele espírito que nasce do Espírito Santo, a nova criatura ou nova natureza divina que é forjada nos crentes. É nisto que consiste a restauração da imagem de Deus nos crentes pela graça de Jesus Cristo, por meio da qual eles são conformados a Deus.
Então é reconhecido que a primeira infusão sobrenatural ou comunicação deste princípio
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de luz espiritual e vida, preparando, ajustando e habilitando todas as faculdades de nossas almas para a execução dos deveres de santidade, em conformidade com a mente de Deus, pertencem à obra da nossa conversão inicial na regeneração. Mas a preservação, apreciação e aumento disto pertence à nossa santificação, e esta infusão e preservação são requeridas necessariamente pela santidade.
É por este meio que a árvore é feita boa, e o seu fruto consequentemente será bom.
Hábitos adquiridos por uma multidão de atos, seja em coisas morais ou artificiais, não configuram uma nova natureza, nem pode ser chamado assim. Mas a nova natureza é de Deus, seu pai, e é aquilo que nasce de Deus em nós.
O assunto da nossa santidade consiste em nossa obediência atual a Deus, de acordo com o teor da aliança da graça, porque Deus prometeu escrever a Sua lei em nossos corações, para que nós possamos temê-lo e guardar os Seus mandamentos.
A regra da nossa obediência a Deus é aquilo que Ele nos tem revelado na Sua Palavra, mas a vontade secreta e os propósitos ocultos de Deus que Ele não nos revelou, não são a regra da nossa obediência (Dt 29.29), e muito menos nossas próprias imaginações, ou razão, sentimentos, inclinações ou qualquer outra coisa (Col 2.18-23). .
Consequentemente nos é estritamente requerido não acrescentar e nem diminuir qualquer coisa da Palavra (Dt 4.2, 12.32; Js 1.7; Pv 30.6; Apo 22.18,19).
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A lei que Deus, pela Sua graça, escreve em nossos corações é a lei que está revelada na Sua Palavra; e é este o único princípio, a única regra, de nossa obediência evangélica.
E para este fim Deus prometeu que o Espírito Santo e a Palavra sempre acompanharão um ao outro, para o nosso crescimento espiritual e para guiar as nossas vidas.
“Quanto a mim, esta é a minha aliança com eles, diz o Senhor: o meu Espírito, que está sobre ti, e as minhas palavras, que pus na tua boca, não se desviarão da tua boca nem da boca da tua descendência, nem da boca da descendência da tua descendência, diz o Senhor, desde agora e para todo o sempre.” (Is 59.21).
A renovação inteira de nossa natureza, o princípio inteiro de santidade anteriormente descrito, nada mais é do que a Palavra transformada em graça em nossos corações, porque nós nascemos de novo pela semente incorruptível da Palavra de Deus.
Então, o crescimento espiritual nada mais é do que o crescimento em conformidade com a Palavra.
Todas as ações internas de nossas mentes, todas as volições da vontade, todos os movimentos de nossos afetos, serão reguladas por aquela Palavra que exige que amemos o Senhor nosso Deus com toda a nossa mente, toda a nossa alma, e toda a nossa força. Isto significa que a nossa mente, alma e força devem ser renovados pelos padrões da Palavra de Deus. A nossa
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mente pensará conforme a Palavra, a nossa alma desejará segundo a Palavra e a nossa força consistirá na nossa humildade e fraqueza, porque o poder da graça se manifesta quando somos quebrantados perante Deus e não fortalecidos em nossa compreensão carnal.
E esta obediência à Palavra tem por fim o que se diz resumidamente em Tito 2.12
“Ensinando-nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, e justa, e piamente,” (Tt 2.12).
Deus proveu meios para que Ele fosse mais exaltado e glorificado na Nova Aliança do que na Antiga, e daí se dizer que a glória da nova é maior do que a da antiga (II Cor 3). E esta glória, certamente requer que haja uma maior santificação nos aliançados. Porque se Cristo salvasse pessoas para estas permanecerem nos seus pecados ou fazerem muito pouco progresso em santificação, Ele seria considerado ministro do pecado, e qual seria a glória que Ele poderia receber nisto?
Apesar de ser constante a luta entre a carne e o Espírito Santo (Gl 5.16,17), há de se buscar e há de prevalecer a vitória do Espírito, e isto não será visto sem santificação. Embora nós sejamos real e verdadeiramente renovados por graça à imagem de Deus (contudo não absolutamente nem perfeitamente, mas só em parte), nós ainda temos restante em nós um princípio contrário de ignorância e pecado com o qual nós sempre
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temos que lutar (Gl 5.16,17) e por isso será exigido por Deus a nós uma obediência santa, e esforços em diligência neste sentido, para que Ele possa ser glorificado nesta nossa obediência e fidelidade à Sua vontade, porque estamos num ringue espiritual onde se o Espírito Santo não se sair vencedor, quem receberá os louros da vitória será a carne, para a nossa tristeza e desonra de Deus.
Assim, apesar de residir a fraqueza na nossa carne, isto não deve servir para que sejamos complacentes com o pecado, porque uma tal atitude jamais poderia agradar a Deus, porque Ele não poderá ser glorificado na nova aliança a não ser pela nossa obediência a Ele.
Com a queda de Adão Satanás intentava fazer com que toda a humanidade viesse a ser inimiga de Deus, porque a carne é inimizade contra Deus, e sendo carnal o homem jamais pode estar sujeito à lei de Deus. Então em Cristo há uma reconciliação em amizade porque pela santificação evangélica o homem é capacitado a obedecer a Deus, e nesta obediência à Palavra ele demonstra que não é mais inimigo, mas amigo de Deus.
Não se mostra portanto amizade a Deus com palavras, mas com a vida, com a prova patente de estarmos sujeitos à Sua vontade. E para isto é necessário então transformação, santificação, porque Deus é santo. Daí ninguém poderá ser tido como amigo de Deus enquanto viver segundo a carne.
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“Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando.” (João 15.1).
É por isso que em face da nossa fraqueza, o Espírito nos assiste operando de modo eficaz pela graça para que sejamos conduzidos àquela obediência santa requerida por Deus.
E para que esta obediência seja constante há um hábito ou princípio sobrenatural infundido e criado nos crentes pelo Espírito Santo, o qual, conforme a natureza de todos os hábitos, inclina e dispõe a mente a afetos e a atos de santidade satisfatórios, e não somente dispõe a mente como permite que o crente viva em obediência santa a Deus, e este hábito que é criado pelo Espírito Santo nos crentes difere de todos os demais hábitos naturais, intelectuais ou morais, ou quaisquer outros que nós possamos adquirir.
E isto será feito progressivamente porque a sabedoria de Deus é sobrenatural, e o conhecimento de coisas espirituais, como já falamos, dependem do nosso crescimento espiritual, e a sabedoria avançará conforme avançarmos em crescimento. E isto é uma lei espiritual universal, e nem mesmo os apóstolos ficaram fora desta regra, porque depois de terem passado três anos diretamente com Jesus, Ele lhes declarou que não pôde lhes ensinar tudo o que convinha ser aprendido por eles, e isto certamente foi devido à falta de maturidade espiritual deles para receberem tal revelação. Mas o Senhor lhes garantiu que isto seria dado a
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eles pelo Espírito Santo, à medida que eles caminhassem debaixo da Sua dependência e poder, em obediência à obra positiva que o Espírito faria neles.
Então, nós veremos que este hábito de santificação é um hábito piedoso, sobrenatural, ou um princípio de vida espiritual, e é um hábito que vai sendo formado progressivamente e que depende de obediência à vontade de Deus revelada na Palavra. E a natureza da santidade evangélica consiste neste hábito. A santidade é um hábito.
E esta santidade, em primeiro lugar, não consiste em tentativas de cumprimento dos mandamentos de Deus enquanto se permanece na carne, porque embora possa parecer bom em sua execução, em cumprimento a uma determinação específica de Deus, contudo tais atos podem ser executados por pessoas profanas, e há muitos exemplos disto na Bíblia, como foi o caso da oferta de Caim, o arrependimento superficial de Acabe, a matança realizada por Jeú, que foram atos notáveis de obediência, contudo não consistiram em nenhum ato de santidade, e nem poderiam ser denominados atos santos.
Então deve haver na santificação algo mais do que simplesmente meros atos de obediência aos mandamentos de Deus. Isto deve ser acompanhado por uma atitude interna de coração em sinceridade, reverência, temor, amor, humildade, gratidão, louvor, e tudo o
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mais que o Espírito Santo produz em nós em relação a tudo o que somos e fazemos para Deus. Porque é somente assim que se cumpre verdadeiramente o mandamento. E daí se dizer que se não estivermos debaixo de um verdadeiro amor a Deus e ao próximo, não haverá nenhum cumprimento de mandamentos, porque o cumprimento da lei depende disto, isto é, de que haja verdadeira santificação em todos os nossos atos, para que possam ser feitos efetivamente em Deus.
“37 E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento.
38 Este é o primeiro e grande mandamento.
39 E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
40 Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.” (Mt 22.37-40).
“8 A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei.
9 Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.
10 O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor.” (Rom 13.8-10).
Então a verdadeira santidade é movida por este amor a Deus e ao próximo.
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É por isso que Paulo diz que os homens podem dar todos os seus bens para alimentar os pobres, e os corpos deles para serem queimados, e ainda assim nada serão para Deus se lhes faltar amor, se lhes faltar esta santidade que é produzida pelo Espírito que nos leva a fazer aquilo que é bom, mas com a motivação que proceda do próprio Deus, em submissão à Sua vontade, em amor a Ele.
Assim aqueles frutos de cumprimento de mandamentos a que nos referimos podem surgir de uma semente que não tenha nenhuma raiz.
Por isso Deus rejeita expressamente tudo o que for feito em Seu nome e que não seja acompanhado por este espírito de santidade.
“11 De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios, diz o SENHOR? Já estou farto dos holocaustos de carneiros, e da gordura de animais cevados; nem me agrado de sangue de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes.
12 Quando vindes para comparecer perante mim, quem requereu isto de vossas mãos, que viésseis a pisar os meus átrios?
13 Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e as luas novas, e os sábados, e a convocação das assembleias; não posso suportar iniquidade, nem mesmo a reunião solene.
14 As vossas luas novas, e as vossas solenidades, a minha alma as odeia; já me são pesadas; já estou cansado de as sofrer.
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15 Por isso, quando estendeis as vossas mãos, escondo de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei, porque as vossas mãos estão cheias de sangue.” (Is 1.11-15).
E para a condição de aceitação é determinado a estes o seguinte:
“16 Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer mal.
17 Aprendei a fazer bem; procurai o que é justo; ajudai o oprimido; fazei justiça ao órfão; tratai da causa das viúvas.
18 Vinde então, e argui-me, diz o SENHOR: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a branca lã.
19 Se quiserdes, e obedecerdes, comereis o bem desta terra.” (Is 1.16-19).
Estes e muitos outros textos das Escrituras demonstram esta necessidade de que a obediência ao mandamento seja acompanhada pela santificação, sem o que ela não será aceita por Deus.
Assim não há nenhum dever de santidade que possa ser verdadeiramente executado sem que esteja presente este hábito de santidade. Na verdade o dever deve ser antecedido por este hábito. Ele deve vir antes de tudo o que devemos fazer em obediência a Deus.
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“11 Assim diz o Senhor dos Exércitos: Pergunta agora aos sacerdotes, acerca da lei, dizendo:
12 Se alguém leva carne santa na orla das suas vestes, e com ela tocar no pão, ou no guisado, ou no vinho, ou no azeite, ou em outro qualquer mantimento, porventura ficará isto santificado? E os sacerdotes responderam: Não.
13 E disse Ageu: Se alguém que for contaminado pelo contato com o corpo morto, tocar nalguma destas coisas, ficará ela imunda? E os sacerdotes responderam, dizendo: Ficará imunda.
14 Então respondeu Ageu, dizendo: Assim é este povo, e assim é esta nação diante de mim, diz o Senhor; e assim é toda a obra das suas mãos; e tudo o que ali oferecem imundo é.
15 Agora, pois, eu vos rogo, considerai isto, desde este dia em diante, antes que se lançasse pedra sobre pedra no templo do Senhor,” (Ag 2.11-15).
É por isso que era exigido nesta e em muitas outras passagens do Antigo Testamento que o povo se santificasse antes que se lançasse à execução de qualquer tarefa determinada por Deus, ou para a recepção de qualquer bênção prometida por Ele.
“10 Disse também o Senhor a Moisés: Vai ao povo, e santifica-os hoje e amanhã, e lavem eles as suas roupas,
11 E estejam prontos para o terceiro dia; porquanto no terceiro dia o Senhor descerá
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diante dos olhos de todo o povo sobre o monte Sinai.” (Ex 19.10,11).
A razão de ser exigida esta santidade anterior ao ato de obediência ao mandamento, é porque todo ato de verdadeira santidade tem que ter algo sobrenatural nisto, de um princípio renovador interno da graça.
E eu chamo este princípio de santidade um hábito, não como se fosse absolutamente do mesmo tipo dos hábitos adquiridos naturalmente, mas é uma virtude, um poder, um princípio de vida espiritual e graça, que é forjado em nossas almas, e que nos torna familiarizados à presença e às ações do Espírito Santo, de modo que não podemos viver mais sem isto. E esta doce comunhão com o Espírito passa a ser o maior interesse de nossas vidas, e desperta em nós um desejo de nos consagrar inteiramente a Ele, para fazer tudo o que for da vontade de Deus.
Nós fomos criados para viver para Deus. E este propósito da criação divina cumpre-se nos eleitos, porque serão eles que serão trabalhados em santificação para terem formado neles este hábito de santidade que prosseguirá em crescimento até que seja perfeito no céu. Nós concluímos portanto que não pode haver verdadeira obediência, no que se refere à vontade de Deus, sem este hábito de santidade. Aquele que diz que obedece a Deus deve estar em comunhão com Ele, deve andar com Ele, assim como se diz na Bíblia desde o princípio, nos exemplos de Enoque, Noé e Abraão. Eles
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tinham prazer em Deus e na Sua vontade. Eram Seus amigos verdadeiros porque amavam fazer a Sua vontade e cumprir os Seus mandamentos. É a isto que Jesus se refere quando diz que somos Seus amigos se fizermos o que Ele nos manda fazer. E é de fato assim, porque no que se refere a obedecer a Deus, nós provamos que somos de fato Seus amigos pelo modo com que amamos e fazemos a Sua vontade. Nós não obedecemos os Seus mandamentos interesseiramente, com vistas a sermos considerados Seus amigos, mas o fazemos espontaneamente, de livre escolha e vontade porque Ele é todo o nosso prazer e razão de ser da nossa vida. E quem implantou este sentimento, esta disposição interior no nosso coração, esta amizade sincera por Deus, foi o Espírito Santo, porque todos nós, antes da nossa conversão, éramos inimigos de Deus. E o Espírito Santo operou este trabalho em nós em cumprimento ao desígnio do próprio Deus que havia determinado trocar o nosso coração de pedra por um coração de carne, e nos dar um tal coração que jamais se afastasse dEle e que amasse e cumprisse os Seus mandamentos (Jer 32.40; Ez 36.25-27). Então se foi o Espírito que nos tornou amigos de Deus pelo espírito de santidade que foi implantado em nós, devemos continuar submissos ao Espírito Santo depois da regeneração, para que Ele possa manter, em contínuas operações renovadoras, este mesmo espírito de amizade em nós, de maneira que em vez de termos prazer no pecado, tenhamos prazer nos mandamentos de Deus e um desejo intenso de viver para honrá-lo e fazer a Sua
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vontade. É aqui que entra a necessidade de vigilância para mortificar a carne e não seguirmos a disposição da natureza terrena toda vez que ela se levantar em insinuações para condescendermos com aquilo que é pecaminoso e que desagrada a Deus, como também precisaremos de diligência para nos dedicarmos à adoração, à oração, à meditação na Palavra, e a todos os demais deveres que nos conduzirão a manter as operações do Espírito Santo em nós.
Então este hábito de santidade é preservado em nós pelas ações poderosas e constantes do Espírito Santo.
E a razão e a fonte deste trabalho do Espírito estão em Cristo, a nossa cabeça, da qual emana toda virtude e poder a nós pelo Espírito. E se isto não fosse de fato sempre continuado, tudo o que está em nós, de si mesmo, morreria e murcharia.
“15 Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo,
16 Do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor.” (Ef 4.15,16).
“Porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.” (Col 3.3).
Está determinado aos crentes que frutifiquem como um ramo da videira ou oliveira. E o ramo
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não pode produzir fruto por si mesmo. Ele deve receber o princípio de vida que procede da raiz. Assim se dá com o princípio de vida espiritual dos crentes em relação a Cristo. Embora este princípio ou hábito de santidade seja do mesmo tipo ou natureza em todos os crentes, contudo, há neles graus muito distintos disto. Em alguns é mais forte, vivo, vigoroso, e florescente; em outros, mais fraco, indolente, e inativo; e isto em tão grande variedade e varia em tantas ocasiões que não pode ser aqui comentado devidamente.
E este hábito ou princípio operante de santidade não é adquirido por qualquer ato de dever ou obediência, contudo é, de certo modo preservado pelo cumprimento do dever em obediência, e é preservado, aumentado, fortalecido, e melhorado deste maneira, porque Deus designou que nós deveríamos viver no exercício disto; e então, é pela multiplicação de atos e deveres que este hábito é mantido vivo. Não admira portanto que sejam inúmeras as passagens bíblicas ordenando que os crentes sejam diligentes e que se empenhem na prática de boas obras. E o principal elemento motivador destas boas obras tem em vista o amor a Deus e ao próximo.
“12 Agora, pois, ó Israel, que é que o Senhor teu Deus pede de ti, senão que temas o Senhor teu Deus, que andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma,
13 Que guardes os mandamentos do Senhor, e os seus estatutos, que hoje te ordeno, para o teu bem?” (Dt 10.12, 13).
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“E o Senhor teu Deus circuncidará o teu coração, e o coração de tua descendência, para amares ao Senhor teu Deus com todo o coração, e com toda a tua alma, para que vivas.” (Dt 30.6).
Como podemos observar neste texto de Dt 30.6, o fim da santidade é que nos possamos “viver” e esta vida é a vida eterna, e a obra principal da santidade é o “amor” ao Senhor com todo o coração e com toda a alma, e isto é obtido pela circuncisão do nosso coração por Deus, circuncisão esta da qual a do prepúcio era uma figura, para ilustrar o modo pelo qual aqueles que são de Deus se encontram unidos a Ele. A circuncisão era um corte da carne com vistas a não permitir o acúmulo de impurezas naquela região íntima e escondida. De igual modo a circuncisão do coração, isto é, do homem interior, é também uma operação dolorida porque aponta para a mortificação do pecado para evitar o acúmulo de impurezas no coração, de modo a permitir que haja uma verdadeira aliança com Deus pelo amor a Ele daqueles que não são mais mortos em seus pecados, mas vivos, pela nova vida recebida do céu.
Então nunca será demais lembrar os crentes desta condição que eles receberam de Deus de ter um coração circuncidado, e que devem continuar sendo circuncidados, para o propósito de amarem e servirem ao Senhor em santidade de vida, porque de outro modo a carne os enganará, os cegará, e eles não poderão
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entender e nem viver aquilo para o que foram chamados por Deus. É aqui que nós entendemos a razão de o Espírito Santo levantar ministros da Palavra na igreja, e dentre estes, mestres, para não somente manterem a verdade entre os crentes como para ensiná-la a eles. E a estes ministros e mestres é ordenado que se esmerem no aprendizado e ensino da Palavra, para que possam de fato atingir o propósito determinado por Deus para a Sua igreja. A verdade deve ser preservada e guardada como um bom tesouro e deve ser transmitida a pessoas idôneas e fiéis no curso da história da igreja, e isto não poderá ser feito sem muito empenho e dedicação. A vida será gasta nisto, e isto trará muita glória a Deus no testemunho de um maior amor a Ele e à verdade do que a si mesmos. Por isso se requer plena fidelidade dos ministros do evangelho, e Deus prestará contas com eles da mordomia deles, porque lhes tem encarregado desta grande honra e ao mesmo tempo desta grande responsabilidade de apascentarem o Seu rebanho com a verdade.
O novo nascimento ou regeneração aponta basicamente para o recebimento de um princípio espiritual, ao qual Jesus chama de espírito em João 3.6. É uma nova natureza espiritual que dantes da regeneração não se encontrava em nós. É algo que passa a existir em nós por obra do Espírito Santo e que será um princípio que estará sempre em luta contra a carne ou o pecado (Gl 5.17) e que nos conduzirá a todos os deveres de obediência a Deus. E sem
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este princípio operante nós não podemos realizar nenhum ato que é espiritualmente bom, nem qualquer ato de obediência vital. É por isso que é inútil tentar ver crentes que agradem a Deus, especialmente aqueles que são ainda muito jovens e também neófitos, caso eles não estejam antes sendo de fato dirigidos por este hábito ou princípio de santidade que foi implantado pelo Espírito neles. Se for a carne que estiver no comando da vontade deles, importa antes trazê-los à submissão ao Espírito Santo e ao Seu trabalho no coração, para que eles possam de fato fazer a vontade de Deus em santidade de vida, que é o único modo pelo qual convém fazer tal vontade. Daí a importância de avivamento, especialmente em relação aos jovens, que se sentirão atraídos por Cristo e impulsionados a viver para Ele submetendo-se à Sua Palavra pelo simples desejo de honrá-lo e glorificá-lo. Foi isto o que se viu nos dias de Jonathan Edwards, quando a Nova Inglaterra foi avivada pelo Espírito Santo, subjugando toda a carnalidade que havia na igreja e até mesmo fora dela, pela boa influência do Espírito Santo que havia sido derramado abundantemente sobre eles, em operações poderosas de transformação de corações de pedra em corações de carne, nos quais Deus escreveu as Suas leis para serem obedecidas em amor a Ele.
E sobre esta obra sobrenatural do Espírito Santo nenhuma língua pode expressá-la, e ninguém pode entender sua glória perfeitamente.
Esta é aquela vida que está escondida com Cristo em Deus (Col 3.3) cuja glória nós contemplamos
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como num espelho, porque há um véu sobre isto, de maneira que nós não podemos contemplar toda a sua beleza e glória.
De fato a glória de tudo aquilo que se refere à transformação do crente à imagem e semelhança de Cristo é algo inefável, isto é, não pode ser explicado completamente por palavras, provando-se que de fato é um trabalho do céu e não da terra. Algo sobrenatural, e não pertencente à criação natural e visível.
Então quanto se enganam todos aqueles que pretendem se mostrar mais santos do que os outros, pelo que se possa ver neles, tal como faziam os fariseus no passado nos dias de Jesus, que transfiguravam suas faces em tristeza pelos jejuns que faziam para mostrarem aos homens que eram santos. Esta obra interior do Espírito, como dissemos é invisível, e não está no poder do homem o efetuá-la, senão no próprio Espírito. Ninguém se iluda portanto em tentar exibir o grau de sua santificação com jeitos e trejeitos carnais que não passarão de uma farsa e de uma grosseira imitação daquilo que é glorioso e sobrenatural.
E um crente experiente em santificação jamais se deixará enganar por falsas aparências de consagração em demonstrações que são mais uma exibição do próprio orgulho pessoal do que da verdadeira graça de Deus. E quanto há disto espalhado no seio da própria igreja. Em exibições dos que gostam de transitar como profetas de Deus, mas que nunca apontam para o povo de Deus o dever da santificação, senão promessas que visam agradar ao próprio ego
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cobiçoso e pecaminoso deles. É uma lástima que isto ocorra, mas é a realidade com a qual terão que lutar todos os que são guiados pela verdade, assim como haviam feito Calvino e Lutero nos seus dias. E antes deles, todos os apóstolos de Jesus. Este é um mal que nunca será extinto enquanto a natureza terrena estiver presente no mundo. Porque estas coisas procedem da carne, e do pecado, em insinuações enganosas, para abafar a verdadeira obra do Espírito.
Então, não nos deixemos enganar com a sombra e aparência das coisas em alguns deveres de devoção.
Um bom critério para identificar esta exaltação de ego é contemplar devidamente o teor das bem-aventuranças proclamadas por Jesus no sermão da montanha. Ali se fala de pobreza de espírito, de mansidão, de choro, de paz, de misericórdia, de perseguição por causa da justiça, e quanto vemos disto nestes egos exaltados que lutam por fazer prevalecer a própria obra e glória deles? Ainda que isto venha na forma de uma pretensa humildade, o que estará por debaixo de tudo, conforme costuma ocorrer, é a busca da própria glória e não de se dar toda a glória a Deus. Isto é hipocrisia, falsidade e não espírito de santidade. Quem quiser se santificar deverá vigiar sempre contra isto em sua própria natureza, porque o velho homem é ardiloso e se opõe a tudo aquilo que procede de Deus. Por isso ele foi sentenciado à morte quando Jesus morreu na cruz. E é ordenado aos crentes que se despojem dele e dos seus feitos, para poderem ser
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revestidos e guiados pelo novo homem criado em justiça, em Cristo Jesus.
Mas devemos considerar que guardados destas tentações, devemos saber que a luz que brilha na nossa santificação foi dada a nós para brilhar sobre os homens, e para que estes vejam as nossas boas obras de justiça, para que Deus possa ser glorificado no reconhecimento deles do grande trabalho que foi feito pelo Espírito Santo em nossas vidas.
Nós devemos sempre ter bem fixado diante de nós que a inclinação para uma disposição carnal sempre conduz à morte, e estas graças que estão destinadas a crescer na santificação morrerão dentro desta disposição carnal (Rom 8.6), mas o pendor, a inclinação do Espírito Santo conduzindo os nossos corações dá para a vida e paz, conforme se afirma no mesmo texto de Rom 8.6, porque as nossas graças serão aumentadas pelo Espírito no crescimento que procede de Deus, fazendo com que vivamos não segundo o homem, mas segundo Deus, pela experiência cada vez maior das coisas celestiais, espirituais e divinas, e quando a alma fica inclinada a todos os atos de obediência a Deus e comunhão com Ele em grande alegria e paz.
E como a constância de permanência neste princípio de estar inclinado ao Espírito é contrária e subjuga o pecado, assim, por esta disposição santa a inclinação ao pecado que está em nós é debilitada, destruída, e gradualmente lançada fora.
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E esta inclinação ao Espírito nos fará respeitar todos os mandamentos de Deus, apesar de alguns deles serem mais contrários às nossas inclinações naturais, e outros serem contrários aos nossos interesses seculares, e outros que possam até mesmo colocar em risco a nossa própria segurança e conforto, este princípio piedoso em nossos corações nos inclinará igualmente e nos disporá a amar e a cumprir todos estes mandamentos, independentemente do quanto eles possam contrariar aos nossos próprios interesses pessoais.
Jesus provou ao jovem rico que ele não guardava os mandamentos de Deus com este princípio requerido de santidade, quando expôs a falta de disposição dele em contrariar seus interesses seculares, e isto comprovava que de fato não havia nele uma verdadeira obediência em amor e em disposição voluntária em obediência à Sua vontade, pela falta deste princípio espiritual, que ele certamente teria recebido caso se dispusesse a seguir a Jesus, submetendo-se ao que Ele lhe havia ordenado. Tudo o que aquele jovem fazia em relação a cumprir a lei de Deus não provinha de um princípio interno de santidade, e assim não havia nele uma verdadeira obediência a Deus, como ele supunha ter. E na verdade não poderia ter espírito de santidade porque este é criado na regeneração, e assim, para aquele jovem guardar os mandamentos de Deus, seria necessário, antes, que ele nascesse de novo do Espírito, porque com temos visto, sem regeneração não pode haver santificação.
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Quantos empenhos, esforços e atos do jovem rico no sentido de cumprir os mandamentos da lei de Moisés foram desperdiçados quanto ao fim apropriado deles, porque não foi acompanhado pelo necessário princípio de santidade? E sem regeneração ele não poderia ter este princípio operando nele de modo algum, porque primeiro o Espírito regenera e depois santifica. Quanta justiça própria não deveria estar envolvida na suposta obediência do jovem rico aos mandamentos de Deus, e esta justiça própria é uma afronta à Soberania e à Majestade de Deus, porque por ela se comprova o desejo de se viver independentemente dEle, e de não se estar de fato debaixo do Seu governo e vontade, pelo Espírito.
Os verdadeiros crentes devem estar bem instruídos e prevenidos contra este grande erro de se estar envolvido com muitos esforços com o fim de agradar a Deus, e que na verdade estejam debaixo da direção da carne e do seu pendor, e não do Espírito Santo. Os atos produzidos debaixo do Espírito dão para vida e paz. Mas os que são produzidos debaixo da carne produzem morte das graças que estão destinadas a viver e a crescer e não a morrer. Muitas dores são produzidas e não poucos arranhões na comunhão da igreja, quando a maioria dos crentes se deixam governar por este pendor da carne em muitas realizações que no final servirão apenas para eles se compararem com outros crentes e se sentirem, ainda que enganosamente, melhores do que eles. A carne
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quer reconhecimento e louvor, mas o espírito dá glória e graças a Deus por tudo.
E quão fácil é errar continuamente o alvo, porque estamos inclinados naturalmente para a carne e não para o Espírito. A falta de empenho em submissão ao Espírito dá natural e consequentemente o governo à carne. Então a melhor atitude é a de Maria e não a de Marta, a saber, estar antes aos pés de Jesus recebendo dEle graça, instrução e poder, e somente então partir para as ações que devemos empreender, caso estas sejam necessárias.
“Tu, pois, meu filho, fortifica-te na graça que há em Cristo Jesus.” (II Tim 2.1).
“No demais, irmãos meus, fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder.” (Ef 6.10).
O pendor da carne conduz às obras da carne que são descritas pelo apóstolo Paulo em Gl 5.19-22, e neste texto nós vemos que estas obras da carne são em sua natureza todas pecaminosas, e portanto, totalmente contrárias ao espírito de santidade que é produzido pelo Espírito.
“19 Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, prostituição, impureza, lascívia,
20 Idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias,
21 Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que
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cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus.” (Gl 5.19-21).
O pendor do Espírito produzirá o fruto do Espírito Santo:
“Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.” (Gl 5.22).
Uma reserva habitual, isto é uma atitude de condescendência para com determinados pecados, é incompatível com o princípio de santidade. Luz e trevas, fogo e água, não podem ser reconciliados. Qual é a comunhão que pode existir entre luz e trevas?
Então este hábito de santidade não há de levar em conta o que é da nossa conveniência pessoal, mas o que é devido à santidade de Deus pela nossa própria santificação. Então sempre será a nossa carne e nunca este hábito de santidade que nos sugerirá concessões ao pecado sob a alegação de sermos fracos, imperfeitos e que estamos sujeitos a pecar enquanto estivermos neste mundo. Estas são justificativas enganosas da carne para a prática do pecado. A nova natureza, este princípio de santidade sempre matará o pecado onde o encontrar, e nunca fará concessões a ele. Assim podemos fazer uma avaliação de como se encontra a nossa real condição em santificação, porque se estivermos de fato santificados o que será forte em nós será a nova natureza e ela sempre haverá de se manifestar desta forma em repugnância a
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qualquer tipo de pecado, mas se for o contrário disto, então estaremos sendo guiados pela carne por não estarmos de fato em comunhão com o Espírito Santo.
Em todas as situações o princípio de santidade nos conduzirá a uma disposição santa. A fugir do mal e a buscar o bem e a paz.
Este princípio, ou hábito de santidade em nós é como uma fonte de água a fluir e que é sempre doce, nunca misturada com as águas amargosas da velha natureza terrena.
“11 Porventura deita alguma fonte de um mesmo manancial água doce e água amargosa?
12 Meus irmãos, pode também a figueira produzir azeitonas, ou a videira figos? Assim tampouco pode uma fonte dar água salgada e doce.” (Tg 3.11,12).
Não é próprio portanto a cada natureza produzir algo diferente daquilo que ela é em si mesma. A natureza terrena decaída no pecado é fonte de todo o mal, assim como a nova natureza celestial recebida na regeneração sempre é fonte de todo o bem. Assim, os que são de fato guiados pelo Espírito Santo, serão encontrados na condição de estarem fazendo aquilo que é bom e agradável a Deus.
“É bom ser zeloso, mas sempre do bem, e não somente quando estou presente convosco.” (Gl 4.18).
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“Porque assim é a vontade de Deus, que, fazendo bem, tapeis a boca à ignorância dos homens insensatos;” (I Pe 2.15).
E este bem referido nas Escrituras é sobretudo um viver no amor de Deus, em expectativas de que a Sua Palavra seja obedecida com vistas ao amor e à paz. Assim todo aconselhamento, toda admoestação visarão ao amor, porque Deus é amor em Sua própria natureza. E isto será feito em mansidão e longanimidade, porque Deus é manso e longânimo, e tem manifestado abundantemente estes Seus atributos, especialmente na presente dispensação da graça, que é uma dispensação de paciência para com os pecadores, na expectativa de que se arrependam e vivam. Como Paulo, os que são assim dirigidos por este princípio do Espírito, tudo farão por amor aos eleitos, e desejariam ser cortados de Cristo, eles próprios para a salvação daqueles aos quais eles amam. Cristo demonstrou o Seu amor por nós dando a Sua vida, e de igual modo devemos dar as nossas vidas em amor aos irmãos, de modo que vejamos Cristo sendo formado neles, para o inteiro agrado deles próprios e sobretudo para o agrado de Deus.
“3 Como te roguei, quando parti para a Macedônia, que ficasses em Éfeso, para advertires a alguns, que não ensinem outra doutrina,
4 Nem se deem a fábulas ou a genealogias intermináveis, que mais produzem questões do
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que edificação de Deus, que consiste na fé; assim o faço agora.
5 Ora, o fim do mandamento é o amor de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida.” (I Tim 1.3-5).
A missão de Timóteo em Éfeso combatendo as heresias e admoestando os crentes, não tinha em vista destruir os hereges e estabelecer um tribunal de inquisição entre eles, senão afirmar a verdade evangélica com vistas a manter o amor entre os crentes, conduzindo-os a purificarem os seus corações e a terem uma boa consciência e uma fé não fingida, porque sem esta santificação não se pode de fato experimentar e se viver no amor de Deus.
E é portanto para a manutenção deste princípio de santidade na igreja que a Palavra institui e ordena a exortação mútua, e a prática da disciplina na igreja para a correção dos crentes que estiverem vivendo deliberadamente de modo contrário a este princípio de santidade. É nisto que se aplicam as instruções de Jesus de Mateus 18 quanto ao exercício da disciplina na igreja. Os que são participantes da aliança com Deus por meio de Cristo estão sujeitos à disciplina toda vez que eles se afastarem deste dever de se santificarem. Eles devem ser confrontados ainda que com longanimidade e amor. E no exercício desta disciplina todo o corpo de fiéis da igreja local terá a oportunidade de demonstrar que o Seu amor à Palavra de Deus e à Sua vontade é maior do que a qualquer
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pessoa, ainda que seja alguém do relacionamento familiar, porque Jesus disse claramente que não é digno dele todo aquele que amar mais aos seus parentes segundo a carne do que a Ele. E este princípio se estende à igreja na qual sempre importará obedecer a Deus do que aos homens, especialmente se a vontade dos homens vai na contramão da Sua vontade.
No entanto, para uma clara compreensão deste ponto é importante destacar que a par de toda a disposição de se viver debaixo da direção do Espírito, a par de todo o princípio de santidade que exista em nós em santificação, sempre haverá disposições contrárias a este princípio por motivo de estarmos ainda na carne, e isto se comprova pelo fato de que sempre haverá alguma luta da carne contra o Espírito e do Espírito contra a carne, mesmo naqueles que estejam mais santificados, e que chegaram à maturidade espiritual. É bem certo que esta luta será muito menos intensa do que antes, porque a graça ficou mais forte nestes que cresceram nela e no conhecimento de Cristo. Mas ainda há neles inclinações e disposições para pecar que procedem de um princípio habitual contrário ao princípio de santidade, que a Bíblia chama de carne ou corpo de morte. .
Mas na introdução do princípio novo da graça e santidade em nossa santificação, este hábito do pecado é debilitado e destronado, e não reinará absoluto como no passado, antes da nossa regeneração (novo nascimento) e assim não poderá nos inclinar ao pecado com aquela
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constância antiga anterior à conversão. Consequentemente é dito na Bíblia que é a graça que reina agora nos crentes e não mais o pecado.
“Para que, assim como o pecado reinou na morte, também a graça reinasse pela justiça para a vida eterna, por Jesus Cristo nosso Senhor.” (Rom 5.21).
Assim, ainda que o princípio do pecado possa ser destronado, contudo nunca é completa e absolutamente desapropriado e expulso da alma enquanto estivermos neste mundo. Ele permanecerá lá e trabalhará seduzindo e tentando, procurando obter vantagens com a sua força restante.
No estado de natureza, o princípio do pecado, ou a carne, é predominante e sujeita a alma ao seu governo, mas há uma luz que permanece na mente, e um julgamento na consciência que, sendo levantado com instruções e convicções pelo Espírito Santo e pela Palavra, se opõem continuamente e condenam o pecado, tanto antes quanto depois deste ser praticado. Assim o princípio da graça e santidade passa a ser predominante nos que têm se santificado, e exercerá o governo de suas almas ainda que haja este princípio de pecado em suas naturezas terrenas.
Então a luta da carne contra o Espírito e do Espírito contra a carne somente poderá ser vista onde haja o princípio de santidade, porque sem
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ele não haverá nenhum combate entre o Espírito e a carne. E vale ressaltar que a luta é do Espírito Santo contra a carne, e não da carne contra a carne, porque há muitos que se enganam pensando que o simples esforço deles para se tornarem moralmente melhores, e até mesmo para cumprirem determinados mandamentos de Deus poderá santificá–los, pois temos demonstrado fartamente que onde não estiver operando este princípio de santidade pelo Espírito não há nenhuma santificação verdadeira em curso. Ninguém pois se engane ou se iluda quanto a isto. É por fé no Senhor, no Seu sangue, e por um andar no Espírito, que se vence a carne e por conseguinte que somos santificados.
“Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne.” (Gl 5.16).
E nisto temos demonstrado também que o Espírito sempre trabalha em conjunto com a obediência à Palavra de Deus. E é neste ponto que muitos falham num sentido ou noutro, porque há aqueles que buscam somente a unção do Espírito, e há aqueles que desprezam esta unção para tentarem praticar os mandamentos de Deus. Não admira que se veja tanto mau testemunho no primeiro grupo, por conta de uma negligência e ignorância e até mesmo desobediência declarada aos mandamentos da Palavra, quanto se vê tanto legalismo no segundo grupo que por negligenciar e rejeitar a
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operação do Espírito em seus próprios corações, se tornam pessoas frias e endurecidas por conta de uma interpretação e prática da Palavra segundo a carne e o homem, e não segundo o Espírito e a mente de Deus.
Esta posições extremadas devem ser evitadas se desejamos realmente ser santificados.
Devemos lembrar que uma das evidência do trabalho do Espírito em nossos corações é o quebrantamento em humilhação diante de Deus, pelos nossos próprios pecados.
E o desejo pela prática da Palavra que é inspirado pelo Espírito sempre nos conduzirá a buscar o que não é propriamente do nosso próprio interesse, mas de muitos, e não para a nossa glória, senão para a exclusiva glória de Deus. Não praticaremos os mandamentos com o fim de sermos vistos pelos homens, tal como faziam os fariseus, mas nós seremos impulsionados a isto por amar ao Senhor e pelo desejo de honrá-lo com as nossas vidas.
E isto será traduzido em empenhos pela salvação dos perdidos, em prova de que esta santificação não é de natureza contemplativa, mas efetivamente de serviço ao próximo, assim como esteve na pessoa do Sr Wesley que gastou inteiramente a sua vida para a salvação e edificação dos pecadores.
E ele não fez isto debaixo da sua própria força e poder, senão do Espírito Santo, e mediante aplicação da Palavra de Deus na sua própria vida e de todos aqueles que viveram debaixo da sua influência. Ele os conduziu a viverem debaixo do senhorio do Espírito e da Palavra de Deus, e
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sempre apontando para a importância da santificação das suas vidas. E é isto que explica o seu sucesso e de todos os que se aliaram ao seu ministério.
Por natureza nós não temos nenhum poder em nós mesmos para viver esta vida do céu, fazendo aquilo que é espiritualmente bom, ou fazendo qualquer outro dever relativo à santidade evangélica.
“Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios.” (Rom 5.6).
Então é em Cristo que nós somos tornados fortes, mas esta força não é propriamente nossa, mas dEle.
“E disse-me: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, me gloriarei nas minhas fraquezas, para que em mim habite o poder de Cristo.” (I Cor 12.9).
É do Senhor que provém então a nossa força e poder para a obediência da Sua vontade.
“Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece.” (Fp 4.13).
Nós recebemos o princípio desta força na nossa conversão, que é o princípio de santidade que há na nova natureza, mas esta força não pode se manifestar se o velho homem estiver fortalecido, por deixarmos que a força que
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restou ao antigo senhorio do pecado exerça o comando das nossas vidas. E se é o nosso ego que se exalta, e nos iludimos que esta força tem a ver com a nossa própria energia e poder carnal, nós seremos humilhados por ficarmos faltos da verdadeira força e poder de Deus. Paulo havia aprendido a lição de se deixar enfraquecer em sua própria energia natural pelas circunstâncias adversas, de modo que não confiando na sua própria capacidade e poder, buscasse continuamente a força e o poder que procedem do Espírito Santo de Deus.
“10 Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte.” (II Cor 12.10).
E assim ele aprendeu que a graça de Cristo era suficiente para ele viver a vida de Deus em obediência a Ele, e para cumprir fielmente o seu ministério (II Cor 12.9a).
A vida com Deus exige que nós façamos aquilo que não há nenhum poder em nós mesmos para executar. Os que se esquecem disso causam muitas dores no corpo de Cristo, e especialmente os líderes, porque colocarão fardos insuportáveis nos ombros daqueles que eles dirigem porque exigirão obediência deles na energia da carne. E assim eles incorrem no mesmo pecado que os fariseus cometeram no passado porque desconheciam o trabalho em
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santificação do Espírito Santo, mediante a Palavra de Deus.
Assim o que Deus requer Ele mesmo faz por nós e através de nós de modo que Ele e não propriamente nós recebamos a glória.
Entretanto, devemos sempre lembrar que a graça não é concedida a todos na mesma proporção, como se vê em Ef 4.7: “Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo.”, mas é dever de todos os crentes crescerem na medida que lhes foi concedida. E como se vê na parábola dos talentos não é necessariamente aqueles que têm recebido uma menor medida que terão mais facilidade de serem achados fiéis, porque o homem de um só talento o enterrou. É possível então se achar negligência e indolência em muitos crentes que deveriam crescer na graça que eles receberam do Senhor.
E há uma base legal para todos os crentes se aperfeiçoarem em santidade, porque eles foram completamente libertados em Cristo de tudo aquilo que os escravizava e os mantinha sujeitos à servidão do pecado, do diabo e até mesmo da própria lei cerimonial e civil do Antigo Testamento, porque inaugurando a nova aliança com Seu sangue, Jesus obteve uma perfeita liberdade de tudo isto para os que estão aliançados com Ele pela fé. Todos os crentes têm então o direito legal de se aproximarem de Deus para serem aperfeiçoados em santificação.
Entretanto, se nós não formos constantes em todos os atos de obediência, nenhum deles será fácil a nós, porque a graça requer diligência para
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que possamos ser fortalecidos por ela. A graça nos fortalecerá como aquele que recebe a recompensa por fazer o que é correto, e assim, pelo reforço da recompensa somos incentivados a prosseguir em fidelidade. E esta repetição sistemática em obediências sucessivas nos conduzirá à formação do hábito que é essencial à santidade.
E estes hábitos de santidade não devem se limitar à mente em exercícios de oração e devoção, mas devem também serem incentivados pelos ministros tornando ativas as suas ovelhas em exercícios espirituais que favoreçam o crescimento espiritual delas, empenhando-as ativamente nas atividades espirituais da igreja, especialmente aquelas voltadas para a salvação dos perdidos.
Nós temos visto o quanto a santidade evangélica se distingue da simples moralidade filosófica. Muitos pensam que se aplicando ao estudo da filosofia poderão se aperfeiçoar na teologia que conduz ao verdadeiro conhecimento de Deus. Temos demonstrado que uma sabedoria natural, fruto de uma inteligência natural não é a sabedoria espiritual que procede de Deus e que é sobrenatural em sua natureza, e que demanda portanto crescimento espiritual progressivo para que possa ser revelada e infundida em nós. A sabedoria natural não pode propiciar o crescimento da nova natureza, senão a sabedoria sobrenatural que é infundida pelo trabalho do Espírito Santo nos regenerados.
Daí a sabedoria natural dos ímpios não pode lhes valer um só centavo quanto ao aperfeiçoamento
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espiritual deles, em crescimento de santidade, até porque não podem ser santificados sem serem antes regenerados.
O mero conhecimento filosófico não pode portanto, por si mesmo, aumentar um só centavo na nossa santificação.
Isto porque o princípio de santidade é distinto de todos os demais hábitos da mente, sejam eles intelectuais ou morais.
“Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência, de que com simplicidade e sinceridade de Deus, não com sabedoria carnal, mas na graça de Deus, temos vivido no mundo, e de modo particular convosco.” (II Cor 1.12).
“Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, envolvendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão,” (Col 2.18).
Esta santidade não tem nada a ver portanto com tudo aquilo que é ou que foi criado pela própria mente e imaginação dos homens, porque como dissemos ela vem de fora, é recebida do alto, ainda que afete e transforme a nossa mente em muitos sentidos.
“A minha palavra, e a minha pregação, não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração de Espírito e de poder;” (I Cor 2.4).
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“As quais também falamos, não com palavras de sabedoria humana, mas com as que o Espírito Santo ensina, comparando as coisas espirituais com as espirituais.” (I Cor 2.13).
Na verdade tudo o que se pode aprender intelectual e naturalmente passa a residir na mente mas não pode produzir esta vida que procede de Deus. Esta relação entre a vontade que reside na mente, e a lei do pecado ou a lei do Espírito que operam no homem todo, a saber, no corpo, alma e espírito, são realidades que transcendem a própria vontade do homem, e por conseguinte de todas as faculdades da sua mente. Paulo se referiu a isto em Romanos 7:
“15 Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço.
16 E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa.
17 De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim.
18 Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem.
19 Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço.
20 Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim.
21 Acho então esta lei em mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo.
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22 Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus;
23 Mas vejo nos meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros.
24 Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?
25 Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor. Assim que eu mesmo com a mente sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado.”.
O crente de si mesmo, com a sua mente deseja servir à lei de Deus, mas isto não é tudo quanto ele necessita para poder servir aprovadamente a Deus, pois necessita que a lei do Espírito de vida em Cristo Jesus o capacite a fazer o que deseja, e a não fazer o que não deve e não deseja fazer, porque somente esta lei espiritual pode vencer a lei do pecado que opera na carne e que é mais forte do que a própria vontade humana, que é uma das principais faculdades da mente.
Assim, os hábitos e aquisições intelectuais não são imediatamente efetivos para a prática do bem ou do mal, mas como a vontade é influenciada por eles, estes hábitos e aquisições inclinam e dispõem a vontade a agir de acordo com a natureza deles. Assim, em todos os atos provenientes do exercício da nossa vontade, duas coisas pelo menos devem ser consideradas, a primeira quanto ao próprio ato em si, e a segunda, quanto ao fim que ele se destina. E assim também em nossa obediência
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sempre deve ser considerado o próprio dever em si, e também qual é o fim que nós objetivamos com o seu cumprimento. E se esta finalidade visa à glória de Deus, então nossa obediência é evangélica. Então se o todo de nossas aquisições filosóficas não tendem a este fim, ou mesmo não podem se prestar a isto, será de pouco ou nenhum valor diante de Deus todo o nosso conhecimento intelectual, tendo em vista a sua inutilidade em si mesmo para produzir em nós ou nos outros, a santidade que é esperada por Deus, pelo aumento em crescimento da santificação.
Então se nos aperfeiçoamos na filosofia ou em qualquer outra área do conhecimento meramente humano para prestarmos um maior e melhor serviço a Deus, nós estaremos fazendo muito esforço para nada, porque não é nesta fonte natural que nós encontraremos a vida sobrenatural que procede de Deus, e não é nesta semente que se encontra a vida eterna, senão unicamente na semente da Palavra de Deus, e especialmente na Palavra do Evangelho de Cristo.
Com isto dizemos que a pregação e o ensino da igreja não deve consistir em filosofias humanas, em moralismo humano, em ciências humanas, sejam elas de qual natureza forem, senão exclusivamente na Palavra de Deus, porque este é o único agente que foi dado por Ele para a santificação dos eleitos.
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“Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 17.17).
E é nesta intercessão de Jesus pelos crentes de todas as épocas que se cumpre a realização do trabalho em santificação do Espírito. Cristo já intercedeu para que este trabalho seja feito, e ele será feito porque está determinado pelo Pai que os eleitos sejam completamente santificados. E o Pai não negará nada ao Filho. Por isso é importante saber que o pedido da nossa santificação pela Palavra já foi dirigido ao coração do Pai pelos próprios lábios de Jesus. Assim, não há nenhuma graça forjada em nós, dada a nós, comunicada a nós, preservada a nós, que não seja em resposta a esta intercessão de Cristo para que sejamos santificados. É por causa da Sua oração que a santidade é iniciada em nós. Por isso este princípio de santidade recebido na regeneração continua vivo e preservado em nós. E se nós realmente desejamos ser santos, é nosso dever constantemente nos juntarmos à intercessão de Cristo para o aumento disto, e isto nós poderemos fazer através de súplicas especiais a ele neste sentido. E tal como os apóstolos Lhe pediram para aumentar a fé deles, de igual modo nós podemos pedir ao Senhor que aumente a nossa santidade.
Entretanto nós não precisamos orar a Ele para que possamos ser santificados, porque Ele já intercedeu e tem intercedido por nós neste sentido, porque isto faz parte do cumprimento do Seu ofício sacerdotal. Mas faremos bem em
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orar também neste sentido porque com isto nós concordamos com a Sua intercessão em nosso favor em tal sentido.
E se é parte da intercessão de Cristo que esta santificação seja operada por Deus com base na verdade que Ele próprio definiu como sendo a Palavra de Deus, então concluímos que um dos meios para sabermos se estamos sendo santificados é o fato de termos prazer em cumprir os mandamentos de Cristo, porque a palavra do evangelho não será penosa ou pesada àqueles que estão santificados, porque ela é o próprio meio da santificação deles, ao contrário esta palavra será agradável a eles, e será todo o seu prazer honrá-la, cumpri-la, pregá-la e ensiná-la. Assim é por meio disto que podemos saber se estamos sendo santificados ou não.
Concluímos portanto que é somente pela santificação que podemos ter prazer em cumprir os mandamentos de Deus e achá-los agradáveis e preciosos, e não pesados e dolorosos.
Então é por este meio que nós podemos afirmar que não estão sendo santificados, por não buscarem a santificação de suas vidas, aqueles que menosprezam as verdades do evangelho, ou que afirmam que os preceitos de Deus são pesados e difíceis de serem cumpridos.
E Jesus encarnou e se fez homem não somente para poder efetuar a nossa redenção como também para se tornar o modelo da nossa santificação. Ele viveu neste mundo num corpo igual ao nosso e era em tudo semelhante a nós, exceto no que tange ao pecado. E Ele estava
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sujeito às mesmas provações a que nós estamos sujeitos, e às mesmas aspirações, mas todo o uso que Ele fez de Sua mente e de Seus desejos foi exclusivamente para obedecer perfeitamente ao Pai, realizando o ministério que Lhe foi designado, e Ele viveu fazendo todas as coisas para a glória de Deus, vigiando e orando em todo o tempo, e não permitindo ser vencido por quaisquer tentações do diabo. Ele negou-se a si mesmo em todas as situações para fazer não a Sua mas a vontade do Pai, de maneira que se diz que Ele aprendeu a obediência por tudo que sofreu (Hb 5.8), e neste propósito de nos revelar o modo como os homens devem viver para Deus, Ele se santificou a Si mesmo, não no sentido de se purificar do pecado porque não tinha pecado, mas em fazer somente a vontade de Deus, e não a própria vontade, e em se submeter perfeitamente à direção do Espírito Santo, de modo que nós pudéssemos ser santificados em conformidade com este modelo que Ele fixou para nós conforme era da vontade de Deus desde antes da criação do mundo.
“E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade.” (João 17.19).
“Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma. Como ouço, assim julgo; e o meu juízo é justo, porque não busco a minha vontade, mas a vontade do Pai que me enviou.” (João 5.30).
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“1 E Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto; “ (Lc 4.1).
“Então, pelo poder do Espírito, voltou Jesus para a Galileia, e a sua fama correu por todas as terras em derredor.” (Lc 4.14).
“Como Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude; o qual andou fazendo bem, e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era com ele.” (At 10.38).
Assim nosso Senhor Jesus Cristo quando se santificou a si mesmo Ele se tornou a causa da santidade evangélica em todos os crentes. Então a desculpa comum de ser ouvida de alguns crentes que eles não podem se santificar porque não são divinos como Jesus Cristo cai inteiramente por terra, porque é o próprio Cristo que se tem tornado pela vontade do Pai, o modelo da santificação deles, isto é, eles são chamados por Deus a serem efetivamente como Cristo, porque Ele se fez homem exatamente para este propósito.
Então é olhando e buscando aquilo que se encontra nEle e que nos é revelado na Palavra, que devemos essencialmente basear a nossa transformação pela santificação. Em seus passos o que faria Jesus? Este é o título de um livro famoso, mas a santidade evangélica perguntaria de melhor forma o que estamos fazendo nós em relação aos passos de Jesus,
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porque se diz que devemos seguir os Seus passos (I Pe 2.21).
“Porque para isto sois chamados; pois também Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigais as suas pisadas.” (I Pe 2.21).
Então a exortação à prática da Palavra que é tanto usada nas igrejas significa sobretudo esta imitação do comportamento de Jesus em tudo o que está revelado na Bíblia quanto ao Seu amor, perdão, mansidão, humildade, vida de oração, devoção; submissão ao Pai e ao Espírito, pregação da Palavra, desprezo ao mundo, misericórdia, longanimidade, testemunho e defesa da verdade, não ser vencido por tentações, não praticar o mal, e tudo o mais que se refere à Sua santidade, porque fomos chamados para ter em nós tudo aquilo que está nEle.
A santidade é portanto basicamente esta conformidade com Jesus.
Assim a maior prova da obediência de um crente é a sua sujeição Àquele que é a cabeça do seu corpo, na condição de ser um dos membros da igreja, a saber Cristo. E esta sujeição consiste sobretudo nesta imitação do modelo que Ele se tornou para nós da parte de Deus.
“Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências.” (Rom 13.14).
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E o caráter desta imitação não é filosófico mas espiritual, porque Cristo não é a cabeça da igreja apenas no sentido deste governo moral, mas sobretudo do governo vital, porque é nEle que os crentes vivem, e é portanto este o maior motivo de se submeterem ao trabalho da graça no sentido de conduzi-los à exata imagem e semelhança com Aquele que é a própria vida deles.
“Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis; porque eu vivo, e vós vivereis.” (João 14.19).
“Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viverá por mim.” (João 6.57).
Como podemos conciliar estas palavras de Jesus com uma pregação de meros conceitos filosóficos, de mera virtude moral? O que têm a ver com filosofia e mera moralidade as graças do Espírito como fé, amor e esperança? O que há de espiritual, teológico e divino nestas cousas?
Os chamados deveres espirituais, evangélicos, teológicos, sobrenaturais, divinos, excedem em muito a esfera da mera moralidade. É possível que a moralidade não admita que se fale de salvação a ladrões e a meretrizes, mas o dever evangélico não somente o admite como nos ordena isto. Na verdade, uma fria moralidade nos tornará inúteis para sermos instrumentos nas mãos do Senhor para a salvação dos pecadores.
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Aquele que estiver santificado em Cristo detestará o pecado mas amará os pecadores e terá compaixão do estado em que eles se encontram.
Aquele que estiver verdadeiramente santificado não ocultará o juízo de Deus contra o pecado e contra os pecadores que não se arrependerem, mas não serão de modo algum os seus juízes, mas os continuadores da missão de Jesus na dispensação da graça que é a de salvar e não a de condenar o mundo.
“E se alguém ouvir as minhas palavras, e não crer, eu não o julgo; porque eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo.” (João 12.47).
CAPÍTULO 6
DOS ATOS E DEVERES DE SANTIDADE
Os atos de deveres de santidade são de dois tipos a saber, o primeiro diz respeito às coisas que devemos fazer quanto à vontade de Deus, e o segundo às que nos são proibidas por Ele juntamente com aquelas que se referem à mortificação do pecado.
E o Espírito Santo nos ajuda e dispõe a estes dois tipos de deveres.
Quanto aos atos e deveres do primeiro tipo eles podem ser internos e externos. Mas os externos devem ser acompanhados pelas ações internas da graça. Assim duas pessoas podem executar os
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mesmos deveres externos ordenados pela Palavra, da mesma maneira, só que é possível que possa existir o dever de santidade evangélica numa destas pessoas e não na outra, assim como foi o caso de Caim e Abel, com os apóstolos e Judas, por exemplo.
E quanto as deveres de santidade interna nos referimos aos atos de fé, amor, confiança, esperança, temor, reverência e alegria em relação a Deus que é o objeto imediato destes deveres. E são estes deveres internos a base de toda verdadeira vida espiritual, porque eles serão as fontes das ações externas corretas. Purifique o coração e as ações serão limpas. Faça boa a árvore e o fruto será bom. Se faltar esta atitude interna, esta santidade interna, podermos abundar em deveres externos para Deus, e ainda assim os nossos corações estarão alienados da vida de Deus. E ainda que sejam muitas as nossas obras na igreja de Cristo teremos o nome de quem vive, mas estaremos mortos por falta desta comunhão com Deus.
“E ao anjo da igreja que está em Sardes escreve: Isto diz o que tem os sete espíritos de Deus, e as sete estrelas: Conheço as tuas obras, que tens nome de que vives, e estás morto.” (Apo 3.1).
A este propósito é digno de nota que as pessoas que estão em estado vegetativo de saúde são tidas como mortas pela incapacidade delas de se comunicarem com o mundo ao redor delas. E nós ficamos compadecidos desta situação e muitos discutem se é algo digno mantê-las em
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vida quando não há nenhuma possibilidade de recuperação do estado em que elas se encontram, sendo sustentadas por tubos e outros dispositivos mecânicos instalados em hospitais. Mas há um grande contingente de pessoas que se encontram em estado vegetativo em relação a Deus, porque se encontram mortas em seus pecados, e esta morte significa que elas se encontram numa condição de incapacidade total de se comunicarem com Deus e entenderem as realidades espirituais relativas à vida eterna. Os crentes, pelo novo nascimento, passaram da morte para a vida, porque, em Cristo, foram reconciliados com Deus e tornados capazes de se comunicarem com Ele e discernirem a vida celestial. Então quando o crente perde a comunhão com Deus por causa da prática deliberada do pecado, ele fica como que morto apesar de ter recebido o dom da vida eterna. Então é pela santificação que mantemos a comunhão com Deus e permanecemos na plenitude da vida espiritual que recebemos na regeneração.
Quando as ações internas de fé, temor, reverência, confiança e amor abundam e são constantes em nós, elas comprovam que nossa alma se encontra numa condição vigorosa e saudável.
E devemos considerar sempre que é o próprio Deus o objeto e o fim de alguns dos nossos deveres externos, como por exemplo a oração e o louvor. E há então um grupo de mandamentos que descrevem o dever do homem exclusivamente para com Deus, assim como se
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descreve nos primeiros dos dez mandamentos, e nisto se inclui tudo o que se refira à santificação do nome de Deus e à Sua adoração, tanto privativa quanto pública. E de modo prático isto se aplica na reverência, no temor, no cuidado que devemos ter ao fazê-lo de modo que não deixemos de Lhe prestar o culto que nos é exigido, e também para não fazê-lo de maneira diferente do que nos é ordenado na Bíblia.
Nós devemos lembrar que a vida natural que o homem possui e que lhe capacita a se expressar no mundo foi-lhe dada por Deus quando soprou o fôlego de vida no corpo inanimado de Adão. Se Deus não tivesse colocado tal princípio de vida no homem ele seria apenas uma carcaça inerte. E em relação à vida espiritual de santidade que foi criada pelo Espírito Santo na regeneração dá-se o mesmo porque sem que a graça de Deus em Jesus Cristo fornecesse aos crentes esta nova vida, eles não seriam habilitados nem dispostos a viverem para Deus no exercício de atos espiritualmente vitais, ou no desempenho de deveres de santidade.
E assim aqueles que não possuem este princípio de vida espiritual estão espiritualmente mortos, como comentamos anteriormente. Eles não podem fazer nada que seja bom espiritualmente e em conformidade com a vontade Deus. Mas o crente, ainda que esteja como que morto, pela falta de comunhão com Deus, pode pelo arrependimento e pelo retorno à prática dos deveres de santidade, ser renovado pelo Espírito Santo, e então ser fortalecido com graça para poder viver de modo agradável a Deus. É por isso
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que Jesus chama ao arrependimento e retorno às boas obras a todas as igrejas citadas nos capítulos 2 e 3 de Apocalipse, que haviam esfriado no amor e na fé, porque os crentes possuem este principio espiritual de vida eterna que lhes possibilita se relacionarem com Deus. Entretanto, não poderão fazê-lo sem um coração purificado e sem diligência nos deveres que lhes são ordenados, e daí a razão de ser da chamada ao arrependimento.
E é pela suficiência da graça que podemos fazer as boas obras esperadas por Deus.
“E Deus é poderoso para fazer abundar em vós toda a graça, a fim de que tendo sempre, em tudo, toda a suficiência, abundeis em toda a boa obra;” (II Cor 9.8).
O andar no Espírito referido em Gl 5.16 consiste em andar em obediência a Deus, em conformidade com as operações da graça que o Espírito Santo nos concede, e é acrescentado que assim fazendo nós não cumpriremos as cobiças da carne, e então isto significa que nós seremos mantidos em obediência santa que evitará ao mesmo tempo a prática do pecado.
“4 Para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito.
5 Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito.” (Rom 8.4,5).
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Este caminhar na carne significa ser guiado pelos princípios viciosos, depravados de nossa natureza terrena corrompida pelo pecado original. Caminhar na carne é estar agindo com o princípio do pecado, em pecados atuais. Portanto, caminhar ou andar no Espírito é agir de acordo com o princípio de santidade, em atos e deveres piedosos.
As virtudes citadas em Gl 5.22 como sendo o fruto do Espírito são forjadas e produzidas em nós pelo Espírito porque elas são o seu fruto, isto é, o que resultara em nós por andarmos nEle. Todo ato de fé, de amor, de longanimidade, e de tudo o que ali se nomeia, é por conseguinte do Espírito e não de nós mesmos.
“Porque o fruto do Espírito está em toda a bondade, e justiça e verdade;” (Ef 5.9).
Toda a obediência e santidade que Deus requer de nós na aliança, todos os deveres e ações da graça, é prometido que serão forjados em nós pelo Espírito, de modo que estejamos seguros que de nós mesmos não poderemos fazer nada em relação a isto (Ez 36.27; Jer 32.39,40).
Nós servimos e adoramos a Deus no Espírito (Fp 3.3); amamos os irmãos no Espírito (Col 1.8); purificamos nossas almas obedecendo a verdade pelo Espírito (I Pe 1.22). Veja também Ef 1.17; At 9.31; Rom 5.5; 8.15, 23, 26; 14.17; 15.13,16; I Tes 1.6.
Estes, dentre muitos outros textos da Bíblia são suficientes para comprovar que o Espírito Santo,
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como o autor da nossa santificação, opera também em nós todos os atos piedosos de fé, amor e obediência. E nós vemos assim quão contrárias são consequentemente à revelação da Bíblia as noções de alguns homens que afirmam que a santidade pode ser gerada pelos próprios crentes, pelo bom uso da razão deles para não mentirem, não serem desonestos, não adulterarem e em resumo não praticarem nenhum pecado que possa se tornar público e visível. Mas quem pensa assim está mentindo para si mesmo, sendo desonesto para com Deus e adulterando a Sua Palavra, porque não é este o caminho indicado por Ele para a santificação. Porque santificação é muito mais do que comportamento aprovado pela sociedade, pois como vimos no início do nosso livro é ser irrepreensível não somente diante dos homens, mas também e principalmente diante de Deus.
CAPÍTULO 7
MORTIFICAÇÃO DE PECADO, A NATUREZA E CAUSAS DISTO
“Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a prostituição, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria;” (Col 3.5).
“No qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, a circuncisão de Cristo;” (Col 2.11).
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“Sabendo isto, que o nosso homem velho foi com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado.” (Rom 6.6).
“Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis.” (Rom 8.13).
Nestas e em muitas outras passagens da Bíblia nos é ordenado por Deus este dever de mortificar o pecado.
O modo desta mortificação é gradual assim como ocorre com a morte de alguém na cruz.
O nosso velho homem foi crucificado com Cristo para que o corpo de pecado pudesse ser destruído, de maneira que depois da conversão nós não sirvamos mais ao pecado.
O princípio operante do pecado é chamado de vários modos por Paulo: corpo do pecado, carne, velho homem, e quando ele fala de mortificação do pecado está se referindo à destruição deste princípio que é a fonte de todas as nossas transgressões.
Não está em vista portanto uma luta com cada um dos pecados atuais em separado, quer relativos a pensamentos, e ações internas ou externas, porque é necessário atuar na fonte de todos eles por um andar no Espírito que é o meio de não satisfazer a toda a concupiscência da carne.
Este dever de debilitar o pecado pelo crescimento e melhoria da graça, e a oposição
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que é feita ao pecado em todas suas ações, é chamado mortificação.
Quando o processo de mortificação do pecado não é administrado com base em princípios evangélicos, ele pode tender a enlaçar a consciência pela adoção de farisaísmo e superstição.
As diretrizes para subjugar o poder da corrupção da natureza terrena vão muito além da prática de um ascetismo oco e inoperante. Nem os métodos mórbidos do enclausuramento daqueles que procuram fugir do mundo em mosteiros e retiros pode realizar a obra esperada por Deus em relação ao assunto.
Esta leitura seria muito proveitosa, especialmente para pastores e líderes, que geralmente têm se mostrado inaptos para lidar com a própria carnalidade deles e daqueles que devem apascentar e guiar. Muitos têm colocado sobre a cerviz dos discípulos um jugo pesado e insuportável para se carregar, porque não está baseado no mistério do evangelho e na eficácia da morte de Cristo.
Para subjugar a carne é preciso aprender a caminhar com Deus, de acordo com o teor do pacto da graça.
Em Rm 8.13 as palavras do apóstolo apresentam a conexão correta entre a verdadeira mortificação e a salvação. A mortificação como o trabalho dos crentes, e o Espírito Santo como o seu principal e eficiente instrumento. O significado de "obras do corpo" nas palavras do
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apóstolo no texto refere-se às ações do corpo, cujo resultado de sua mortificação é vida.
Antes de fazer esta afirmação Paulo havia discorrido sobre a doutrina da justificação pela fé, e a sua propriedade santificadora naqueles que foram feitos participantes da graça.
Entre os argumentos e motivos apresentados por ele para a santificação, ele destacou o pecado como um dos principais elementos contrários à santificação. Afirmou que aqueles que seguem o pendor da carne caminham para a morte. Numa clara alusão a incrédulos. Pois aos crentes, a quem dirigiu as palavras de Rom 8.13, disse que não estão debaixo de qualquer condenação, conforme dito no primeiro versículo deste capítulo.
A partícula condicional “se” usada no texto está empregada no mesmo sentido de quem recomenda um remédio a um doente. “Se você tomar tal remédio você ficará curado”. Os crentes já têm a posse do remédio ( a graça) e o médico que o administra (o Espírito), cabe-lhes portanto somente continuarem se submetendo à sua administração pelo Espírito para que permaneçam curados, assim como o foram na justificação e regeneração de suas almas na conversão, devendo este trabalho de cura prosseguir e ser mantido, na santificação.
Há portanto no texto a certeza da conexão entre o remédio e a saúde. E é este o sentido que Paulo quis destacar em Rom 8.13. Em nenhum momento ele quer admitir a possibilidade de um crente vir a morrer por não ter sido feito nele a obra de mortificação dos feitos do corpo,
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porque ele mesmo disse no contexto imediato anterior que os crentes não estão na carne, mas no Espírito, e assim, têm por conseguinte o pendor do Espírito que dá para vida e paz (Rom 8.6).
Há em Rom 8.13 uma clara relação de causa e efeito; de modo e de fim; isto é, de mortificação o pecado e vida, a vida eterna que é dom de Deus por meio de Jesus Cristo. Deus designou que este fim seria atingido pela graça, mediante a fé em Cristo, e Ele também designou todos os demais meios para que isto fosse atingido, concedendo-os também por graça e voluntariamente. Isto está determinado que deve e será feito de um modo ou de outro em todos aqueles que têm nascido de novo do Espírito. As obras da carne serão mortificadas pelo mesmo Espírito, e este é o dever deles portanto, o de cooperar com aquilo que está determinado para ser feito neles.
E esse dever de mortificar as obras do corpo é prescrito aos crentes, porque somente eles podem fazê-lo por terem o Espírito, como Paulo afirma que eles não estão na carne mas no Espírito (verso 9), e diz também que eles são guiados pelo Espírito (versos 10 e 11), distanciando assim este dever de qualquer fruto resultante do trabalho da superstição e do farisaísmo de que o mundo está cheio.
Assim, mesmo os crentes mais consagrados que são livrados seguramente do poder do pecado, devem ainda fazer da mortificação do poder interior do pecado o seu negócio de todos os dias. A vida eterna que temos recebido por meio
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de Cristo está comprovada e evidenciada no trabalho de mortificação progressiva dos nossos pecados pelo Espírito. Daí ser essencial que os crentes se empenhem em sua santificação, nunca negligenciando este dever, porque é por este trabalho de progredir em santidade que temos a certeza da vida eterna, e por conseguinte da salvação.
A causa eficiente principal do desempenho deste dever é o Espírito. O Espírito de Cristo, o Espírito de Deus que habita em nós, o Espírito de adoção; o Espírito que intercede por nós. Todos os outros modos de mortificação são vãos, todas as ajudas nos deixam desamparados; isto deve ser feito pelo Espírito.
Os homens, como o apóstolo cita em Rom 9.30-32, pode tentar fazer este trabalho, por outros princípios, como eles sempre fizeram, e podem fazer, mas, ele disse: "Este é o trabalho do Espírito; porque somente pode ser feito por Ele, e não poderá jamais ser realizado por qualquer outro poder. A mortificação da força do ego, pode ser feita por vários modos inventados pelo próprio ego até o extremo do farisaísmo, e é a alma e substância de todo falsa religião no mundo.
‘Que diremos pois? Que os gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram a justiça, mas a justiça que vem da fé. Mas Israel, buscando a lei da justiça, não atingiu esta lei. Por que? Porque não a buscavam pela fé, mas como que pelas obras; e tropeçaram na pedra de tropeço;” (Rom 9.30-32).
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Mas observemos agora mais detidamente o significado de mortificar as obras, ou feitos, ou ações do corpo de Rom 8.13. No próprio versículo, esta citação está alinhada com o ato de viver segundo a carne, significando pois a mesma coisa. Viver na carne e obras do corpo têm portanto o mesmo significado.
Está em foco a mesma carne, que o apóstolo vem citando desde o início da epístola, e que ele sempre apresenta como antítese de viver e andar no Espírito. O corpo, então, aqui, significa aquela corrupção e depravação de nossa natureza, sendo o corpo, em grande parte, o seu abrigo e instrumento, os mesmos membros do corpo que são feitos servos da injustiça, como citado em Rom 6.19. É o pecado interior que conduz o corpo à ação, trazendo-o em sujeição, como um escravo. Mas a palavra "corpo" em Rom 8.13 não está se referindo propriamente ao corpo físico; o que está em foco aqui é o mesmo "velho homem", e o "corpo de pecado", de Rom 8. 6, sendo assim, considerada a pessoa como um todo, como corrompida, que abriga toda sorte de cobiças e afetos carnais.
Está em foco, com referência ao “corpo”, as mesmas obras da carne, como são chamadas e citadas em Gál 5.19. Assim, são as ações externas que estão expressadas aqui, contudo as suas causas são interiormente planejadas. O "machado será posto à raiz da árvore", as ações da carne serão mortificadas nas suas causas, de onde elas procedem. Tendo, tratado no sétimo e no começo deste capítulo, da cobiça interior e do pecado como fonte e princípio de todas as
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ações pecaminosas, o apóstolo menciona aqui a sua destruição debaixo do nome dos efeitos que eles produzem. Ele está falando da destruição das causas (cobiça e pecado) quando fala da destruição dos efeitos (obras do corpo). É neste sentido que o corpo está morto por causa do pecado, como citado em Rom 8.10, porque enquanto neste mundo ele está sujeito à destruição por causa do pecado que nele opera, não tendo ele recebido a mesma vivificação operada no espírito por causa da justiça de Cristo, e daí afirmar-se que o espírito é vida no mesmo versículo citado. É neste mesmo sentido que Jesus afirma que o espírito está pronto, mas que a carne é fraca. O espírito humano não está sujeito a perecer, mas o corpo está. Entretanto há que se considerar que ao dizer que o espírito é vida por causa da justiça, o que está em foco é mais do que meramente o espírito humano, porque os ímpios também têm espíritos, e não se pode dizer deles o mesmo que se diz em relação aos crentes. Há um sentido sobrenatural nisto cujo amplitude não podemos entender completa e perfeitamente, porque conhecemos em parte, mas está evidente que esta obra sobrenatural se refere ao novo nascimento do Espírito Santo, porque Jesus diz que aquele que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Os crentes são espírito neste sentido de que passaram da morte para a vida, de que são co-participantes da natureza divina por terem a habitação do Espírito Santo que lhes dá esta nova natureza, de
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modo que se diz deles que são novas criaturas em Cristo.
É importante que se saiba isto porque tanto o corpo, a alma e o espírito dos crentes estão sujeitos tanto ao pecado, quanto ao trabalho de santificação. Por isso se diz que a carne e o Espírito são opostos entre si. A carne, a velha natureza, opera segundo o pecado; e o Espírito, a nova natureza opera a santificação. Por isso se diz em Rom 8.6 que o pendor da carne dá para morte, e que o pendor do Espírito Santo dá para vida e paz.
O verbo mortificar usado por Paulo significa literalmente matar. Levar qualquer coisa viva à morte, por retirar toda a sua força, vigor e poder, de forma que não possa mais agir. O pecado interior é comparado a uma pessoa, uma pessoa viva, chamada de "o velho homem", com as suas faculdades e propriedades, com sua sabedoria, arte, sutileza, força; isto, diz o apóstolo, deve ser morto, mortificado - quer dizer, ter seu poder, vida, vigor, e força, e produção dos seus efeitos, lançados fora pelo Espírito. Realmente, o velho homem está totalmente mortificado pela cruz de Cristo; e é dito por isso que ele está crucificado com Cristo (Rom. 6.6), e nós mesmos estamos legalmente "mortos" com ele, verso 8, e realmente regenerados (Rom 6.3-5), quando um princípio contrário e destrutivo do velho homem (Gal 5.17) foi implantado em nossos corações; mas o trabalho inteiro é por graus e deve ser continuado até a perfeição todos os nossos dias. Assim, a intenção declarada do apóstolo é que é dever constante
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de todos os crentes a mortificação do pecado que permanece em nossos corpos mortais e que pode dar poder para a produção das obras da carne, ou feitos do corpo, como tais ações são classificadas por Paulo.
E a promessa para este dever é vida: "vivereis.". A vida prometida está em oposição à morte com que são ameaçados aqueles que vivem segundo a carne.
Isto pode conduzir a uma pergunta: “podem os crentes autênticos que não estão empenhados em mortificar as obras do corpo, e que vivem segundo a carne, morrerem eternamente?”. A resposta dada pelo próprio apóstolo nesta e noutras epístolas é não. Nada e ninguém pode separar o crente de Cristo. Nenhuma acusação ou condenação será sustentada em juízo contra eles. Isto não significa que estão isentos da aplicação da justiça de Deus. Certamente são e serão sempre submetidos ao julgamento de Deus em todos os seus atos e obras, mas não para uma condenação eterna que venha a separá-los para sempre de Cristo. Daí o cuidado de Paulo em alertar os crentes a não viverem de modo presunçoso valendo-se da certeza da segurança eterna da sua salvação. Porque os que foram feitos filhos de Deus devem viver como filhos de Deus. O fato de se estar sob a graça não é um estímulo a se permanecer no pecado, mas muito o contrário disto, é um incentivo e um dever para se destruir, para se mortificar o pecado.
Vida eterna, santidade, somente podem ser colhidas do Espírito, e da carne não se pode
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colher senão corrupção (Gál 6.8). Então, é uma aberração o crente que não é instruído a mortificar o pecado e que não se empenha neste dever que lhe é imposto por Deus.
Quantas vezes Jesus disse em seu ministério terreno: “vai e não peques mais” ? Uma vez feito um crente, é um dever mortificar o pecado, ter o objetivo de não viver mais sob o seu domínio. Esta é a vontade expressa do Senhor na salvação. Ele nos salvou para a santidade.
Quando Paulo diz que se mortificarmos as obras do corpo, viveremos, é bem provável que não esteja em vista apenas a vida eterna no porvir, mas também a vida espiritual em Cristo que nós temos aqui; podendo os crentes desfrutarem a alegria, o conforto e o vigor disto, como Paulo diz em I Tes 3.8: “porque agora vivemos, se estais firmes no Senhor.”. Assim, o vigor, e o poder e conforto de nossa vida espiritual depende da mortificação das ações da carne.
Assim a mortificação é o trabalho dos crentes, e o Espírito é a principal causa e instrumento disto. E são vários os textos bíblicos que citam esta verdade.
“Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à submissão, para que, depois de pregar a outros, eu mesmo não venha a ficar reprovado.” (I Cor 9.27).
“Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas vou prosseguindo, para ver se poderei alcançar aquilo para o que fui também alcançado por Cristo Jesus.” (Fp 3.12).
“antes crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja
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dada a glória, assim agora, como até o dia da eternidade.” (II Pe 3.18).
“Infiéis, não sabeis que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus. Ou pensais que em vão diz a escritura: O Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme? (Tg 4.4,5).
“Portanto, nós também, pois estamos rodeados de tão grande nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta,” (Hb 12.1).
“Porque a carne luta contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes se opõem um ao outro, para que não façais o que quereis.” (Gál 5.17).
“Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros.” (Rom 7.22,23).
Estes textos mostram claramente que mesmo os crentes mais consagrados devem fazer da mortificação diária do pecado, o negócio deles todos os dias das suas vidas.
Assim, para quem está o apóstolo falando em Col. 3.5 ? “Exterminai, pois, as vossas inclinações carnais; a prostituição, a impureza, a paixão, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria;”, e em noutra versão: “Fazei pois, morrer a vossa natureza terrena” que é a mesma coisa. E ainda em outras palavras: “mortifique
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seus membros que estão na terra”. Não é para aqueles que ele cita em Col 3.1-3: “Se, pois, fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas que são de cima, onde Cristo está assentado à destra de Deus.Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra; porque morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.”. São estes que devem fazer da mortificação o seu trabalho diário; sempre devem fazê-lo, senão o pecado mortal o estará matando. Há um ditado no nosso país que afirma que se o Brasil não acabar com a saúva, ela acabará com o país. O pecado é a saúva que devemos matar todos os dias pelo poder do Espírito, para que ela não nos destrua a nós. Este inimigo que é o pecado não deve ser subestimado nem por um só momento, e toda vigilância será ainda pouca, para que possa ser devidamente destruído. E na verdade é preciso mais do que vigilância, também se requer disciplina e diligência em se cumprir determinados deveres para tal propósito.
Toda verdadeira frutificação depende do que Jesus diz em Jo 15.2: “toda vara que dá fruto, ele a limpa, para que dê mais fruto.”. E Deus não poda apenas em um ou dois dias. E vimos como o apóstolo se refere à sua própria prática diária em I Cor 9.27, para trazer o seu corpo em sujeição. É como se Paulo dissesse que este era o trabalho da sua vida. Que ele nunca negligenciava. Este era o seu negócio. E se isto era necessário para Paulo que estava revestido por Deus dos melhores dons, quando mais não vale isto para nós ?
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O pecado sempre resistirá enquanto nós estivermos neste mundo; então sempre deve ser mortificado. As disputas vãs, tolas, e ignorantes de homens sobre a possibilidade de guardar perfeitamente os mandamentos de Deus, nesta vida, de ser completa e perfeitamente morto para o pecado, não serão abordadas agora. Mas podemos dizer que estes inventaram uma justiça nova que o evangelho não conhece.
Este modo de pensar procede do desconhecimento da diferença entre a morte completa do velho homem pelo ato legal conquistado por Cristo na cruz, e a forma de efetivação deste ato legalmente conquistado.
“Não que já a tenha alcançado, ou que seja perfeito; mas vou prosseguindo, para ver se poderei alcançar aquilo para o que fui também alcançado por Cristo Jesus.” (Fp 3.12).
“Por isso não desfalecemos; mas ainda que o nosso homem exterior se esteja consumindo, o interior, contudo, se renova de dia em dia.” (II Cor 4.16). Ora, se o homem interior está se renovando dia a dia, isto denota que este trabalho de mortificar o pecado é também progressivo, porque esta renovação depende principalmente disto. Não pode haver revestimento de Cristo, se não há despojamento da carne.
Por isso se diz em I Jo 1.8: “Se dissermos que não temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós.”.
No dizer de Rom 7.24 nós temos um corpo de morte. Porque está sujeito continuamente à
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morte que é operada pelo pecado. Este corpo só será livrado desta humilhação quando nós formos transformados no arrebatamento da igreja, quando receberemos um corpo glorificado que não está sujeito ao pecado. “que transformará o corpo da nossa humilhação, para ser conforme ao corpo da sua glória, segundo o seu eficaz poder de até sujeitar a si todas as coisas.” (Fp 3.21). Então não há outra forma de ser livrado da ação do pecado senão pela morte. Por isso é nosso trabalho enquanto estivermos neste corpo, o de estar matando continuamente o pecado. Este é o trabalho de se matar um inimigo, com um golpe após outro, de modo que não o deixemos viver.
“Porque quem semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna. E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido.” (Gál 6.8,9).
“Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.” (II Cor 7.1).
“Portanto, nós também, pois estamos rodeados de tão grande nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta, fitando os olhos em Jesus, autor e consumador da nossa fé, o qual, pelo gozo que lhe está proposto, suportou a cruz, desprezando a ignomínia, e está assentado à direita do trono de Deus.” (Hb 12.1,2).
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O pecado não somente permanece em nós, como ainda está operando, ainda trabalhando para produzir as ações da carne. O pecado é tão ardiloso que mesmo quando parece estar quieto, é quando está mais operante, pois suas águas podem estar mais profundas, e podemos nos iludir com a aparente tranquilidade que se mostra na superfície. Assim, se não houver uma firme e permanente vigilância, ele poderá nos surpreender.
Sabendo que não é possível a aniquilação definitiva de qualquer tipo de pecado enquanto vivermos neste mundo, será sábio estarmos sempre prevenidos contra eles, porque a condição citada em Rom 7.22,23 é uma condição permanente enquanto estamos neste corpo: ““Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros.”. Mas também é verdade que este prazer interior que temos agora na lei de Deus vem da habitação do Espírito. “Ou pensais que em vão diz a escritura: O Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme?” (Tg 4.5).
Mas o pecado é insistente e persistente, pois estará sempre influenciando toda ação moral ou nos inclinando sempre para o mal, ou impedindo-nos de fazer o que é bom, ou atrapalhando a comunhão com Deus.
“Cada um, porém, é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência; então a concupiscência, havendo concebido, dá
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à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte.” (Tg 1.14,15).
“Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; com efeito o querer o bem está em mim, mas o efetuá-lo não está. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico. (Rom 7.18,19).
Nesta altura alguém poderá pensar que existe um paradoxo na vida cristã, pois ao mesmo tempo que se exige santidade de vida, se afirma que o pecado permanece trabalhando incansavelmente sobre as nossas vidas. Entretanto, uma verdade não anula a outra. É possível praticar o bem, é possível viver em santidade, é possível ter comunhão com Deus, ainda que estejamos sujeitos à ação do pecado. Negar isto é hipocrisia, porque esta é a pura verdade. Enquanto no corpo estamos sujeitos ao pecado, por maior que seja a nossa consagração, e dizemos isto não para justificar um viver segundo a carne, mas exatamente para se viver de modo santo, sabendo nós de antemão que isto, enquanto neste mundo, nunca significará uma aniquilação total e permanente do pecado.
Em Hb 12.1 vemos que há uma perseguição permanente do pecado. Ele nos acompanhará em toda a nossa caminhada terrena. Não como um amigo, mas como um inimigo terrível que estamos incumbidos de destruir constantemente pelo poder do Espírito.
É por isso que mesmo as nossas melhores obras, sempre são acompanhadas por algum tipo de pecado (orgulho, ira, negligência etc), de forma que ninguém jamais pôde ou poderá afirmar
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que fez qualquer coisa para Deus que estivesse isenta totalmente da companhia desse inimigo pernicioso que nos acompanha tão de perto.
E se esta é a realidade em relação ao pecado e à nossa santidade, então se nós não fizermos da mortificação diária do pecado o nosso negócio, nós estaremos perdidos. Aquele que ficar parado e sofrer os ataques deste inimigo sem resistir-lhe, será indubitavelmente vencido. Se o pecado é sutil, alerta, forte, e está sempre no trabalho de matar nossas almas, e se nós somos indolentes, negligentes, tolos, seremos certamente arruinados. Enquanto vivermos neste mundo será sempre assim: ou o pecado é vencido ou prevalece. Não há nenhum descanso prometido quanto a isto neste mundo. Esta é uma guerra sem trégua.
Não dermos a devida atenção ao pecado, se não for continuamente mortificado, ele se fortalecerá, se rebelará, aborrecerá, inquietará e destruirá. Os seus resultados são descritos por Paulo em Gál 5.19-21: “ Ora, as obras da carne são manifestas, as quais são: a prostituição, a impureza, a lascívia, a idolatria, a feitiçaria, as inimizades, as contendas, os ciúmes, as iras, as facções, as dissensões, os partidos, as invejas, as bebedices, as orgias, e coisas semelhantes a estas, contra as quais vos previno, como já antes vos preveni, que os que tais coisas praticam não herdarão o reino de Deus.”.
Você sabe o que fez em Davi e vários outros. Pecado sempre busca o extremo; toda vez que se levanta para tentar e seduzir, sempre procurará conduzir ao estado extremo daquele tipo de
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iniquidade. Todo grande vício começa pelos pequenos. Todo pensamento sujo visa conduzir à prostituição e ao adultério. Todo desejo de cobiça à opressão e dominação. Todo pensamento de incredulidade ao ateísmo. Se Deus não estabelecesse freios na própria consciência dos homens, e não instituísse a lei e autoridades para punir os pecados extremos, certamente o pecado mostraria muito mais a sua verdadeira face de conduzir às formas extremas de sua manifestação, e à maior destruição extrema que é a morte.
Mas temos aprendido muito sobre isto neste últimos dias, onde vemos que há cerca de apenas trinta anos atrás não havia tanta violência e imoralidade espalhada pelo mundo todo. A iniquidade vai se multiplicando e com ela as formas extremas de pecado (crimes de morte, roubo, adultério, aborto, homossexualismo, uso abusivo de drogas etc).
As consciências estão cauterizadas e assim já não agem tanto como freio das más ações. As autoridades fazem leis que aprovam o pecado (adultério, aborto, homossexualismo etc) ou deixam de cumprir a função instituída por Deus para elas de punir os pecados, e qual é o resultado disto? A manifestação do pecado em suas formas extremas. Porque o pecado está sempre presente, esperando apenas a oportunidade de se manifestar. Se ele não for reprimido ele vencerá. Quando os pais renunciam ao dever de disciplinarem seus filhos, deixando de punir suas más ações eles estão contribuindo para que vivamos numa
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sociedade onde a iniquidade continuará se multiplicando mais e mais, e onde o amor de muitos se esfriará, em consequência disto.
O endurecimento do coração começa pequeno e tende a aumentar Uma vez admitido o pecado faz do coração a sua base, e dali procederá todo tipo de mal, começando com graus pequenos, tendendo à sua forma extrema.
“Vede, irmãos, que nunca se ache em qualquer de vós um perverso coração de incredulidade, para se apartar do Deus vivo; antes exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado;” (Hb 3.12,13).
Quando a alma fica insensível a qualquer pecado, quer dizer, sobre o senso que é requerido pelo evangelho, ela ficará mais e mais endurecida, e isto é feito através de graus. E nada pode prevenir isto senão a mortificação. O pecado deve ser removido pela raiz, senão ele não morrerá.
Esta é a razão principal por que o Espírito e a nova natureza são doados pela graça a nós, para que tenhamos um princípio interior por meio do qual possamos nos opor ao pecado e à cobiça que conduz ao pecado. "a luta da carne contra o Espírito". Mas “o Espírito também luta contra a carne”. Há uma tendência no Espírito, ou nova natureza espiritual, estar agindo contra a carne, como também na carne para estar agindo contra o Espírito. Assim, como vemos em II Pe 1.4, 5. é nossa participação da natureza divina que nos dá uma fuga das corrupções que estão no mundo pela cobiça; e, vemos em Rom 7.23
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tanto uma lei da mente, quanto uma lei dos membros do corpo. Esta competição é pelas nossas vidas e almas. Não estar empregando o Espírito e a nova natureza diariamente para mortificar o pecado, é negligenciar aquele socorro excelente que Deus nos tem dado contra nosso maior inimigo. Se nós negligenciarmos fazer uso do que nós recebemos, Deus pode reter a Sua mão privando-nos de nos dar mais. As graças dele, como também os seus dons são dados a nós para serem usados e exercitados, e não para serem enterrados ou jogados fora. Não estar mortificando o pecado diariamente, é pecar contra a bondade, sabedoria, graça, e amor de Deus que os tem fornecido a nós para tal propósito.
Negligenciar este dever de mortificar o pecado lança a alma numa condição contrária à citada por Paulo em II Cor 4.16, e nosso homem interior não será renovado dia a dia.
Onde a negligência da mortificação, adquire uma vitória considerável, quebra os ossos da alma (Sl 31.10; 51.8), e torna o homem fraco, doente, e pronto a morrer (Sl 38.3-5), e indo de ferido depois de ferida; chaga após chaga, nunca despertando para fazer uma oposição vigorosa ao pecado que está minando as suas forças, eles não podem esperar nenhuma outra coisa senão ficarem endurecidos pela falsidade do pecado.
“Olhai por vós mesmos, para que não percais o fruto do nosso trabalho, antes recebeis plena recompensa.” (II Jo 8).
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É nosso dever estar aperfeiçoando a santidade no temor de Deus (2 Cor. 7.1); para estar crescendo diariamente na graça", (I Pe 1.2; II Pe 3.18), para que o nosso homem interior seja renovado dia a dia (II Cor 4.16). Agora, isto não pode ser feito sem a mortificação diária do pecado.
Quando alguém tem pensamentos leves sobre o pecado, especialmente por suas fraquezas diárias, tal pessoa está à beira de transformar a graça de Deus em lascívia, sendo endurecida pela falsidade do pecado. Especialmente os líderes devem vigiar contra esta presunção que tem sido a causa da apostasia de muitos. Nenhum pecado é pequeno ou inofensivo o bastante para ser acolhido e acariciado, sendo bem tolerado, porque há de demonstrar no fim o seu poder de destruição. Assim deve ser destruído antes que nos destrua a nós.
O Espírito Santo foi prometido aos crentes para operar principalmente este trabalho de mortificação do pecado (Ez 11.19; 36.26).
Assim, vemos que os muitos atos penitenciais e ascéticos de várias religiões não têm qualquer eficácia contra a sensualidade, isto é, contra o pecado. As chamadas práticas religiosas que são ensinadas por tais religiões para aproximar os homens de Deus são classificadas por Jesus por tradições de homens, doutrinas de homens, porque não conferem com a única e verdadeira doutrina de Deus revelada no evangelho que nos aponta a cruz de Cristo e o poder do Espírito como os únicos meios eficazes para a mortificação do pecado, e para a produção de
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santidade nos corações. É a abençoadora presença real do Senhor que é Santo quem nos santifica. Ele mesmo e nada mais. Se entramos na Sua presença, com um coração sincero, firmados na fé no sangue derramado por Cristo para a nossa justiça, e se Ele nos abençoa com a manifestação da Sua presença gloriosa, pelo Espírito que em nós habita, então somos santificados e o pecado é vencido. Não é lutando diretamente contra cada pecado, fazendo esforço para não ser vencido pelo mesmo que conseguiremos bom êxito. Como dissemos o pecado é ardiloso, pode ser que ele não se manifeste exteriormente pelo nosso esforço, mas continuará ligado ao nosso coração, gerando temor ou desejo. Mas somente a presença do Senhor em nossa comunhão com Ele pode expulsar tanto o desejo quanto o temor. Debaixo da operação da graça de Jesus o pecado não tem qualquer domínio sobre nós. Não vence o pecado pelo simples conhecimento da lei, da vontade específica de Deus para nós, mas por nos sujeitarmos ao Senhor e à operação da Sua graça.
O nosso dever é vigiar e apresentarmo-nos diariamente a Deus em oração, para que a Sua graça seja derramada em nossos corações. Assim, quando falamos que o nosso dever é o de mortificar o pecado, em nenhum momento isto deve ser entendido que este trabalho deve ser feito por nós sem contar com a assistência do Espírito. Na verdade, como já dissemos a eficácia desta operação pertence exclusivamente ao Espírito.
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Atos de auto flagelação não podem produzir santidade. Nem também abstinências severas. Legalismo. Seja o que for. Somente o Espírito pode gerar santidade no coração. Este trabalho é feito através da nova natureza, e como poderíamos fazê-lo. As práticas religiosas são também carnais porque trabalham somente com o velho homem, continuam portanto sujeitas ao domínio da natureza terrena, porque não entendem as cousas do Espírito que se discernem espiritualmente.
A mente do homem natural não está sujeita à lei de Deus e nem mesmo pode estar, e por conseguinte não pode entender as cousas de Deus. É preciso seguir a inclinação do Espírito. É preciso estar debaixo do seu mover. É preciso estar submisso e obediente ao seu querer. E até mesmo este desejar, este querer é operado pelo Espírito. Porque é Ele quem opera tanto o querer quanto o realizar. Não sabemos como orar, mas saberemos se Ele interceder por meio de nós. Não sabemos qual seja o seu querer específico mas Ele poderá revelá-lo a nós, conforme a sua soberana vontade. Até mesmo os nossos dons, serviços, realizações, são distribuídos por Ele conforme Lhe apraz.
Como poderemos então vencer esta força ardilosa que é o pecado sem contar sem o trabalho do Espírito em nossos corações e mentes? Todo esforço religioso sem isto é menos do que fumaça e se dissipará sem produzir qualquer efeito positivo.
Como o trabalho de mortificação do pecado requer tantas ações simultâneas nenhum
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esforço pessoal poderá alcançar isto, e um poder sobrenatural e todo-poderoso se faz necessário para tal. Isto é então o trabalho do Espírito, porque ele foi prometido por Deus a nós para fazer este trabalho. Jogar fora o coração de pedra, quer dizer, o teimoso, orgulhoso, impuro, rebelde, incrédulo, que é em geral o trabalho de mortificação a que estamos nos referindo.Ainda que o nosso esforço seja necessário isto não será conseguido somente pelo nosso esforço mas pelo Espírito mesmo.
Toda a nossa mortificação é dom de Cristo, e são comunicados todos os dons de Cristo a nós e nos são dados pelo Espírito de Cristo: "Sem Cristo nós não podemos fazer nada" (Jo 15.5). Ele foi exaltado a Príncipe e Salvador para nos conceder o arrependimento (At 5.31). E a nossa mortificação não é nenhuma porção pequena do nosso arrependimento.
Como o Espírito mortifica o pecado?
Geralmente, de três modos:
1. Fazendo nossos corações abundarem em graça e darem os frutas que são opostos às obras da carne. Assim o apóstolo opõe os frutos da carne aos do Espírito. Mas alguém dirá: “Mas não podem tanto os frutos da carne quanto os do Espírito abundarem simultaneamente na mesma pessoa? Não, diz ele,em Gál 5.24: “E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências.”. Mas como? O verso 25 diz o por que: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também pelo Espírito.”; quer dizer, o abundar destas graças do Espírito em nós, vem por se caminhar de acordo com Ele.
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Porque diz o apóstolo no verso 17 que a carne e o Espírito se opõem entre si, de forma que não podem andar juntos em qualquer intensidade ou grau. O lavar renovador do Espírito é um grande modo de mortificação; ele nos faz crescer, prosperar, florescer e abundar naquelas graças descritas em Gál 5.22,23: “Mas o fruto do Espírito é: o amor, o gozo, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bondade, a fidelidade, a mansidão, o domínio próprio; contra estas coisas não há lei.” Que são o contrário, o oposto, de todas as obras destrutivas da carne.
2. Por uma real operação na raiz e hábito do pecado, para o seu enfraquecimento, destruição e remoção. Consequentemente ele é chamado de espírito de justiça e de ardor em Is 4.4: “Quando o Senhor tiver lavado a imundícia das filhas de Sião, e tiver limpado o sangue de Jerusalém do meio dela com o espírito de justiça, e com o espírito de ardor.”. Ele pega o coração de pedra por uma operação todo-poderosa; começa o seu trabalho, e continua nele trabalhando em graus. Ele é o fogo que queima a raiz mesma da cobiça.
3. Ele traz a cruz de Cristo ao coração do pecador pela fé, e nos dá comunhão com Cristo na Sua morte, e comunhão nos Seus sofrimentos.
Sabendo que o trabalho somente pode ser feito pelo poder do Espírito de Deus, deixe então que o trabalho seja feito completamente por ele.
“porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.” (Fp 2.13).
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“Senhor, tu hás de estabelecer para nós a paz; pois tu fizeste para nós todas as nossas obras.” (Is 26.12).
O Espírito Santo trabalha por meio de nós e em nós, preservando a nossa própria liberdade e obediência voluntária. Ele trabalha em nossas mentes, vontades, consciências, e afetos, de modo agradável à própria natureza deles; ele trabalha em nós e conosco, não contra nós ou sem nós; de forma que a ajuda dele é um encorajamento para facilitar o trabalho.
Sem esta operação do Espírito todo o trabalho para mortificar o pecado será em vão. E esta é a guerra mais triste que qualquer criatura pode empreender. Uma alma debaixo do poder de convicção da lei é pressionada a lutar contra pecado, mas não tem nenhuma força para combatê-lo. Eles não podem mas lutam, e eles nunca podem vencer. A lei os dirige a atacar o pecado, mas este os ataca pela retaguarda.
O vigor e conforto de nossas vidas espirituais dependem de nossa mortificação.
Força e conforto, poder e paz, em nosso caminhar com Deus, são as coisas que mais desejamos. Mas tudo isto depende muito de um curso constante de mortificação.
Eu não digo que eles procedem necessariamente disto, como se estivessem amarrados à mortificação, porque um homem pode ser constante num curso de mortificação todos os seus dias; e ainda assim pode ser que nunca tenha desfrutado de um dia bom de paz e consolação. Assim se dava com Hemã, no Sl 88; a vida dele era uma vida de mortificação
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perpétua e de caminhada com Deus, contudo terrores e feridas eram a porção dele todos seus dias. Mas Deus separou Hemã, como um amigo escolhido, para torná-lo o exemplo daqueles que vivem em angústia.
Deus faz disto uma prerrogativa Sua, a saber, falar de paz e consolação: “Tenho visto os seus caminhos, mas eu o sararei; também o guiarei, e tornarei a dar-lhe consolação, a ele e aos que o pranteiam. Eu crio o fruto dos lábios; paz, paz, para o que está longe, e para o que está perto diz o Senhor; e eu o sararei. (Is 57.18, 19).
“Eu crio isto, diz o Senhor”. O uso de meios para a obtenção de paz é nosso dever; mas o dar isto é prerrogativa de Deus.
Dos modos instituídos por Deus para nos dar vida, vigor, coragem, e consolação, a mortificação não é nenhuma das causas imediatas disto. Eles são os privilégios de nossa adoção como filhos de Deus, dados a conhecer a nossas almas pelo Espírito Santo que em nós habita.
Mas o vigor e conforto de nossas vidas espirituais dependem muito de nossa mortificação, não como uma "causa seno qua non", mas como uma coisa que tem uma influência eficaz, porque todo pecado não mortificado debilitará alma e a privará de seu vigor, e também a cobrirá de trevas, impedindo que tenha conforto e paz.
“Não há coisa sã na minha carne, por causa da tua cólera; nem há saúde nos meus ossos, por causa do meu pecado.” (Sl 38.3).
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“Estou gasto e muito esmagado; dou rugidos por causa do desassossego do meu coração.” (Sl 38.8).
“Pois males sem número me têm rodeado; as minhas iniquidades me têm alcançado, de modo que não posso ver; são mais numerosas do que os cabelos da minha cabeça, pelo que desfalece o meu coração.” (Sl 40.12).
Uma cobiça não mortificada beberá o espírito, e todo o vigor da alma, e os debilitará para todos os deveres; porque, Desafina e esfria o coração, emaranhando seus afetos. Desvia o coração da condição espiritual que é requerida para a comunhão fervorosa com Deus; e sujeita os afetos, enquanto faz do mundo o seu objeto amado e desejável, expelindo o amor do Pai; de forma que a alma não podem dizer reta e verdadeiramente para Deus: "tu és a minha porção", tendo qualquer outra coisa que ama.
Os pensamentos são os grandes fornecedores da alma para fazer provisão para satisfazer seus afetos; e se o pecado permanecer não mortificado no coração, ele fará provisão para a carne, para satisfazer as suas cobiças.
A mortificação poda todas as graças de Deus, e abre espaço para elas crescerem em nossos corações. A vida e vigor de nossas vidas espirituais consistem no vigor e florescimento das plantas da graça em nossos corações. Agora, como você sabe, num jardim há ervas daninhas, e elas atrapalham ou mesmo impedem o crescimento sadio das cultivares. E as ervas daninhas não forem arrancadas, nossas plantas ornamentais podem até crescer, mas
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pobremente, murchando, e estando a caminho da morte. Então as ervas daninhas têm que ser procuradas, e por poucas que sejam devem ser arrancadas porque senão se multiplicarão rápida e enormemente, e arruinarão a plantação. Assim se dá com as graças do Espírito que são plantadas em nossos corações. Isso é verdade; que elas ainda permanecem num coração onde há alguma negligência de mortificação; mas elas estão prontas a morrer. O coração está como o campo do preguiçoso, tão cheio de ervas daninhas que você pode ver escassamente o milho. Um pessoa pode procurar fé, amor, e zelo, e achá-los escassamente, pela falta de mortificação do pecado, e se ele descobre que estas graças estão lá, contudo elas estão tão fracas, sufocadas por cobiças, que elas são de muito pequeno uso; realmente, elas existem mas estão prestes a morrer. Mas agora deixe que o coração seja limpo pela mortificação, sendo as ervas daninhas da cobiça constante e diariamente arrancadas; e as graças prosperarão e florescerão, sendo úteis para todo o propósito.
Este trabalho de arrancar ervas daninhas do pecado do coração é permanente, tal como se dá na natureza. O agricultor não pode deixar de vigiar e se descuidar nisto, e do mesmo modo o crente que desejar frutificar para Deus. Não há uma destruição absoluta destas ervas daninhas nesta vida. Mas elas demandam que sejam arrancadas continuamente ou então prevalecerão. De igual modo o pecado não deve ser vencido ocasionalmente, de vez em quando.
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Isto deve ser um trabalho contínuo, se desejamos prevalecer com Deus e com os homens.
Vejamos estas coisas aplicadas de modo prático. Suponha que alguém seja um crente verdadeiro, e que ainda sente uma forte inclinação para pecar, enquanto ele está convencido pelo conhecimento da lei e da vontade de Deus que faz com que seu coração fique abalado, seus pensamentos desconcertados, e sua alma enfraquecida quanto à comunhão com Deus, fazendo-lhe perder a paz e com que sua consciência seja endurecida pela falsidade do pecado. O que ele deve fazer ?
1. Como já vimos mortificar um pecado não é matar totalmente, desarraigar, e aniquilar, de modo que nunca mais voltasse a residir no nosso coração. É verdade que é isto que está apontado como objetivo; mas isto não será realizado nesta vida. Deus nos vê aperfeiçoados em Cristo, não pelo que sejamos em nós mesmo, mas por aquilo em que nós devemos estar, e que certaremos estaremos no porvir.
“e tendes a vossa plenitude nele, que é a cabeça de todo principado e potestade,” (Col 2.10).
2. A mortificação do pecado não consiste na melhoria de uma natureza quieta, tranquila. Alguns homens têm uma constituição natural que não os expõe a paixões violentas incontroláveis e afetos tumultuosos como os de muitos outros. Deixe estes homens agora cultivar e melhorar a condição natural deles e temperá-las com disciplina, consideração, e
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prudência, e eles podem parecer a eles e a outros que são homens muito mortificados, quando, talvez, os corações deles são uma poça parada mas cheia de todas as abominações. Por isso, ninguém deve tentar a sua mortificação através de tais coisas como o seu temperamento natural.
3. Um pecado não é mortificado quando é somente desviado. Simão, o Mago deixou as suas feitiçarias, mas a cobiça e ambição ainda estava ligada ao seu coração, de modo que Pedro lhe disse que estava em fel de amargura e em laço de iniquidade, e concitou-o a um verdadeiro arrependimento. Um homem pode ter consciência de ter deixado a cobiça sobre determinado objeto, mas esta pode ter sido desviada para outro. Alguém deixou a mentira mas passou a adulterar. Deixou o consumo de bebida forte, mas adquiriu outros vícios. Isto não é mortificar o pecado, mas desviar o pecado para outros alvos. É preciso ter muito cuidado com isto para que não se mude o orgulho por mundanismo, a sensualidade por farisaismo, a libertinagem por legalismo, porque assim há somente uma mudança de senhorio, mas ainda permanecemos como servos do pecado.
4. Vitórias ocasionais sobre o pecado não chegam a configura a sua mortificação.
É possível que determinados pecados sejam abandonados temporariamente pelo temor da vergonha, de escândalo, da provocação aberta de Deus que traz o temor de seus juízos. O trabalho foi feito pelo homem e não pelo Espírito, e assim não houve nenhuma
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mortificação verdadeira, que transforma realmente o coração e desvia os seus afetos do pecado para a vontade de Deus.
Há épocas em que convencidos de que seus problemas são ocasionados pelos seus pecados que muitos fazem votos de nunca mais praticarem seus antigos pecados. Fazem votos a Deus de que nunca mais voltarão a pecar. Mas isto não é mortificação do pecado tanto como no caso anterior. Primeiro, porque é preciso ter a consciência numa verdadeira mortificação que não se pode jamais fazer tal voto de que nunca mais voltará à prática de determinado pecado, porque não é a nossa decisão e poder que dá o assunto por resolvido, mas o poder do Espírito Santo, e como já vimos, não existe tal condição de aniquilação total e permanente do pecado, enquanto vivermos neste mundo.
“Com tudo isso ainda pecaram, e não creram nas suas maravilhas. Pelo que consumiu os seus dias como um sopro, e os seus anos em repentino terror. Quando ele os fazia morrer, então o procuravam; arrependiam-se, e de madrugada buscavam a Deus. Lembravam-se de que Deus era a sua rocha, e o Deus Altíssimo o seu Redentor. Todavia lisonjeavam-no com a boca, e com a língua lhe mentiam. Pois o coração deles não era constante para com ele, nem foram eles fiéis ao seu pacto.” (Sl 78.32-37). A condição do coração humano é a descrita neste Salmo e em várias outras porções das Escrituras que descrevem as elevações e quedas de Israel.
A mortificação de uma cobiça consiste em três coisas principais:
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l. Um enfraquecimento habitual disto. Toda cobiça é um hábito ou disposição que inclina o coração continuamente ao mal.
Isto demanda que se levante em guerra e oposição contra aquele hábito ou disposição.
“Amados, exorto-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências da carne, as quais combatem contra a alma;” (I Pe 2.11).
“mas vejo nos meus membros outra lei guerreando contra a lei do meu entendimento, e me levando cativo à lei do pecado, que está nos meus membros.” (Rom 7.23).
Paulo diz em Rom 6.6: “sabendo isto, que o nosso homem velho foi crucificado com ele, para que o corpo do pecado fosse desfeito, a fim de não servirmos mais ao pecado.”. O velho homem foi crucificado juntamente com Cristo para que fim ? "Para que o corpo de morte possa ser destruído", quer dizer, o poder do pecado foi debilitado, e daqui por diante nós não deveríamos servir o pecado, e ele não deve ter a mesma eficácia que tinha dantes de nos unirmos a Cristo.
E isto não é dito somente com respeito a afetos carnais e sensuais, ou desejos de coisas mundanas, não somente em relação a cobiças da carne, dos olhos, e o orgulho da vida, mas também em relação à carne, quer dizer, aquela disposição de mente que está em oposição a Deus e que por natureza reside em nós.
2. Em constante luta contra o pecado.
Davi fala no Sl 40.12 de como o pecado havia rapidamente prevalecido contra ele: “Pois
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males sem número me têm rodeado; as minhas iniquidades me têm alcançado, de modo que não posso ver; são mais numerosas do que os cabelos da minha cabeça, pelo que desfalece o meu coração.”. Ele se sentia incapaz de lutar contra isto.
Sabendo que o pecado é um tal um inimigo com o qual devemos lutar, realmente temos que vê-lo como um inimigo que deve ser destruído por todos os meios possíveis. Este inimigo deve ser conhecido, bem identificado para que possamos atacá-lo com eficácia. Devemos considerar os meios como certos pecados prevaleceram no passado, de modo que possamos nos prevenir deles no presente.
Uma das razões para que a geração de crentes da atualidade seja tão propensa ao pecado está exatamente no fato de que não somente aumentaram e se diversificaram as fontes de tentação, como também esta é uma época apressada que não é dada à meditação e à reflexão. É preciso retomar os hábitos antigos de avaliação da conduta pessoal, fazendo-se um rigoroso exame interior para que se possa descobrir e matar o pecado, submetendo-se em oração ao poder do Espírito.
3. O sucesso frequente contra qualquer cobiça é outra evidência de mortificação. Por sucesso não se deve entender uma mera não realização e prática de determinado pecado, mas uma vitória real sobre a sua fonte e cobiça que lhe dá origem. E o fato de se levar imediatamente aos pés da cruz de Cristo qualquer percepção de
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formação de imaginação que estão fazendo provisão para a carne.
Matar o pecado é o trabalho de homens vivos; onde os homens estão mortos (como todos os incrédulos, o melhor deles, está morto), o pecado está vivo, e viverá.
Matar o pecado é o trabalho da fé, o trabalho misterioso da fé. É a fé que purifica o coração (At 15.9).
Adquira um interesse em Cristo; se você pretender mortificar qualquer pecado porque sem isto, nunca será feito.
Sem sinceridade e diligência em uma obediência completa, não há nenhuma mortificação.
Veja o que diz Is 58.1-7: “Clama em alta voz, não te detenhas, levanta a tua voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a sua transgressão, e à casa de Jacó os seus pecados. Todavia me procuram cada dia, tomam prazer em saber os meus caminhos; como se fossem um povo que praticasse a justiça e não tivesse abandonado a ordenança do seu Deus, pedem-me juízos retos, têm prazer em se chegar a Deus!, por que temos nós jejuado, dizem eles, e tu não atentas para isso? por que temos afligido as nossas almas, e tu não o sabes? Eis que no dia em que jejuais, prosseguis nas vossas empresas, e exigis que se façam todos os vossos trabalhos. Eis que para contendas e rixas jejuais, e para ferirdes com punho iníquo! Jejuando vós assim como hoje, a vossa voz não se fará ouvir no alto. Seria esse o jejum que eu escolhi? o dia em que o homem
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aflija a sua alma? Consiste porventura, em inclinar o homem a cabeça como junco e em estender debaixo de si saco e cinza? chamarias tu a isso jejum e dia aceitável ao Senhor? Acaso não é este o jejum que escolhi? que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo? e que deixes ir livres os oprimidos, e despedaces todo jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desamparados? que vendo o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne?”.
Se permanecemos na carnalidade todo o nosso trabalho para agradar a Deus será em vão. Nossa devoção será falsa e abominável aos olhos do Senhor, porque estará cheia de hipocrisia. Nossas ações não concordam com as expressões de louvor da nossa boca. Não temos mortificado o pecado e nem nos esforçarmos neste sentido. Assim faziam os israelitas e por isso não podiam contar com o favor de Deus.
O esforço deles para mortificação se baseava num princípio corrupto, de forma que nunca poderia chegar a bom termo. Os verdadeiros e aceitáveis princípios de mortificação serão manifestados como ódio ao pecado como pecado, e não apenas pela inquietação ou desconforto que ele possa nos causar. Um senso profundo do amor de Cristo na cruz é também um dos princípios da verdadeira mortificação. Tudo o que entristece o Espírito de Deus e que inquieta a nossa alma deve ser devidamente considerado. Agora, se isto começar como um esforço hipócrita, como poderá o Espírito Santo
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suportar tal deslealdade e falsidade do nosso espírito ? Deus não tem revelado em Sua Palavra como Ele abomina a hipocrisia, conforme lemos no texto de Isaías anteriormente ? É preciso haver portanto obediência completa e real a Deus para que o pecado possa ser mortificado pelo Espírito. É preciso se dispor a isto, e deixar que Ele trate com todas as áreas de nossas vidas que precisam ser consertadas. De outro modo Ele não o fará porque Ele trabalha com aqueles que o adoram em espírito e em verdade. Ele é o Deus verdadeiro e não pode trabalhar com a mentira e o erro. Ele pode transformar o mentiroso e errado que se humilhe diante dEle procurando verdadeiramente por socorro, mas nada fará por aqueles que se apresentam a Ele com um arrependimento falso ou superficial, tal como fizeram os fariseus que procuravam João Batista para serem batizados por ele.
“Ora, amados, visto que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.” (II Cor 7.1). Se nós faremos qualquer coisa para Deus, nós devemos então fazer todas as coisas. Por isso Paulo afirma que a mortificação de pecados da carne e do espírito são absolutamente necessárias para quem pretende servir a Deus e obter as Suas bênçãos.
A inveteranilidade no pecado é a prática habitual do pecado. Aquilo que tem corrompido por muito tempo o coração, pode desestimular a mortificação.
“Não me compraste por dinheiro cana aromática, nem com a gordura dos teus
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sacrifícios me satisfizeste; mas me deste trabalho com os teus pecados, e me cansaste com as tuas iniquidades.” (Is 43.24).
Quando isto se prolonga por um grande tempo, tal carnalidade se torna perigosa. Quantos não se permitem permanecer por um longo tempo em práticas mundanas, em ambições, ganâncias, negligência de deveres para se ter comunhão constante com Deus, ou impureza para sujar o coração com imaginações vãs, tolas e más. Davi experimentou isto em certa época de sua vida e ele nos fala das consequências disto no Sl 38.5: “As minhas chagas se tornam fétidas e purulentas, por causa da minha loucura.”.
Feridas antigas negligenciadas e não devidamente tratadas pelo Espírito no trabalho de mortificação são frequentemente mortais, sempre perigosas. Se o pecado não for morto diariamente ele reunirá forças e se tornará cada vez mais forte.
Por isso devemos vigiar constantemente o nosso coração e examiná-lo pelo Espírito Santo, para saber se há nele algum caminho mau para ser removido.
“Examinai-vos a vós mesmos se permaneceis na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não sabeis quanto a vós mesmos, que Jesus Cristo está em vós?” (II Cor 13.5).
Estes pecados antigos são perigosos e ameaçam a paz da alma e são de difícil remoção. Assim como Jesus se referiu a determinadas castas de demônios que só são expelidas mediante jejum e oração. Tal se dá com as cobiças deste tipo. Um
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curso ordinário de mortificação não fará o trabalho, e modos extraordinários devem ser fixados para tal.
É bom lembrar que estamos falando de verdadeiros crentes, porque somente este podem mortificar o pecado. Como dissemos este é um trabalho para quem está vivo. Um descrente não pode fazê-lo, a menos que se converta e assim se torne um crente.
E falamos de pecados não como o fator que identifica um crente, mas como a parte irregenerada que permanece neles. Lembremos que o sétimo capítulo de Romanos contém a descrição de um homem regenerado. Mas ali é considerado o lado escuro dele, a parte irregenerada. Ainda que se leia o que está em Romanos 7, não é de modo nenhum a fraqueza ali descrita a parte predominante no crente fiel. Nestes, o que prevalece é a nova natureza que não tem qualquer pecado, antes se opõe ao pecado. Um homem sábio pode estar doente e ferido, e fazer algumas coisas tolas; mas um sábio não é quem está doente, ferido e que faz coisas tolas.
Quanto ao pecado um crente pode e deve dizer: “miserável homem que sou”, mas quanto à graça que lhe foi concedida pela qual pode ter vitória sobre o pecado, ele pode e deve dizer: “mas graças a Deus por nosso Senhor Jesus Cristo”.
O crente deve ser absolutamente sincero para consigo mesmo e para com Deus quanto aos seus pecados. Ele deve ter um senso claro e permanente e consciência da culpa, perigo e
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mal dos seus próprios pecados. De modo que possa estar vigilante e em constante posição de luta contra eles, apresentando-os a Deus pela confissão, para que sejam removidos.
Nunca se deve considerar deste modo: “mas não é isto um pequeno pecado?”. Porque qualquer pecado é destrutivo e deve ser igualmente mortificado conforme é da vontade de Deus.
Veja que o profeta Oseias alinha a incontinência ao lado da bebida forte como prejudicial ao entendimento: “A incontinência, e o vinho, e o mosto tiram o entendimento.” (Os 4.11).
A falta de conhecimento das consequências e males do pecado são citadas em várias passagens da Bíblia, e podemos ainda destacar dentre estas:
“Pois Efraim é como uma pomba, insensata, sem entendimento; invocam o Egito, vão para a Assíria.” (Os 7.11).
“vi entre os simples, divisei entre os jovens, um mancebo falto de juízo,”. “até que uma flecha lhe atravesse o fígado, como a ave que se apressa para o laço, sem saber que está armado contra a sua vida” (Pv 7.7,23).
Será que Davi teria ido tão longe naquele seu pecado abominável, se ele estivesse plenamente consciente das suas consequências malignas e dos juízos de Deus que sobreviriam sobre ele e sua família? Se ele tivesse o senso da culpa do seu pecado teria sido necessário que um profeta fosse até ele para convencê-lo disto? A própria Bíblia nos adverte que tudo o que foi registrado na Palavra foi para nos servir de exemplo e advertência. E deixaríamos de seguir
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sensatamente tudo aquilo que tem o propósito de nos prevenir da prática do mal, por conhecermos por antecipação quais serão as suas consequências?
Um dos grandes perigos dos pecados inveterados, aqueles que são resultantes de uma prática contumaz e antiga é o endurecimento pela incredulidade. Como lemos em Hb 3.12,13: “Vede, irmãos, que nunca se ache em qualquer de vós um perverso coração de incredulidade, para se apartar do Deus vivo; antes exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado;”. Preste atenção. É o que ele diz. Use todos os meios, considere suas tentações, vigie diligentemente; há um engano no pecado que visa ao endurecimento dos seus corações para afastá-los de Deus.
Estes pecados trazem perda de paz e força todos os dias de um homem. E ter paz com Deus, ter força para caminhar diante de Deus, é a súmula das grandes promessas do pacto da graça. Nestes coisas está a vida de nossas almas. Sem elas em alguma medida confortável, viver é morrer. Qual bem nossas vidas nos farão se nós por vezes não virmos a face de Deus em paz? Se nós não temos um pouco de força para caminhar com ele? Agora, uma cobiça não mortificada privará as almas dos homens de ambos. Este caso é tão evidente em Davi, que não necessitaríamos de nenhum outro exemplo. Com que frequência ele reclamou que os ossos da sua alma estavam quebrados, isto é, a
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estrutura do seu espírito estava destruída e não poderia mantê-lo de pé diante de Deus, a sua alma estava sem paz, as suas feridas eram dolorosas.
Temos outro exemplo em Is 57.17: “Por causa da iniquidade da sua avareza me indignei e o feri; escondi-me, e indignei-me; mas, rebelando-se, ele seguiu o caminho do seu coração.”. Em Os 5.15: “Irei, e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a minha face; estando eles aflitos, ansiosamente me buscarão.”.
Não há melhor lugar para nos conscientizarmos da culpa e das consequências dos nossos pecados do que na lei de Deus. Por isso é importante que alimentemos nossas consciências com a justiça e a santidade da lei. Que tragamos a santa lei de Deus para a nossa consciência, e que oremos para que sejamos afetados por isto. Devemos considerar a santidade, a espiritualidade, a severidade ígnea e o poder absoluto da lei, e ter o temor da palavra de Deus no nosso coração para que não pequemos contra Ele transgredindo os seus mandamentos. O olhar impuro deve ser visto como adultério tal como Jesus ensinou e devemos lembrar que o Senhor ordenou nos Dez mandamentos: “Não adulterarás”. E assim devemos proceder com todos os demais mandamentos do Senhor. Lembremos da recompensa prometida, porque o Senhor disse que aquele que guardar os mandamentos da lei será grande no reino dos céus, e aquele que não os observar será considerado mínimo.
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Lembre-se que aqueles que não têm a Cristo enfrentarão a condenação eterna exatamente por terem transgredido os mandamentos da lei, e como um crente poderia estar confortável transgredindo os mesmo mandamentos? Ainda que não venha a ser condenado com o ímpio por causa da fé em Cristo, certamente não deixará de ser submetido à correção do Senhor e sofrerá dano eterno quanto à sua recompensa futura, especialmente a relativa ao galardão.
Usemos assim a lei naquilo que é o próprio trabalho da lei de descobrir o pecado e despertar a alma para a necessidade de vencê-lo, sujeitando-se à graça de Cristo, e determinando viver obedientemente à vontade de Deus.
Se estamos mortos para a condenação da lei, e se estamos libertos da lei quanto a termos sido livrados em Cristo da sua maldição, no entanto não estamos livres da lei no sentido de vivermos de acordo com tudo o que a lei moral prescreve para todos os homens no que tange às suas responsabilidades para com Deus e para com o seu próximo.
A lei trará, como diz Davi, a nossa iniquidade diante de nós, para que possamos confessá-la a Deus e abandoná-la, com santo e reverente temor e tremor.
Devemos olhar também para o evangelho, não apenas para achar conforto e alívio, mas também para nos convencer ainda mais da nossa culpa e do nosso total imerecimento diante de Deus, porque Cristo foi humilhado e crucificado por causa dos nossos pecados, e assim devemos considerá-los com a devida
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seriedade e temor. Como abrigaremos e continuaremos na prática daquelas coisas em razão das quais o Filho de Deus teve que morrer na cruz por nós ? Devemos considerar o amor do Pai, do Filho e do Espírito e todo o trabalho deles em nosso favor, e como seríamos tão negligente em face de tão enorme graça, e como seríamos infiéis e desleais a quem nos tem amado e sido fiel até ao extremo?
Como daríamos acolhida a um tal coração endurecido pelo pecado? Antes não buscaríamos logo lugar de verdadeiro arrependimento para voltar à comunhão com Deus e andar nos Seus caminhos para o Seu inteiro agrado? Se nossa alma foi lavada pelo sangue derramado na cruz, como poderíamos praticar novas corrupções? Vamos nos esforçar para desapontar o objetivo da morte de Jesus? Vamos entristecer continuamente o Espírito que nos selou para o dia da redenção? Vamos esquecer que voltaremos com Cristo em sua segunda vinda para reinarmos com Ele em perfeita santidade e justiça? Esqueceremos que Jesus morreu exatamente para nos livrar do pecado? Que Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?
É necessário que a nossa consciência seja alimentada diariamente com estas verdades. Porque assim estaremos sempre alertas contra o pecado e teremos o temor de viver deliberadamente no pecado, que desagradará não somente a Deus, como também fará mal às nossas próprias almas.
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Lembremos que é a bondade e a misericórdia e longanimidade de Deus que nos conduzem ao arrependimento.
A menos que tudo isto seja feito, todos os demais esforços darão em nada, porque a consciência encontrará outros meios para aliviar a culpa em relação ao pecado, e a alma nunca tentará vigorosamente a sua mortificação.
Desejemos ardentemente a libertação do pecado.
Contemplemos os textos bíblicos em que isto nos é ordenado como um dever e necessidade. Como II Cor 7.11 e Rom 7.24.
Se não houver este desejo não haverá mortificação. Ore então para que o Espírito crie tal desejo no coração se ele ainda não estiver presente lá. Pedir em oração é uma das principais leis do reino de Deus. E é extremamente importante neste caso da mortificação do pecado.
Paulo orava incessantemente neste sentido em favor da igreja. Ele estava plenamente convicto de que a vontade de Deus para o seu povo é a santificação.
E quando o apóstolo falava em trazer o corpo em sujeição não estava se referindo a isto com o enfraquecimento exterior do corpo por práticas ascéticas que podem ser prejudiciais à saúde, e não é uma coisa boa em si mesma para o propósito da mortificação do pecado. Isto não tem nada a ver com ordenações carnais que não têm poder em si mesmas, porque se o tivessem, não haveria necessidade de qualquer ajuda do
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Espírito, que como já vimos é o elemento essencial na mortificação.
Este trazer o corpo à sujeição se refere a fazê-lo servo da vontade e da lei de Deus, não oferecendo os membros para a prática do pecado. E parte deste trabalho está exatamente na mortificação do pecado, que é a parte negativa, e a positiva, é o revestimento das virtudes de Cristo, a saber, do fruto do Espírito. Assim, por um lado o crente deve se despojar das obras da carne pela mortificação, e por outro revestir-se do fruto do Espírito.
É muito importante considerar para a mortificação do pecado a nossa pequenez diante da majestade e grandeza de Deus. Isto nos manterá humildes, e não permitirá que depositemos qualquer confiança na carne e em nosso próprio poder para vencer as tentações e os pecados. O meditar na grandeza do Senhor nos dará a visão adequada de que a luz de Jesus pode brilhar nas trevas mais densas do pecado e dissipá-las totalmente. Ele tem tratado com o pecado de milhões através dos séculos, e nenhum dos que nEle confiaram foram decepcionados. Isto servirá para nos encorajar a buscarmos auxílio nEle e na eficácia do Seu sangue para sermos lavados dos nossos pecados.
Nós somos como crianças limitadas em sua compreensão diante da majestade infinita do Senhor. Nossos pensamentos e concepções acerca de Deus não são perfeitos, nosso amor, honra, fé e obediência também não são perfeitos. No entanto nosso Pai aceita nossos
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pensamentos infantis porque conhece a nossa limitação. E sabedores disto nós achamos conforto na nossa angústia, por sabermos que temos um Pai perfeito que nos ama e trabalha pacientemente conosco no sentido de conduzir-nos à perfeição.
A rainha de Sabá tinha ouvido falar de Salomão, e moldou muitos grandes pensamentos da sua magnificência em sua mente; mas quando ela veio e viu a glória dele, ela foi forçada a confessar que a metade da verdade não lhe tinha sido contado. Nós podemos supor que nós atingimos aqui grande conhecimento, pensamentos claros e elevados sobre Deus; mas, quando ele nos levar à Sua presença nós clamaremos´: "Nós nunca o conhecemos como Ele é; e a plenitude da Sua glória e perfeição nunca entrarão em nossos corações".
Mas nossa falta de compreensão perfeita da grandeza de Deus e a nossa limitação não é nenhum argumento para nossa negligência e desobediência.
E além disso, o conhecimento que os crentes têm de Deus não é que ele tenha uma grande apreensão de coisas relativas à divindade, mas que ele as vê na luz do Espírito, que lhe dá comunhão com Deus, e não pensamento espreitadores ou noções curiosas elevadas.
O nosso conhecimento da própria Palavra revelada é parcial, imperfeito. Embora o modo de revelação no evangelho seja claro e evidente, contudo nós sabemos poucas cousas que são nele reveladas. Por isso o Espírito chama alguns para serem mestres da Palavra, mas até mesmo
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nestes o conhecimento não é completo e perfeito. Isto não aponta para a verdade de que a nossa dependência do Senhor é total? Que não podemos abrir mão da nossa comunhão com Ele? Nós somos tardos e duros de coração para entender as coisas que estão reveladas na Palavra de Deus.
Uma outra diretriz importante para a mortificação é que não fiquemos em paz conosco até que Deus mesmo nos fale de paz. E Ele certamente não falará enquanto estivermos vivendo no pecado.
A paz é um fruto doce que é colhido por aqueles que têm paz de consciência e que vivem em paz com Deus.
Não devemos portanto comerciar com isto e enganar as nossas próprias almas. Não devemos de modo algum pensar em subornar nossos próprios espíritos dizendo-lhes que podem descansar em Deus enquanto abrigamos qualquer tipo de pecado. Não digamos portanto paz quando não há paz.
A paz que temos com Deus por meio da fé em Jesus Cristo, por causa da justificação que nos reconciliou com Deus, diz respeito à nossa união com Ele pela quebra da barreira de separação que havia entre o pecador e o Criador. Mas a paz de que falamos não é objetiva como a referida em Rom 5.1, mas subjetiva. A paz que se sente no coração por se ter uma boa consciência e uma fé não fingida. A paz que é resultante de fazermos aquilo que é agradável a Deus, e que é referida no ensino de Fil 4.4-9: “Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai-vos.
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Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor. Não andeis ansiosos por coisa alguma; antes em tudo sejam os vossos pedidos conhecidos diante de Deus pela oração e súplica com ações de graças; e a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai..O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso praticai; e o Deus de paz será convosco.”. Observe que o apóstolo interpõe condições de obediência para que haja paz com Deus.
Devemos portanto nos precaver de uma falsa paz que seja decorrente de nossas conclusões e convicções racionais.
Em Jer 6.14 lemos: “Também se ocupam em curar superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz.”. Se a ferida do pecado não for curada corretamente, não pode haver paz. Não podemos dizer vão em paz para os seus lares, com a bênção do Senhor, quando estão vivendo ainda no pecado. Isto deve ser primeiro tratado pela confissão e pelo perdão abundante que há na graça de Cristo, para que possa haver paz.
É preciso curar a ferida do pecado porque Deus nos justificará de nossos pecados, mas ele não justificará o menor pecado em nós.
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Uma outra diretriz para a mortificação é a fé em Cristo.
Fé particularmente nos benefícios da morte de Cristo para remover o pecado, conforme se lê em Rom 6.3-6:
“Ou, porventura, ignorais que todos quantos fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados com ele pelo batismo na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida. Porque, se temos sido unidos a ele na semelhança da sua morte, certamente também o seremos na semelhança da sua ressurreição; sabendo isto, que o nosso homem velho foi crucificado com ele, para que o corpo do pecado fosse desfeito, a fim de não servirmos mais ao pecado.”.
O grande remédio para as almas enfermas por pecados é o sangue de Cristo. E a fé é quem fixa o trabalho de Cristo para a mortificação do nosso pecado.
E neste trabalho a fé atua de vários modos:
Fé na plenitude que está em Cristo para nossa provimento para destruição de todo e qualquer pecado.
Aumento de fé no coração de uma expectativa de alívio em Cristo. Tal como lemos em Hc 2.3: “Pois a visão é ainda para o tempo determinado, e se apressa para o fim. Ainda que se demore, espera-o; porque certamente virá, não tardará.”. Embora o livramento do pecado possa parecer demorado, haverá no coração a expectativa e a
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certeza de fé de que o Senhor agirá em nosso favor.
A mortificação de qualquer pecado sempre será por uma provisão de graça. De nós mesmos nós não podemos fazer isto, porque agradou ao Pai que toda a plenitude habitasse em Cristo (Col 1.19). É a expectativa da fé que fixa o coração neste trabalho. Não é uma espera inativa, infundada de que estamos falando.
Uma fé verdadeira nos levará a trabalhar pelo objetivo proposto no nosso coração, seja para vencer o pecado, seja para fazer o trabalho que nos foi designado por Deus. Aquele que for chamado para o ministério, se preparará. E a fé será provada pelo trabalho que estivermos fazendo. Noé provou sua fé na construção da arca. Abraão peregrinando em Canaã e lutando contra os seus inimigos. A fé não é portanto sem obras, senão é morta, inexistente. A fé não é inativa, contemplativa, mas é o que nos leva à ação plena, ousada e corajosa. A fé não pode estar no preguiçoso, porque ela demanda diligência e esforço.
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5 – Richard Sibbes
A Porção do Cristão – Como a Morte se nos Tornou uma Coisa Boa e Nossa Richard Sibbes produziu um comentário excelente sobre a passagem de I Coríntios 3.21-23, do qual pretendemos apresentar algumas citações, tendo em vista a grande a extensão do seu texto. No momento, enfocaremos apenas parte dos comentários de Sibbes nos quais ele demonstra como a morte física é também parte da porção do cristão, não mais como um inimigo, mas como um amigo.
“1Co 3:21 Portanto, ninguém se glorie nos homens; porque tudo é vosso:
1Co 3:22 seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso,
1Co 3:23 e vós, de Cristo, e Cristo, de Deus.” Sibbes começa argumentando que não é bom agir como estavam fazendo os coríntios, ou seja, colocando a confiança deles nos assuntos da fé, em outros homens sujeitos às mesmas fraquezas que eles. Isto porque esta atitude nunca é sem algum prejuízo ou perigo em relação a Cristo, que deve em todas as coisas ter a primazia. Como estas preferências em honra costumam produzir facções, então o apóstolo afirmou:
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"ninguém se glorie nos homens." E ele acrescentou uma razão para não nos gloriarmos em outros, a saber, que tudo é nosso em Cristo. Estamos aperfeiçoados e enriquecidos nele, de modo que não dependemos do favor de ninguém nas questões relativas à fé, ao nosso crescimento e bem-aventurança espiritual. Todos os dons dos apóstolos e dos mestres não eram para si mesmos, mas recebidos de Cristo para o benefício da igreja. E isto não mudou em relação a cada geração de cristãos. Sibbes assim se expressou: "a vida e a morte são vossas." O que precisamos duvidar de outras coisas, quando a morte é nossa? Aqui há também uma gradação: "Tudo é nosso". Nós somos de Cristo, e Cristo é de Deus. A gradação é para cima e para baixo. Deus desce até nós. Tudo é do Pai, e de Cristo o mediador, para o homem, e por amor do homem para a criatura. A gradação é: “Nós somos de Cristo, e Cristo é de Deus." O que torna a concatenação abençoada, ou o encadeamento e ligação de coisas aos sábio e grande Deus. Todas as coisas procedem dele, e são realizadas nele novamente, e assim como elas vêm de um, então eles acabam em um. Como um círculo começa e termina em um ponto, então tudo vem de Deus e termina em Deus. Nisto consiste o dote que a igreja tem por seu casamento com Cristo. Ele é o maior rei que sempre existiu, e ela é a maior rainha, porque Cristo é o Senhor dos céus e da terra, e de todas as coisas, e sua propriedade é tão grande quanto a dele. "Todas as coisas são suas, etc”.
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Tudo o que possa vir, para o presente ou para o futuro, "tudo é vosso". Então nossa própria vida é nossa, enquanto vivemos com o propósito de ter uma vida melhor (em tudo deve ser entendido como sendo o propósito para a felicidade), que é a única vida. Esta vida presente não é senão uma nuvem que passa, mas temos um mundo de vantagens nesta vida, para obter a garantia de uma melhor. Esta vida, na verdade, é apenas um pequeno ponto de tempo entre duas eternidades, antes e depois, mas é de grande consequência, e que nos é dada para ter uma vida melhor, para que a glória possa ser iniciada em graça, para que possamos ter mais amplamente suprida aqui a nossa entrada no reino dos céus, como Pedro afirma em 2 Pedro 1.11. A vida é nossa, porque o tempo que vivemos aqui é um tempo de sementeira. Esta vida nos é dada para fazer um grande número de coisas boas para a colheita que nos está reservada para o mundo vindouro, e quando fizemos a obra que Deus nos deu para fazer, somos reunidos aos nossos pais. Um bom cristão, quanto mais tempo ele vive, mais semeia para o Espírito. É portanto, uma coisa abençoada para um homem temente a Deus viver muito tempo. Todos os seus pecados são expurgados, e nunca serão colocados em sua conta. E todas as suas boas ações estão registradas em memória para o seu galardão, ainda que seja um copo de água fria, Mat 10.42.
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Não há um suspiro, nem uma lágrima, que não esteja registrado. Assim, quanto mais vive um homem piedoso, mais rico ele será em boas obras, e terá a sua porção na glória do porvir. Esta vida é, por assim dizer, a sementeira do céu. Realmente é o céu o verdadeiro paraíso de todas as plantas de Deus, mas elas devem ser plantadas primeiro aqui, e por isso a Igreja é chamada de o reino dos céus, porque somos plantados aqui pela primeira vez. Agora, quanto à morte. Se a vida não for nossa para o bem, a morte nunca será nossa para o mesmo fim. Aquele que não faz um bom uso da vida, nunca terá a morte para ser o seu conforto, porque em vez de ser uma entrada no céu, ela abrirá um porta para o inferno. Mas se a vida é nossa, e nós fizemos uma abençoada melhoria da mesma, então a morte também será nossa. E “bem-aventurados os que morrem no Senhor”, Apo 14.13. É uma coisa estranha que a morte deva ser nossa, que é uma coisa hostil destruidora da natureza, o rei do medo como diz a Escritura em Jó 18.14; e o terrível de todos os terríveis, como diz o filósofo, "o último inimigo", como diz Paulo, 1 Coríntios 15.26. A morte é nossa de muitas maneiras. É uma peça de nossa provisão, porque estas palavras contêm a provisão da igreja. A Igreja é esposa de Cristo. "Todas as coisas são de Cristo", e, portanto, todas as coisas do cônjuge, e entre outros dons particulares dados para a igreja, a morte é um deles. Mas esta morte no evangelho é voltada para outra coisa. É uma morte inofensiva. O ferrão foi
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extraído. Assim, pois, perdeu todo o seu veneno em Cristo. Aquilo que é maligno e nocivo à morte é tirado. O que é o veneno e o aguilhão da morte? É o pecado. Agora este é perdoado em Cristo. Mas não é suficiente para a graça de Deus, que a morte não deve nos ferir. Não, de fato, ela é nossa, ela tende ao nosso benefício de muitas maneiras. Em primeiro lugar, ela nos desveste desses trapos, destes corpos doentes e fracos, desta ocasião tão inquietante para as nossas almas. Ela derruba este tabernáculo, ela joga fora nossos velhos trapos, e nos coloca um novo manto de imortalidade, e as vestes de glória. Ela termina tudo o que é mal. Tudo está encerrado na morte. É o fim do mal. Ela coloca um fim em todos os nossos labores, em todos os nossos problemas e tristezas. Então, o trabalho maldito de todos os nossos pecados (que são a causa da tristeza) terá um fim. "Bem-aventurados os que morrem no Senhor, que descansam dos seus trabalhos," Apo 14.13. Não há descanso até que estejamos mortos. A morte é a realização de nossa mortificação. Ela nos liberta de homens ímpios, e nos coloca fora do alcance de Satanás. Este mundo é o reino de Satanás, mas quando tivermos ido, ele nada mais tem a ver conosco. O pecado trouxe a morte, e agora a morte põe fim ao pecado, nós não seremos mais perturbados por Satanás ou suas tentações, o que é um grande privilégio. E, então, a morte é uma passagem para outro mundo. É o portão de glória e felicidade eterna. É o começo de tudo que é bom, que é para
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sempre e eternamente bom. Nossa morte é nosso aniversário. Com efeito, a morte é a morte em si, a morte é a morte da morte. Porque quando morremos, começamos a viver, e nós nunca vivemos de fato até morrer. Pois o que é esta vida? Ai de mim! é uma morte. Todos os dias em que vivemos, uma parte da nossa vida é tirada. Morremos a cada dia, 1 Coríntios 15.31. Quanto mais vivemos, menos da nossa vida temos para viver. A vida no céu começa com a morte. A morte é o aniversário desta vida de imortalidade, e que é somente a vida que pode realmente ser chamada de vida. Quando Cristo veio morrer para comprar a vida, não era essa vida triste na terra, mas a vida no mundo vindouro, aquela vida de glória imortal, e assim o dia da morte é o aniversário desta vida. E para os nossos corpos, eles são, senão aperfeiçoados pela morte, e enchidos, como vasos lançados no fogo, para serem moldados, para serem vasos mais gloriosos depois. A morte é nossa em todos os sentidos. Ela é o nosso maior amigo sob a máscara de um inimigo. Assim ainda tudo quanto Satanás possa sugerir em contrário, a morte é nossa, nosso amigo que era o nosso inimigo; uma coisa boa que era um doente. Assim como as tentações e tribulações que contribuem para o nosso aperfeiçoamento, não sendo coisas boas em si mesmas, mas extremamente úteis para o nosso bem-estar eterno. Satanás abusa da nossa imaginação, ampliando o bem do mal, e o mal do bem. Mas, na realidade,
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a morte, e tudo o que abre caminho para ela, a doença e a miséria, são nossos; fazem-nos bem, eles nos tornam aptos para o céu. Portanto, a morte é nossa. É um bom mensageiro, que traz boas notícias quando chegar. Posto isto, é que o sábio diz: "O dia da morte é melhor do que o dia do nascimento", Ecles 7.1. Quando nascemos, entramos em miséria, quando morremos, saímos da miséria para a felicidade. É melhor sair da miséria do que vir para ela. Se o dia da morte é melhor do que o dia do nascimento de um cristão, certamente então a morte é deles. Põe um termo final em tudo o que é miserável, e é um terminal onde começa tudo de bom. Não há nada no mundo que nos traga tantas coisas boas como a morte. Ela termina tudo o que é mal tanto do corpo e da alma, e ela começa a felicidade que nunca terá um fim. Então por que devemos nos assustar e ficar atemorizados demais na mensagem da morte, como se fosse uma coisa tão terrível? Por que devemos ter medo daquilo que é uma parte da nossa porção eterna? Por que devemos ter medo daquilo que é amigável para nós e que nos trará tantas coisas boas? Rogo-lhes, portanto, vamos nos colocar contra aqueles tempos sombrios onde a morte será apresentada a nós como uma coisa feia e triste. É assim a natureza de fato, mas pela fé, a morte se tornou amável. Na verdade, como eu disse, não há nada no mundo que nos faça tanto bem como a morte, porque é o melhor médico. Ela
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cura todas as doenças de qualquer natureza da alma e do corpo. E, na verdade, para calar a boca dessa morte, ela é o ponto de morte e destruição de si mesma, pois depois da morte não há mais morte. Ela é consumida por si mesma. Pela morte, vencemos a morte. "Nós nunca poderemos morrer mais", Rom 6.9. Nós estamos livres de todas as mortes. Portanto, ter medo da morte, é ter medo da vida, ter medo da vitória, pois nós nunca venceremos a morte até que morramos. Assim, as coisas presentes, sejam elas boas ou más, elas são nossas, para nos ajudar no estado de graça, e para nos preparar para o estado de glória.
“seja a vida, seja a morte, sejam as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso,” (I Cor 3.22) Tudo o que é deste tempo presente, seja bem ou mal, é nosso, para o nosso conforto em nossa peregrinação e passagem para o céu. Deus é tão bom para com os seus filhos, que ele não somente lhes faz uma reserva para a felicidade deles em outro mundo, como também lhes faz um caminho confortável para o céu. As coisas presentes são deles. Eles podem apreciá-las com conforto, pois eles têm liberdade para desfrutar de todas as coisas, para o seu refrigério etc. "Todas as coisas são puras para os puros”, Tito 1.15. "Toda criatura de Deus é boa, sendo recebida com ações de graças e oração", 1 Tim 4.4. Temos liberdade para usá-las,
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mas isto tem que ser feito com oração e ação de graças. Assim, embora tenhamos liberdade de usar as "coisas presentes," deve haver uma utilização santificada delas. Devemos ir a Deus para achar a graça de usá-las bem; tudo deve ser santificado pela oração e ação de graças. E como as coisas boas, as coisas más presentes também são nossas. As aflições são nossas, porque elas se destinam a produzir em nós um estado mais feliz; elas exercem o que é bom em nós, e mortificam o que está doente. Elas são santificadas para subjugar aquilo que é ruim em nós, e para aumentar o que é bom, e nos tornar mais habilitados para a glória. Quem é mais capaz de glória, do que aquele que tem sido afligido neste mundo? Para quem é de fato o céu, senão para o homem que tem sido afligido na vida, num curso de conflito com o mundo e com suas próprias corrupções? O céu é um lugar de felicidade na verdade para ele. Portanto, as coisas más são nossas, porque adoçam a felicidade por vir, e nos tornam mais capazes e mais desejosos dela. Assim, tanto as coisas boas quanto as más, no presente, são nossas. Nunca houve um homem que pudesse afirmar que ele aprendeu a paciência por um caminho diferente do sofrimento. Assim, as coisas presentes, sejam elas boas ou más, são nossas, para nos ajudar no estado de graça, e para nos preparar para o estado de glória.
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Tradução de citações do tratado de Richard Sibbes, intitulado A Porção do Cristão, em domínio público.
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“porque tudo é vosso: ... seja a vida, seja a morte,” (I Cor 3.22) Quando a morte se aproxima, e a consciência se sente culpada, haverá uma confluência de um mundo de dor, ou seja, um julgamento do pecado; haverá um indiciamento diante de Deus para juízo; quando haverá doenças, e enfermidades do corpo, e uma privação de todos os confortos do mundo. Eles irão se encontrar em um centro, em um ponto, no momento da morte; mas o homem tinha necessidade de reunir o maior conforto para aquela hora; e o que deve nos confortar, então? Há um doce conforto em Rom 8.38,39, que nem a vida, nem a morte, nem coisas presentes, nem coisas do porvir, serão capazes de nos separar do amor de Deus em Cristo. É um conforto doce, que nada poderá nos separar, mas este é um maior conforto, a saber, que a morte, agora estando nós em Cristo, é também nossa. Ela não deve, não somente nos separar de Deus e da felicidade, mas deve nos trazer para junto de uma comunhão mais íntima com Deus e com Cristo, pois é uma separação que causa uma união mais íntima; a separação da alma e do corpo causa a união da alma com Cristo, no presente, e depois uma união eterna da alma e do corpo nesta abençoada fruição dele. Agora, bendito seja Deus por Jesus Cristo, que tem feito nele com que até mesmo a morte, a coisa mais amarga de tudo, seja doce para nós.
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Tradução de citações do tratado de Richard Sibbes intitulado a Porção do Cristão, em domínio público.
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Os Três Ofícios de Cristo Primeiro de tudo, ele é um profeta. Quando ele foi batizado o Espírito foi posto nele, como se vê em Isaías 61.1, para proclamar libertação aos cativos. Primeiro, ele pregou que foi por isso que ele veio ao mundo, porque Deus o enviou, e revelou ao mundo o estado em que se encontrava, e quando ele havia pregado como um profeta, então, como um sacerdote, ele morreu, e se ofereceu como sacrifício. Após a sua morte o seu ofício de rei ficou mais evidente. porque ele se levantou outra vez como um rei triunfante sobre a morte e sobre todos os nossos inimigos, e subiu em sua triunfante carruagem para o céu, e lá ele se encontra gloriosamente como um rei em seu trono à mão direita de Deus. Assim, embora tivesse sido batizado, e antes, quando ele foi santificado no ventre de sua mãe, ele era ao mesmo tempo rei, sacerdote e profeta, mas no que diz respeito à ordem de manifestação, ele se manifestou primeiro como um profeta, em segundo lugar, como um sacerdote, e em terceiro lugar, como um rei. Porque seu ofício real foi visto raramente na ocasião da sua humilhação; às vezes ele fazia milagres para mostrar que ele era governador e comandante da terra, mar, demônios, e tudo o mais, mas a gloriosa manifestação de seu ofício real, foi depois de sua ressurreição.
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Agora, o fundamental, o ofício principal para o qual ele foi ungido pelo Espírito, do qual os demais dependiam, foi o seu ofício sacerdotal; porque importava que deveria sofrer por nós para o benefício que temos da nossa reconciliação com Deus, pelo seu sacrifício, da libertação da ira de Deus, e direito à vida eterna, por sua obediência para a maldita morte de cruz. E como ele veio para ser um rei para reinar sobre nós por seu Espírito Santo, e ter um direito sobre nós, então, como um sacerdote, ele morreu por nós em primeiro lugar; ele nos lavou com o seu sangue, ele nos purificou com o seu sangue, e nos fez reis e sacerdotes para Deus. Todos os outros benefícios vieram desta purificação de nossas almas em seu sangue, em primeiro lugar. Tudo o que temos de Deus, é especialmente a partir da grande obra de Cristo como sacerdote humilhando a si mesmo, e morrendo por nós, e após isso ele vem a ser um profeta e um rei. Assim, vemos a ordem dos ofícios de Cristo, como eles vêm a ser benéficos para nós. Note este propósito: o ofício sacerdotal de Cristo, seu sacrifício por nós inclui dois ramos. Um sacerdote deve oferecer sacrifícios e orar pelo seu povo. Nosso Salvador fez ambos nos dias de sua humilhação: em sua oração sacerdotal em João 17, ele, como sacerdote, se ofereceu a Deus como sacrifício, antes de morrer, e agora ele está no céu intercedendo por nós.
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Deus ungiu a Cristo para ser profeta, sacerdote e rei, para tirar os males aos quais estamos sujeitos, de modo que temos uma oferta para tudo o que possa de qualquer maneira nos humilhar e nos lançar para baixo, na todo-suficiência que está em Cristo Jesus, que foi ungido com o Espírito para este fim. Tradução feita pelo Pr Silvio Dutra, de parte de um texto de Richard Sibbes, em domínio público.
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6 – Thomas Manton
O Propósito e o Modo de se Buscar a Deus
Tradução e adaptação elaboradas pelo Pr Silvio Dutra, de citações extraídas do comentário de autoria de Thomas Manton, sobre o Salmo 119.2.
“Bem-aventurados os que guardam os seus testemunhos, que o buscam de todo o coração.” (Salmo 119.2)
Neste salmo o homem de Deus começa com uma descrição do caminho para a verdadeira bem-aventurança. No primeiro verso o homem bem-aventurado é descrito pelo curso de suas ações, "Bem-aventurados os retos em seus caminhos." Neste, pela estrutura de seu coração: “Bem-aventurados os que guardam os seus testemunhos, que o buscam de todo o coração." O princípio interno das boas ações é a verdade e a pureza do coração.
Aqui você pode constatar duas marcas de um homem bem-aventurado:
1. Eles guardam os Seus testemunhos.
2. Eles o buscam com todo o coração .
Doutina 1. Aqueles que mantêm estreita vigilância dos testemunhos de Deus são abençoados.
A título de explicação, duas coisas são percebidas:
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1. A noção de que é dada aos preceitos e conselhos na palavra: eles são chamados de seus testemunhos.
2. Guardar estes testemunhos é o que concerne ao homem bem-aventurado.
Primeiro, a noção pela qual a palavra de Deus é expressada é testemunho, por isto se entende toda declaração da vontade de Deus, em doutrinas, mandamentos, exemplos, ameaças e promessas. Toda a palavra é o testemunho que Deus tem revelado para a satisfação do mundo sobre o caminho da sua salvação.
Agora, porque a palavra de Deus se apresenta em duas partes, a lei e o evangelho, esta noção pode ser aplicada a ambos. Em primeiro lugar, à lei, no que diz respeito à "arca do testemunho" Êxodo 25.16, porque as duas tábuas foram colocadas nela, o evangelho também é chamado de testemunho, "o testemunho de Deus acerca de seu Filho”: Isa 8.20, "À lei e ao testemunho", onde testemunho parece ser distinguido da lei. O evangelho é assim chamado, porque Deus tem testificado nele como o homem deve ser perdoado, reconciliado com Ele, e obter o direito à vida eterna. Precisamos de um testemunho neste caso, porque isto é mais desconhecido para nós. A lei foi escrita no coração, mas o evangelho é um estranho. A luz natural discernirá algo da lei, e levantar assuntos que são de uma estirpe moral, mas as verdades evangélicas são um mistério, e dependem somente do testemunho de Deus acerca de seu Filho. E sob o evangelho este testemunho é gravado no coração e não em
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tábuas de pedra, como na dispensação da lei. Por isso permanece o testemunho em mistério enquanto o homem não nascer de novo, recebendo o testemunho do Espírito em seu coração.
Agora, a partir dessa noção de testemunhos temos esta vantagem:
[1] Que a palavra é uma declaração completa da mente do Senhor. Deus não nos deixa no escuro nas questões que dizem respeito ao Seu serviço e à salvação do homem. Ele nos deu o seu testemunho, ele nos revelou a sua mente, o que ele aprova e o que ele não permite, e em que condições ele vai aceitar os pecadores em Cristo. É uma coisa abençoada que não somos deixados à incerteza de nossos próprios pensamentos: Miqueias 6.8, "Ele te mostrou, ó homem, o que é bom." A maneira de agradar e desfrutar de Deus é claramente revelada na sua palavra. Podemos saber o que devemos fazer, o que podemos esperar, e sob que termos. Nós temos o seu testemunho.
Todavia esta revelação permanecerá em oculto àqueles sobre cujos olhos permanece o véu da incredulidade por recusarem a Cristo.
[2] Outra vantagem que temos por esta noção é a certeza da palavra, é o testemunho de Deus. O apóstolo diz, I João 5.9, “Se tomarmos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior". E Deus dá este testemunho em nossos corações pelo Espírito Santo. Isto é a razão porque deveríamos dar muito mais valor ao testemunho de Deus do que o que damos ao testemunho de homens, que são falíveis e
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enganadores. Entre os homens, "na boca de duas ou três testemunhas, tudo está estabelecido", Deut 19.15, “Agora, quanto a Deus, há três que dão testemunho no céu, e três que dão testemunho na terra", 1 João 5.8. Estamos aptos para duvidar do evangelho, e ter pensamentos suspeitosos de uma tal excelente doutrina, mas agora existem três testemunhas no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito, o Pai por uma voz: Mat 3.7: "E eis que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado", etc. E o Filho também por uma voz, quando ele apareceu a Paulo do céu: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” E o Espírito Santo deu o seu testemunho, ao descer sobre ele na forma de uma pomba, e sobre os apóstolos em línguas de fogo. "E três são os que testificam na terra," pois ele diz: 1 João 5.10, "Aquele que crê, tem o testemunho em si mesmo." O que é isso? O Espírito, a água e o sangue, no coração de um cristão, estes dão testemunho do evangelho. O Espírito dá testemunho do evangelho quando ilumina o coração, o que nos permite discernir que a doutrina é de Deus, para discernir essas assinaturas e personagens de majestade, bondade, poder, verdade, que Deus tinha deixado acerca do evangelho, e água e sangue testemunham quando sentimos esses efeitos constantes e sensíveis do poder de Deus que vem com o evangelho (1 Tes 1.5), tanto por pacificar a consciência, e trazendo alegria e satisfação, e por santificar e libertar o homem da escravidão do pecado. A água significa santificação: João 17.17, "Santifica-os na tua verdade." O poder santificador de Deus, que vai
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junto com o evangelho, é uma confirmação clara do testemunho divino nele: João 8.32, "A verdade vos libertará." Pelo nosso desembaraçamento da luxúria chegamos a ser confirmados na verdade. O testemunho de Deus é a resolução final da nossa fé. Por que cremos? Porque é o testemunho de Deus. Como sabemos que é o testemunho de Deus? Ele o evidenciou pela sua própria luz nas consciências dos homens, mas Deus para a maior satisfação para o mundo, nos deu testemunhas, três no céu e três na terra.
Cada manifestação de Deus tem naturezas assinadas por Ele, personagens de Deus suficientes sobre elas para mostrar de onde vieram. A criação é uma manifestação de Deus; agora, quem olha para a mesma de modo sério e com consideração, pode encontrar Deus lá, pode segui-lo por suas pegadas, “Pelas coisas que são feitas, o seu ser invisível e poder." Rom 1.20. A criação se revela ser de Deus, e se o menor testemunho tem evidências claras, muito mais o do evangelho. Por quê? Porque Ele engrandeceu a sua palavra acima de tudo, o seu nome, Sl 138.2. O nome de Deus é aquele pelo qual ele é conhecido. Agora, há mais caracteres sensíveis e impressões de Deus deixados na sua palavra, que é a evidência da sua procedência divina, do que em qualquer outra parte.
[3] Esta vantagem que temos por esta noção, um testemunho é um motivo de auto-exame, ou a regra segundo a qual podemos julgar o nosso estado e as nossas ações, pois testifica não apenas de acordo com a lei, quanto ao que
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devemos fazer, ou nas situações da vida, o que podemos esperar, e se de fato fazemos o bem ou o mal, o que somos e o que podemos esperar da parte de Deus quanto à nossa obediência ou desobediência: Mat 24.14, "O evangelho do reino será pregado em todo o mundo, para testemunho a todas as nações," primeiro para elas, depois, contra elas, Marcos 13.9. A palavra é um testemunho para eles da vontade de Deus em Cristo, se a recebem; contra eles se eles a rejeitam, negligenciam, ou não creem nela. Por este meio podemos julgar a nossa condição pela nossa conformidade, ou não conformidade e contrariedade, à palavra de Deus. Cristo diz quanto ao dia do juízo, que Moisés vai acusá-lo: João 5.45, "Há um que vos acusa, Moisés, em quem vós esperais.” Por causa do evangelho virá a acusação. O que é agora uma oferta, então, será uma acusação. Deus não vai ficar sem uma testemunha no dia do julgamento. As criaturas, que tiveram uma impressão evidente de Deus sobre elas, vão testemunhar contra os gentios, de modo que eles fiquem inescusáveis. Rom 1.20, e os judeus, que estavam sob a dispensação de Moisés, ele vai acusá-los, não havia luz suficiente para convencê-los. Assim, o evangelho, que é o testemunho de Deus acerca de seu Filho, irá acusá-los se não for recebido. Portanto, é bom ver sobre o que a palavra dá testemunho; Acaso ela testemunha o bem ou o mal? de conformidade com o que deve ser tratada no dia do julgamento. É triste quando só podemos dizer da Escritura como os parentes do profeta do Senhor, "Ela nada testifica, senão o
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mal contra mim", I Reis 22.8. Vamos ver o que o testemunho de Deus fala, se ele vai interceder por nós ou contra nós no grande dia do Senhor.
[4] Ela repreende a nossa incredulidade, que quando Deus tem não somente nos dado uma lei, mas um testemunho, ainda estamos recuando e descuidados, a palavra de Deus não era mais, senão uma lei, que foram obrigados a obedecê-la, porque nós somos suas criaturas, mas quando é o seu testemunho, devemos considerá-lo ainda mais, pois agora Deus não se levanta somente sobre a honra de sua autoridade, mas da sua verdade: I João 5.10 "Aquele que não crê faz Deus um mentiroso, porque não crê no testemunho que tem dado a respeito de seu Filho." Podemos considerar isto em nossos corações - Oh! devemos fazer de Deus um mentiroso, depois de haver tão solenemente dado sua palavra, essa palavra que tem muitas assinaturas, personagens e selos de Deus sobre ela? Descuido agora não é somente desobediência, mas incredulidade; isto coloca uma maior afronta em Deus, questionar sua veracidade e sua verdade, e não apenas rejeitar o Seu senhorio, mas impiamente fazer dele um mentiroso.
Em primeiro lugar, o testemunho do Senhor.
Em segundo lugar, o respeito do homem bem-aventurado por estes testemunhos, em guardá-los. O que significa guardar os testemunhos de Deus? Guardar é uma palavra que se refere a um encargo ou confiança atribuídos a nós. Cristo confiou os seus testemunhos a nós como uma confiança e um encargo dos quais devemos
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cuidar. Olhe, o quanto comprometemos de nossa parte a Cristo, o encargo de nossas almas para serem salvas em seu próprio dia, 2 Tim 1.12, assim também Cristo nos encarregou da sua palavra,
(1) Para colocá-la em nossos corações.
(2) Para observá-la em nossa prática. Isto é, para guardar a palavra.
[1] Para colocá-la em nossos corações. No coração duas coisas são consideradas - a compreensão e os afetos. Deus se compromete na aliança com ambos: Heb 8.10: 'Vou colocar a minha lei no seu entendimento, e escrevê-la em seus corações." O significado é que ele vai iluminar as nossas mentes para a compreensão da sua vontade, e enquadrar nossos afetos à obediência da mesma. Bem, então, você deve guardá-la em suas mentes e afetos.
(1) Em suas mentes. Devemos entender a palavra de Deus, aceitá-la; devemos focá-la frequentemente em nossos pensamentos, e observá-la em todas as ocasiões. Devemos compreendê-la, se quisermos ser bem-aventurados: "Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama", João 14.21. Nós não podemos ter consciência de obediência até que saibamos o nosso dever. Aquele que deveria guardar uma coisa deve primeiro tê-la; temos a posse da lei quando chegamos ao seu conhecimento: Mat 13.23, “Aquele que recebe a palavra em boa terra é o que ouve a palavra e a compreende;” e Lucas 8.13, “os que ouvem a palavra e guardam, estes dão fruto com perseverança." Não é o suficiente
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ouvir a palavra, mas é preciso entendê-la, e ainda isso não é tudo: um adversário pode compreender a verdade, ou então ele não poderá racionalmente se opor a ela. É necessário consentimento, que nós cremos na palavra como sendo o testemunho de Deus e, consequentemente, abraçá-la e dar-lhe o devido lugar no coração. A fé é a recepção da palavra, Atos 2.41, ou melhor, "temos de tê-la pronta em todas as ocasiões. A memória racional pertence à mente ou entendimento, por isso guardamos a palavra em nossas mentes quando a mesma está sempre pronta conosco, seja para verificar o pecado, ou para avisar quanto ao nosso dever, Sl 119.9. Esquecimento é uma ignorância desta época: Prov 3.1: “Meu filho, não esqueça a minha lei, e deixa o teu coração guardar os meus mandamentos." Devemos estar preparados para toda boa obra e palavra, quanto a ocasião seja oferecida a nós.
(2) Guardá-la em nossos corações é ter afeto por ela. Guardar a palavra relaciona-se com a nossa prudência e ternura para com ela, quando somos prudentes com a palavra como um homem seria com uma joia preciosa: Prov 6.20,21: "Filho meu, guarda o mandamento de teu pai e não deixes a instrução de tua mãe; ata-os perpetuamente ao teu coração, pendura-os ao pescoço.”. Às vezes, faz alusão à menina dos olhos: Prov 7.2, “Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos" Devemos ter tais ternas afeições com os testemunhos do Senhor, como um homem tem para com o seu olho. A menor ofensa ao olho é
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problemática; um homem deve ser tão cauteloso em relação ao mandamento quanto ele seria em relação ao seu olho. Às vezes, isso implica a semelhança de manter o caminho: Josué 1.7, “Não te inclines nem para a direita nem para a esquerda." Um viajante é muito cuidadoso para manter a sua rota, por isso quando estamos assim, atenciosos, sensíveis e cautelosos para com os mandamentos e testemunhos de Deus, este é um argumento de uma condição bem-aventurada. Assim, devemos guardá-los no coração.
[2] Estamos observando na prática; Lucas 11.28, “Sim, bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus, e a guardam"; isto é, que não apenas a ouvem, mas que a praticam. Muitos têm esta palavra em sua mente e memória, mas não em suas vidas. Sem isso, o ouvir nada é; gosto, conhecimento, aprovação, afeição fingida é tudo em vão: 1 João 2.4, "Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele." Nossas ações são uma melhor revelação dos nossos pensamentos do que nossas palavras. Quando temos um pequeno conhecimento, e fazemos uma pequena profissão de fé, pensamos que observamos os seus mandamentos, mas seremos mentirosos se não formos retos no nosso caminhar íntimo com Deus. Não é o suficiente entender a palavra, para ser capaz de falar e debater os testemunhos de Deus, mas para guardá-los. Não é suficiente concordar que sejam as leis de Deus, mas que devem ser obedecidas. As leis dos príncipes terrestres não
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são obedecidas por se acreditar que sejam as leis do rei, mas quando somos pontuais em observá-las. Isto é guardar o mandamento de Deus; isto implica tanto exatidão quanto perseverança: Apo 3.8, “guardaste a minha palavra”, isto é, não apostataste como outros fizeram, e Prov 6.20, "guarda o mandamento de teu pai, e não deixes o ensinamento de tua mãe," que é a perseverança. Você vê pela primeira nota quem são os homens bem-aventurados; aqueles que possuem o testemunho de Deus em sua palavra, e, portanto, olham para ela como um grande encargo e confiança que Cristo tem depositado neles e lhes dado poderem guardar a sua lei. Agora, certamente, estes são bem-aventurados. Por quê?
(1) São abençoados ou amaldiçoados quem Cristo no último dia pronunciará abençoados ou amaldiçoados. Agora, no último dia para alguns, ele dirá: "Vinde, benditos de meu Pai!” Para os outros: “Vão, malditos”, e ele nos disse de antemão, que é aquele que guarda os seus testemunhos que ele reservará para si naquele dia, Mat 7.20-22. Muitos virão e protestarão familiaridade com Cristo: "Senhor, nós profetizamos em teu nome," etc; “Tu tens ensinado nas nossas ruas" (assim está em Lucas), mas Cristo vai renegá-los: “Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade.” Mt 7.23. Muitos vão fingir estar do lado de Cristo, mas porque eles não guardaram os seus testemunhos, ele não os receberá como seus.
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(2) São abençoados aqueles pelos quais Cristo intercedeu. Agora, Cristo intercedeu por aqueles que guardam a sua palavra: João 17.6: "Eles guardaram a tua palavra." É uma tristeza para o seu advogado quando ele não pode falar bem de você no céu. Mas assim que ele vir alguns frutos de obediência, onde conferem muitas vezes com o testemunho de Deus, apesar de haver muitos defeitos, mas sendo cuidadosos quanto ao que neles se encontra, então Ele se dirigirá ao Pai e os reconhecerá como sendo seus filhos.
(3) Aqueles que são trazidos em doce comunhão com Deus, certamente, estão numa condição abençoada. Aqueles com os quais Deus será íntimo, e manifestará a Si mesmo numa forma de comunhão graciosa, são abençoados. Agora, porém, ele faz isto com aqueles que guardam os seus testemunhos: “Se alguém me amar e guardar os meus mandamentos, meu Pai o amará, e nós faremos nossa morada com ele.” Toda a Trindade virá e habitará em seu coração.
Mas agora você deve saber, há uma dupla guarda dos testemunhos de Deus - legal e evangélica. A guarda legal é uma forma de obediência perfeita e absoluta, sem a menor falha, por isso nenhum de nós pode ser abençoado. Moisés vai nos acusar, não deve haver a menor falha. Mas agora, a guarda evangélica - isto é, a obediência filial e sincera - é aceita, e Cristo perdoou as imperfeições. Se o perdão de Deus não nos ajudasse, seríamos para sempre infelizes. Os apóstolos tinham muitas falhas, às vezes eles manifestavam uma fé fraca,
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por vezes, dureza de coração, às vezes falta de afeto quando se encontraram de modo desrespeitoso, Lucas 9, e ainda assim Cristo deu testemunho deste reconhecimento geral deles, quando ele se dirigiu ao seu Pai: “Pai Santo, eles guardaram a tua palavra." Quando o coração é sincero, Deus vai passar por alto nossas falhas, Tiago 5.11, "Ouvistes da paciência de Jó". Ay! e de sua impaciência também, ele amaldiçoou o dia do seu nascimento, mas o Espírito de Deus colocou o dedo sobre a cicatriz, e tomou conhecimento do que era bom. Contanto que se lamente o pecado, procure a remissão do pecado, lute pela perfeição, se esforce para guardar ternamente o mandamento, apesar de um coração desobediente nos conduzir de modo errado algumas vezes, guardamos o testemunho do Senhor num sentido evangélico.
A próxima agora é:
2. Eles o buscam com todo o coração.
Isto é adequadamente juntado ao anterior por um motivo duplo, em parte, porque o fim do testemunho de Deus é para nos direcionar ao modo de se buscar a Deus, para trazer para casa a criatura vagando para o seu centro e local de descanso, e em parte, porque quem mantém os mandamentos de Deus, será forçado a buscar em Deus luz e ajuda.
A obediência não somente nos qualifica para a comunhão com Deus, mas (onde é considerada para valer) habilita-nos a ter cuidado com isto; porque não podemos vir a Deus sem Deus; e, portanto, se quisermos manter os seus
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testemunhos, devemos buscar a Deus. Bem, então -
Doutrina 2 Aqueles que desejam ser abençoados devem fazer disto o seu negócio – buscar sinceramente a Deus.
1. Observe o ato de dever; eles buscam o Senhor.
2. A forma de atuação; com todo o coração.
Em primeiro lugar, o que é buscar o Senhor?
1. Buscar o Senhor pressupõe nossa falta de Deus, pois nenhum homem busca o que ele tem, mas aquilo que não tem. Tudo o que estão procurando é um indicativo da sua necessidade de Deus. Por exemplo, quando começamos a procurá-lo em primeiro lugar, isto começa com um remorso saudável e o sentido da nossa alienação natural dele. O primeiro trabalho e o grande cuidado de retornarmos a ser penitentes é procurar a Deus. Enquanto os homens permanecem não convertidos, eles são totalmente negligentes em relação a Deus, e penso que eles não querem Deus: Sl 14.2, “Não há ninguém que entenda e busque a Deus.” Eles não têm qualquer afeto ou desejo de comunhão com Deus. Eles procuram coisas que seus corações cobiçam, mas não é o seu desejo preocupar-se em desfrutar Deus. Mas quando a conversão dos judeus é falada, Oseias 3.5, isto é dito: "Eles devem retornar e buscar ao Senhor seu Deus." Em sua primeira conversão, os homens são sensíveis à sua grande distância de Deus, e estão preocupados de terem ficado tanto tempo estranhos a ele.
Vejamos agora outro tipo de buscadores, que são sensíveis à mesma coisa; em caso de
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deserção isto está claro: Cant 5.6: "Meu amado tinha se retirado, e tinha ido embora, eu o procurei, mas eu não poderia encontrá-lo." Eles nunca começam a procurar, até que, primeiro, sejam sensíveis à sua perda, quando eles veem, Cristo está indo embora, eles são deixados mortos e sem consolo, sim, todos os crentes, a sua busca de comunhão com Deus é baseada num sentimento de querer, em algum grau e medida; é pouco que têm, em comparação com o que eles querem e esperam, e, portanto, mesmo os filhos de Deus são uma geração de buscadores, que “buscam a Deus”, Sl 24.6; não importa que estejam contentes, eles ainda estão em busca de mais. Eles estão sempre suspirando por Deus, e desejam desfrutar de mais comunhão com ele. Um homem mau está sempre fugindo de Deus, e nunca se sente melhor do que quando ele está fora da companhia de Deus, quando ele consegue se livrar de todos os pensamentos sobre Deus. Ele foge de sua própria consciência, porque ele encontra Deus lá; ele foge da companhia de bons homens, porque Deus está lá - uma reunião dos santos é como uma prisão; ele foge dos mandamentos porque eles trazem Deus para perto de sua consciência, e o colocam na mente de Deus: ele evita a morte, porque ele não pode suportar estar com Deus. Mas os homens que têm um senso e falta de Deus sobre eles, serão achados indagando e procurando por Ele.
2. Essa busca pode ser conhecida pelas coisas buscadas. O que buscamos? União e comunhão com Deus: Sl 105.4: “Buscai o Senhor e sua força,
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buscai a sua face para sempre.” Isto é uma alusão à arca, que era uma promessa da presença favorável e poderosa de Deus, de modo que o que buscamos é a presença favorável e poderosa de Deus, para que possamos encontrar o Senhor reconciliando, consolando e firmando nosso coração. A comunhão com Deus é a coisa principal que buscamos, como para desfrutar o seu favor na aceitação das nossas pessoas e perdão de nossos pecados. Isso é que o homem de Deus expressou, em seu próprio nome e em nome de todos os santos: Sl 4.6,7, “'Senhor, levanta a luz do teu rosto sobre nós," para que Deus manifestasse seus feixes de favor na alma. Sl 63.3, “Teu favor é melhor do que a vida." E então a sua força também, para que ele possa dominar nossas corrupções, tentações, inimigos, Miqueias 7.19, e para que ele possa suprir nossas necessidades interiores e exteriores por sua auto-suficiência, Fp 4.19. Deus falou com Abraão: “Eu sou o Deus todo-suficiente, anda em minha presença e sê perfeito."
3. A forma do dever pode ser explicada em relação às graças e ordenanças. Isto consiste no exercício da graça, e no uso das ordenanças.
[1] O exercício da graça - fé e amor.
(1) A fé é muitas vezes expressada por termos de movimento - vindo, correndo, indo, procurando. Assim é toda a tendência da alma para Deus expressa por termos que sejam adequados ao movimento para fora. Essa fé que está implícita na busca aparece comparando essas duas escrituras: Isa 11.10, “Por isto
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procuram os gentios.” Agora, quando isso é falado no Novo Testamento, é processado, assim, Rom 15.12 “Nele os gentios esperam”. Assim isto evidencia confiança e esperança.
(2) Evidência de amor, que é exercitado aqui. Sl 63.8: “A minha alma apega-se a ti;”. É doloroso para aqueles que amam a Deus pensar em separação dele, ou abster-se de procurar por ele. O grande cuidado de suas almas é encontrar Deus, para que ele possa dirigir, confortar, fortalecer e santificar, e ter experiência doce da sua graça. Assim, a esposa buscou aquele a quem sua alma amava, e não descansou até que ela o encontrou.
[2] Novamente, isto é exercitado no uso das ordenanças, como a palavra e a oração. Deus será buscado em suas próprias ordenanças. Cristo anda no meio dos castiçais de ouro. Se você deseja achar uma pessoa, pense no seu andar e locais que costuma frequentar. Quando Cristo estava perdido, seus pais procuravam-no no templo; lá eles o encontraram. Se você quiser encontrar Cristo, olhe para as tendas dos pastores nas assembleias de seu povo, Cant 1.7,8; lá você deve achá-lo. Apenas deixe-me lhe dizer, estas ordenanças não são suficientes para se fazer de Cristo o objeto delas, para adorar a Cristo, mas ele deve ser feito o fim delas. Servir a Deus é uma coisa, e procurá-lo é outra. Servir a Deus é fazer-lhe o objeto de adoração, buscar a Deus é fazê-lo a finalidade da adoração, quando não iremos longe dele sem ele: Gênesis 32.16, “Eu não te deixarei ir, a menos que tu me abençoes." Não é o suficiente fazer uso de
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ordenanças, mas temos que ver se podemos encontrar Deus lá. Há muitos que vagueiam pelo palácio, e que ainda não falaram com o príncipe, de modo que, possivelmente, podemos vaguear pelas ordenanças, e não encontrarmos com Deus ali. É muito triste ir embora com a casca e a concha de uma ordenança, e negligenciar o núcleo, para agradar a nós mesmos porque temos estado na Coorte de Deus, embora não tenhamos encontrado o Deus vivo.
Novamente, se Deus não pode ser encontrado numa ordenança, temos que continuar procurando, você pode encontrá-lo na próxima. Às vezes, Deus não será encontrado em público, (numa reunião de oração por exemplo), mas pode ser encontrado na forma de ordenanças privadas. O cônjuge o procurou sobre a cama, depois em cada rua da cidade: Isa 4.6, "Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto." Na oração, chegamos a desfrutar de Deus mais diretamente, e o fazemos mais especialmente chamando-o para a nossa ajuda e alívio; há todas as graças agindo. Se você não consegue encontrar a Deus em oração, procure por ele na Ceia, e na Palavra, e se ele não estiver presente na palavra, busque-o através da meditação: Cant 5.6, "A minha alma desfaleceu quando ele falou”; isto é, quando eu considerei sua fala, porque seu cortejo acabou, meu amado foi embora, mas quando pensei em sua fala a minha alma desfaleceu. Davi consultou Natã, mas ele não poderia lhe dar qualquer resposta clara; o que sucedeu então? 2
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Sam 7.4, "A palavra do Senhor veio a Natã naquela noite, dizendo: Vai e dize a meu servo Davi", etc. Então, quando estivermos buscando a Deus todos os dias no culto público, e apesar de tudo isso o oráculo está silente; mas à noite, quando o buscarmos novamente, Deus pode ser encontrado. Atos 17.12: "Por isso muitos deles creram." Como? - quando procuravam a Palavra, embora quando a ouviram não discerniram as impressões de Deus sobre a palavra, mas quando pesquisaram e estudaram, examinando-a em deveres privados, Deus apareceu. Heb 11.11, diz: "pois teve por fiel aquele que lhe havia feito a promessa." Como assim? na primeira audiência? Não, Sara riu quando Deus lhe prometeu um filho (pois era o Filho de Deus que estava em companhia com os anjos, Gên 28), mas depois, quando ela considerava aquilo, ela julgou ser Deus fiel.
Assim, devemos seguir a Deus de ordenança a ordenança. Isto confronta uma grande dose de orgulho em homens carnais, que se Deus não fizer nada para encontrá-los presentemente eles jogam tudo fora. De vez em quando eles verão o que eles devem fazer para invocar a Deus, mas se Deus não responder na primeira batida, eles se vão.
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Como e Com Que o Jovem Purifica o Seu Caminho
Tradução e adaptação de citações extraídas do sermão de Thomas Manton, baseadas no Salmo 119.9, elaboradas pelo Pr Silvio Dutra.
“Com que purificará o jovem o seu caminho? Observando-o segundo a tua palavra” (Salmo 119.9)
Na primeira parte do texto o salmista falou que a palavra de Deus aponta o único e verdadeiro caminho para a felicidade. Agora, a principal coisa que a palavra opera é a santidade. Este é o caminho que devemos tomar, se pretendemos chegar ao fim da nossa jornada. Isto Davi aplicou ao jovem no texto, "Com que purificará o jovem," etc.
Nas palavras há:
- Uma pergunta,
- Uma resposta dada.
Na pergunta há uma pessoa em foco - um jovem. Qual é o seu trabalho, com o qual ele deve limpar o seu caminho? Nesta pergunta, há várias coisas supostas.
1. Que somos desde o nascimento poluídos pelo pecado, pois temos que ser purificados. Não é, “dirigir o seu caminho”, mas “limpar o seu caminho".
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2. Que devemos ser sensatos muito cedo e no tempo apropriado, desse mal, pois a pergunta é proposta em relação ao jovem.
3. Que devemos sinceramente buscar um remédio para secar este fluxo do pecado que corre em nós. Tudo isso pode ser suposto.
O que se deve indagar depois é: qual remédio é contra isso? Que curso deve ser seguido? De modo que a soma da questão é esta: como o homem que é impuro, e naturalmente contaminado com o pecado, será feito capaz, tão logo que ele chegue ao uso da razão, para purgar a corrupção natural e viver uma vida santa e pura para Deus? A resposta é: "Observando-o segundo a tua palavra." Quando duas coisas devem ser observadas:
(1) O remédio,
(2) A maneira como ele é aplicado e usado.
1. O remédio é a palavra - por meio do endereçamento de Deus, chamado a tua palavra, porque se Deus não tivesse dado direção sobre isso, estaríamos totalmente perdidos.
2. A maneira como ela é aplicada e usada, observando-o, etc, estudando e procurando um acordo sagrado com a vontade de Deus.
[1] Começo com a pergunta; porque, o modo negligente como o mundo aborda o assunto, parece muito impertinente e ridículo. Eles dizem: O que tem a juventude e a infância a ver com um trabalho tão sério? Quando a velhice tiver nevado sobre as suas cabeças, e a experiência inteligente de mais anos no mundo tiver lhes amadurecido para tão severa
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disciplina, então é a hora de pensar em limpar o seu caminho, ou de entrar num curso de arrependimento e submissão a Deus. Para o presente – o jovem deve ser um pouco indulgente, pois eles crescerão mais sábios à medida em que crescerem mais em anos. Oh! Não; Deus demanda a sua justiça, logo que sejamos capazes de compreendê-lo. E isto concerne a cada um, tão logo chegue ao uso da razão, e tenha em mente o seu dever, tanto no que diz respeito a Deus e a si mesmo.
(1) No que diz respeito a Deus - que não pode ser mantido fora da sua justiça por muito tempo: Ec 12.1, “Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade.” Ele é o nosso criador, não temos nada, mas o que ele nos deu, e que é para seu próprio uso e serviço. E, portanto, o vaso deve ser limpo tanto quanto possa ser, para que esteja "apto para o uso do Senhor.” Isto é um tipo de restituição espiritual para as negligências da infância e o esquecimento da infância, quando não tínhamos capacidade de conhecer o nosso criador, muito menos para servi-lo. E, portanto, tão logo cheguemos ao uso da razão, devemos restaurar a sua justiça, com proveito.
(2) No que diz respeito a si mesmo. O primeiro preparo do vaso é muito considerável: Prov 22.6, "Ensina a criança no caminho em que deve andar, e até quando envelhecer não se desviará dele." Quando se é bem preparado na juventude, a palavra será absorvida por eles, antes que o pecado e as concupiscências mundanas tenham obtido um enraizamento mais profundo. Se a observação de Salomão é verdadeira, a infância
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e a juventude de um homem são um notável presságio do que ele evidenciará mais tarde: Prov 20.11, “Até uma criança é conhecida pelas suas ações, se a sua obra é pura e reta." Muito pode ser conhecido por nossas inclinações juvenis. Mas, infelizmente! isto não encerra por completo o caso. O vaso já está preparado, mas "com que o jovem purificará o seu caminho?” o que pressupõe uma contaminação. Na criança é como um vaso recém saído da loja do oleiro, indiferente a boas ou más infusões. O vaso já está contaminado, e tem a natureza do velho homem e as corrupções da carne: Sl 51.5, “Eis que eu nasci em iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe." Chegamos poluídos no mundo, o nosso trabalho é parar o crescimento do pecado. Como a criança chafurdava na sua imundície, assim chafurdamos também espiritualmente em nosso sangue: Ez 16.4,5, “Quanto ao teu nascimento, no dia em que nasceste, não te foi cortado o umbigo, nem foste lavada com água para te limpar, nem esfregada com sal, nem envolta em faixas. Não se apiedou de ti olho algum, para te fazer alguma destas coisas, compadecido de ti; antes, foste lançada em pleno campo, no dia em que nasceste, porque tiveram nojo de ti.”
Portanto, a questão é muito pertinente, "Com que o jovem purificará,” etc
Mas por que somente o jovem é especificado?
Eu respondo - Todos os homens estão envolvidos neste trabalho. Velhos não são deixados a si mesmos, nem totalmente entregues à desesperança; mas os jovens
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precisam mais disto, sendo inclinados a libertinagens e a prazeres carnais, e mais aptos a serem conduzidos para além da maneira correta pelas concupiscências da carne e, sendo teimosos em suas paixões e vontade própria, precisam ter seus fervores abatidos pelas doutrinas do arrependimento e conversão a Deus. E, por isso, embora outros não sejam excluídos, o jovem é expressamente referido: potros indomáveis necessitam de freios mais fortes. A palavra é de uso para todos, mas especialmente para os jovens, para refreá-los e reduzi-los à razão.
[2] A resposta - "Observando-o segundo a tua palavra." A palavra, como um remédio contra a impureza natural é considerada de duas maneiras, como uma regra, e como um instrumento.
(1) Como a única regra daquela santidade que Deus aceitará. Todas as outras formas são apenas atalhos.
Nada é a santidade na conta de Deus, a não ser a que está de acordo com a palavra. A palavra mostra o único caminho de reconciliação com Deus, ou para ser purificado da culpa do pecado, e a única maneira de santificação sólida e verdadeira e submissão a Deus, que é a nossa purificação da imundícia do pecado.
Não há paz verdadeira sem a palavra, nem há verdadeira santidade. O primeiro é assinalado em Jer 6.16 "Assim diz o SENHOR: Ponde-vos nos caminhos, e vede, e perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho, e andai por ele e achareis descanso para as vossas almas." O
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segundo está indicado em João 17.17, "Santifica-os na tua verdade, a tua palavra é a verdade."
(1) Ela é a única regra para nos ensinar como obter a verdadeira paz de consciência. O mundo inteiro está se tornando desagradável a Deus, e mantido sob o temor da justiça divina. Esta escravidão é natural, e a grande pergunta é como a sua ira será aplacada: Miqueias 6.6,7, “Com que me apresentarei diante do Senhor, e me prostrarei perante o Deus excelso? Virei perante ele com holocaustos, com bezerros de um ano? Será que o Senhor ficará satisfeito com milhares de carneiros, ou com dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo pelo pecado da minha alma?" Agora, aqui não é citada a satisfação oferecida, nem o remédio para as feridas da consciência, nem o modo de remover a controvérsia entre nós e Deus; mas é pela propiciação do evangelho que é pregado, que tudo isso é efetuado.
Oh! então, o jovem para limpar sua consciência e acalmar o seu próprio espírito, tem necessidade de se apegar à palavra.
(2) A palavra é considerada com um instrumento que Deus faz uso para purificar o coração do homem. Não será errado nos estendermos pouco para mostrar a instrumentalidade da palavra para este propósito abençoado. É o espelho que revela o pecado, e a água que lava e o remove. A palavra é tanto o espelho quanto a água.
(1) É o espelho onde vemos a nossa corrupção. O primeiro passo para a cura é o conhecimento da
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doença, isto é um espelho onde aparecerá a nossa cara natural: Tg 1.23, “Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante a um homem que contempla seu rosto natural em um espelho," etc. Na palavra vemos a imagem de Deus e a nossa própria. É a cópia da santidade de Deus, e a representação de nossos rostos naturais, Rom 7.9. Que bons conceitos temos da nossa própria beleza espiritual! mas não podemos ver as manchas leprosas que estão sobre nós.
(2) Isto nos coloca num trabalho para vê-las removidas; isto é a água para lavá-las. A palavra de ordem forceja o dever, que é indispensavelmente requerido. O que é comandado em nossos ouvidos, senão "Lave-se, torne-se limpo."? Isto é indispensavelmente necessário: 1 João 3.3: "E todo aquele que nele tem esta esperança, purifica-se a si mesmo, assim como ele é puro”, e Heb 12.14, "Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor." Algumas coisas Deus pode dispensar, mas isso nunca é dispensado. Muitas coisas são ornamentais que não são absolutamente necessárias, como a riqueza: "Sabedoria com uma herança é bom,". Muitos têm ido para o céu, que nunca têm aprendido, mas nunca sem qualquer santidade.
(3) A palavra da promessa encoraja isto: 2 Coríntios 7.1, "Amados, tendo pois, tais promessas, purifiquemo-nos de toda a imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus”, e 2 Pedro 1.4, "Pelas quais nos têm sido doadas suas mui
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grandes e preciosas promessas, para que por elas vos torneis coparticipantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção que há no mundo pela concupiscência que nele há.”
Deus poderia ter exigido isto nas bases da sua soberania, mas Deus não nos governaria com mão de ferro, mas lida com criaturas racionais de forma racional, por promessas e ameaças. Por um lado, ele nos falou de um poço sem fundo; por outro lado, das bem-aventuradas e gloriosas promessas, coisas "que o olho não viu, e o ouvido não ouviu falar, nem penetrou no coração do homem para conceber." Portanto, a palavra tem uma instrumentalidade notável dessa forma.
(3.) A doutrina da escritura tem o remédio e o meio de limpeza – o sangue Cristo, que não é apenas um argumento ou motivo para nos mover a isto. Portanto, é instado em 1 Pedro 1.8, “quem, não havendo visto, amais; no qual, sem agora ver, mas crendo, exultais com alegria indizível”, etc. Isto impele à santidade sobre este argumento. Por quê? Tem sido um grande custo para Deus realizá-lo, por isso não devemos nos contentar com alguma moralidade superficial. Mais uma vez, a palavra propõe como uma compra, na qual a graça é adquirido por nós, por isso se diz, em 1 João 1.7, ele tem derramado o seu Espírito para nos abençoar e nos resgatar de nossos pecados. E isso excita a fé para aplicar este remédio, e assim experimentar o poder de Deus na alma: Atos 15.9, “purificando os seus corações pela fé."
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2. A maneira como a palavra é aplicada e feito uso dela: “Se ele tomar cuidado para isso, segundo a tua palavra." Isto implica um estudo da palavra, e a tendência e importância disto, o que é necessário, se o jovem deve ser beneficiado por isto. Davi aplicou os estatutos de Deus aos homens do seu conselho. Os jovens que são encontrados com outros livros, se eles negligenciam a palavra de Deus, o livro que deve fazer a cura do seu coração e mente, eles são, com todo o seu conhecimento, miseráveis: Sl 1.2, “o seu prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.” Se os homens quiserem crescer sábios para a salvação, e obter qualquer habilidade na prática da piedade, eles devem estar muito ocupados com este livro abençoado por Deus, que nos é dado para nos dirigir: 1 João 2.14, "Eu vos escrevi, jovens, porque sois fortes, e a palavra de Deus permanece em vós, e já vencestes o maligno." Não será uma ligeira familiaridade com a palavra que fará um jovem ser bem sucedido em derrotar as tentações de Satanás, e será muito difícil vencer a sua própria concupiscência; não será por um pouco de irradiação nocional, mas por ter a palavra habitando em você, e permanecendo em você abundantemente. O caminho para destruir as ervas daninhas é plantar boas ervas que lhes sejam antagônicas. Nós sugamos princípios carnais como sendo nosso leite e, portanto, é dito que "falam mentiras desde o ventre." Isto é um tipo de mistério; antes de sermos capazes de falar, falamos mentiras, ou seja, somos propensos a
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erros e toda sorte de fantasias carnais pelo temperamento natural e estrutura dos nossos corações, Isa 58.2, e, portanto, desde a nossa mais tenra idade, devemos estar familiarizados com a palavra de Deus: 2 Tim 3.15: "E que desde a infância sabes as Sagradas Escrituras." Mesmo que não se ganhe nada, quando crianças, através da leitura da palavra, senão um pouco de conhecimento memorizado, mas ainda é bom plantar na lavoura da memória, com o tempo a memorização penetrará na razão e na consciência, e daí para o coração e os afetos.
3. Isto implica um cuidado e vigilância sobre nossos corações e comportamento, para que a nossa vontade e as ações sejam conformadas à palavra. Esta deve ser a oração diária do jovem e cuidado, que haja um acordo entre sua vontade e a palavra, que ele possa ser uma Bíblia caminhante, uma carta viva de Cristo, uma cópia da palavra em sua vida, para que as verdades possam fluir claramente em sua conversação.
Tudo o que eu tenho dito pode ser dividido em três pontos:
1. Que o grande dever da juventude, é inquirir e estudar como eles podem limpar seus corações e seus caminhos para o pecado.
2. Que a palavra de Deus é a única regra suficiente e eficaz para realizar este trabalho.
3. Se queremos ter essa eficácia, é requerido muito cuidado e vigilância, para que cheguemos à direção da palavra em cada til, não uma reflexão solta e desatenta com a palavra,
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desconsideração negligente, mas tendo cuidado para isso.
Agora, por que na juventude, e assim que chegamos ao uso da razão, devemos mentalizar o trabalho de limpeza do nosso caminho?
1. Pense em como isso é razoável. Está claro que Deus deve ter o nosso primeiro e nosso melhor. Está claro que ele deve ter o nosso primeiro, porque ele nos viu antes mesmo de nascermos. Seu amor por nós é eterno; e deveríamos deixar Deus do lado de fora de nossas vidas até a velhice? vamos empurrá-lo para um canto? Certamente Deus, que nos amou tão cedo, isto é motivo para que ele tenha o nosso primeiro, e também o nosso melhor, pois todos nós somos dele. Sob a lei das primícias que eram de Deus, ele nos ensina que o primeiro e o melhor são a Sua porção. Todos os sacrifícios que foram oferecidos a ele, estavam em sua força e juventude – eram novilhos, sem doença ou defeito, e o mesmo princípio se aplicava a todas as demais ofertas: Lev 2.14: "Se trouxeres ao SENHOR oferta de manjares das primícias, farás a oferta de manjares das tuas primícias de espigas verdes, tostadas ao fogo, isto é, os grãos esmagados de espigas verdes.” Deus não iria ficar esperando por muito tempo até que amadurecessem. Deus não será mantido por muito tempo sem a Sua porção. A juventude é o nosso melhor momento. Mal 1.13, quando eles trouxeram uma oferta fraca e doente, “Devo aceitar isso de tua mão? diz o Senhor." A saúde, força, rapidez de espírito e vigor estão na juventude. Será a nossa saúde, e força para o uso
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do diabo, e vamos nos apresentar a Deus com a escória do tempo? Satanás deve se banquetear com a flor de nossa juventude, e Deus tem somente os restos e fragmentos da mesa do diabo? Quando a inteligência está entorpecida, os ouvidos, o corpo fraco, e os afetos gastos, isso é um presente adequado para Deus?
2. Considere a necessidade disto.
(1) Por causa do calor da juventude, as paixões e concupiscências são muito fortes: 2 Tim 2.22, “Fuja também das paixões da mocidade". Os homens estão mais inclinados nesta idade de orgulho e vaidade, a paixões fortes, desordenada e excessivo amor à libertinagem: 1 Tim 3.6 “não seja neófito, para não suceder que se ensoberbeça e incorra na condenação do diabo.” Um homem pode domesticar criaturas selvagens, os leões e tigres, e a fúria da juventude precisa ser temperada e freada pela palavra. Há muita glória para a graça de Cristo que o calor e a violência sejam quebrados quando a pessoa é muito menos disposta e preparada.
(2) Porque ninguém é tentado tanto quanto eles. As crianças não podem ser de serventia ao diabo, e os velhos estão senis e têm escolhido e definido os seus caminhos, mas os jovens, que têm uma fraqueza de entendimento, e os espíritos mais intrépidos e mais agitação, o diabo ama fazer uso deles: 1 João 2.13 : 'Eu vos escrevi, jovens, porque tendes vencido o maligno." Eles são mais agredidos, mas é para a honra da graça quando saem vencedores, quando é empregado o seu fervor e força, não
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para satisfazer concupiscências, mas no serviço de Deus e luta contra Satanás. Portanto, é muito necessário que sejam temperados com a palavra desde cedo.
3. Considere os muitos inconvenientes que se seguirão, se atualmente não se importarem com este trabalho.
(1) A morte é incerta, e, portanto, um negócio tão importante como este não admite atraso. Deus nem sempre dará o aviso. Nadabe e Abiú, dois jovens irreverentes, foram levados em seus pecados, e os ursos da floresta devoraram as crianças que zombaram do profeta Eliseu. O perigo é tão grande, que assim que estejamos conscientes disto, devemos fugir dele. Quando as crianças chegam à plenitude da razão, elas ficam em sua própria conta; antes, elas estavam sob a conta de seus pais. Oh, ai de você se você morrer em seus pecados! Certamente, assim que um homem está sobre a sua própria conta pessoal, ele deveria olhar por si mesmo, para que Deus o quebre, para que ele faça a sua paz com ele.
Aplicação 1. É para se lamentar que tão poucos jovens trilhem nos caminhos de Deus. É uma coisa rara encontrar um José, ou um Samuel, ou um Josias, que buscam a Deus desde cedo. Vá às universidades, e você vai descobrir que aqueles que deveriam ser tão nazireus consagrados a Deus, vivem como aqueles que se consagraram a Satanás: Amós 2.11, “Dentre os vossos filhos, suscitei profetas e, dentre os vossos jovens, nazireus.” Os filhos dos profetas em sua juventude criados para uma disciplina mais
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rigorosa na sua santa vocação, separados de prazeres mundanos, para serem um estoque de um ministério bem sucedido. Mas, infelizmente eles gastaram seu tempo na vaidade, nada trazendo senão apenas os pecados do lugar, e seguiram os costumes pecaminosa do seu país. Quão poucos consideram a educação de sua juventude em conhecimento ou prática religiosa! Famílias são sociedades para serem santificadas por Deus, bem como igrejas. Os seus governantes têm verdadeiramente um encargo para com as almas assim como os pastores em relação às igrejas. Eles oferecem seus filhos a Deus no batismo, mas educam-nos para o mundo e para a carne. Eles lamentam qualquer defeito físico neles, mas não a falta da graça.
Aplicação 2. Uma exortação para os jovens. Você que está começando a sua jornada, comece com Deus, você não tem experiência, mas você tem uma regra; você tem concupiscências poderosas, mas um espírito forte. Nenhuma faixa etária está excluída da promessa do Espírito: Joel 2.28,29, “E será que, depois, derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões, e também sobre os servos e sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias."
De João Batista é dito em Lucas 1.15: "Ele será cheio do Espírito Santo já desde o ventre de sua mãe”, e lemos em Marcos 10.14 “Deixai vir a mim os pequeninos, e não os impeçais, porque dos tais é o reino de Deus." Há poder para
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iluminá-lo, apesar de todos os seus preconceitos, para subjugar suas paixões, apesar do poder da nossa natureza corrompida pelo pecado: 1 João 2.13,14: "Eu vos escrevi, jovens, porque tendes vencido o maligno. Eu vos escrevo, filhinhos, porque conheceis o Pai.", etc, e veja Gên 39.9. Será um grande conforto para você, quando você morrer, que seu grande trabalho foi concluído. Oh, que coisa triste é que, quando o corpo vai para a sepultura, e a alma não tem ainda aprendido a conversar com Deus! Oseias 8.12, “Embora eu lhe escreva a minha lei em dez mil preceitos, estes seriam tidos como coisa estranha.”. Deus tem escrito uma carta para nós, e nós não iremos lê-la, nem meditá-la? Seremos então estranhos inteiramente a ela. Mas agora, quando conhecerem a Deus, não será tão cansativo ir ter com ele.
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O Que é Ser Confirmado em Toda Boa Obra e Palavra
Tradução e adaptação elaboradas pelo Pr Silvio Dutra, de citações extraídas do comentário de autoria de Thomas Manton, sobre o verso 17 do segundo capítulo da epístola de 2 Tessalonicenses.
"vos confirmem em toda boa obra e palavra" (2 Tes 2.17)
A sã doutrina é aqui designada por "toda boa palavra” e a santidade da vida por “toda boa obra".
A confirmação na fé e santidade é uma bênção necessária, e deve ser sinceramente buscada em Deus.
1. O que é esta confirmação?
2. Quanto é necessária?
3. Por que deve ser buscada em Deus?
I. O que é esta confirmação?
Resposta: Confirmação na graça que temos recebido. Agora essa confirmação deve ser distinguida:
1. Em relação ao poder com o qual estamos assistidos; há confirmação habitual, e confirmação real.
[1] A confirmação habitual é quando os hábitos da graça são mais estáveis e aumentados: 1
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Pedro 5.10, "Ora, o Deus de toda a graça, que em Cristo vos chamou à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por um pouco, ele mesmo vos há de aperfeiçoar, confirmar, fortificar e fundamentar.”
Deus lhes chamou eficazmente e lhes converteu, e ele começou o fortalecimento da graça que haviam recebido. Agora, portanto, estamos confirmados, quando a fé, o amor e a esperança são aumentados em nós, pois estes são os princípios de todas as operações espirituais, e quando eles têm obtido boa força em nós, um cristão está mais confirmado.
A fé é necessária, pois estamos em pé pela fé: Rom 11.20, “Por causa da incredulidade foram quebrados, e tu estás em pé pela fé." Nós não apenas vivemos por ela, mas estamos de pé por ela, e somos mantidos por ela: 1 Pedro 1.5: “Que são mantidos pelo poder de Deus mediante a fé para a salvação." Aquele que é forte, é o que é forte na fé, como Abraão, que creu no evangelho.
O aumento e a estabilidade do amor são também necessários. O amor é forte. Somos informados em Cant 8.6,7, “Que o amor é forte como a morte, as muitas águas não podem apagá-lo: se um homem lhe desse todos os bens de sua casa, seria de todo desprezado." Não será subornado ou saciado. Nosso desviar-se vem de se perder a nossa complacência ou o desejo de Deus: há uma aversão ao pecado e de zelo contra ele, enquanto nós temos um senso de nossas obrigações para com Deus, e uma estima ao valor de sua graça em Cristo, então nós
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continuamos na agradável obediência a ele, e no direcionamento de nossas ações para a sua glória.
A esperança é também necessária para o confirmação da alma, com a promessa da vida eterna, pois esta é a âncora segura e firme da alma: Heb 6.19, "a qual temos como âncora da alma, segura e firme". Se a esperança for forte e viva, as coisas atuais não nos moverão muito.
[2] A Confirmação Real, quando esses hábitos, estão fortalecidos e aumentados pela influência real de Deus. Como Deus faz para confirmar por esses princípios habituais, pelas operações reais de seu Espírito, pois caso contrário nem a estabilidade de nossas resoluções nem dos hábitos da graça irão nos manter.
Não estabilidade de resoluções – Sl 73.2, “Quanto a mim, os meus pés quase que se desviaram, os meus passos quase escorregaram.”
Não hábito – Apo 3.2, “Sê vigilante e consolida o resto que estava para morrer, porque não tenho achado íntegras as tuas obras na presença do meu Deus.”
Isto é verdade, Deus comumente opera mais fortemente com as graças mais fortes, porque seus corações estão mais preparados, mas às vezes os cristãos fracos passaram por grandes tentações quando os fortes falharam: Apo 3.8, “que tens pouca força, guardaste a minha palavra, e não negaste o meu nome." Às vezes, o cristão forte tropeça e cai quando o fraco permanece de pé. Deus pode em um instante confirmar uma pessoa fraca em alguma
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tentação particular, por sua assistência livre, mas normalmente concorre com a graça mais forte. Assim, no que diz respeito ao poder com o qual somos assistidos.
2. Com relação à estabilidade na doutrina da fé e prática da piedade.
[1] Na doutrina da fé. É uma grande vantagem na vida espiritual ter bom senso. Alguns homens nunca estão bem firmados na verdade e na natureza e motivos da religião que eles professam, e, em seguida, são sempre deixados numa incerteza errante, porque não são resolutos de modo evidente; como os homens normalmente não param no local para o qual eles foram movidos por uma tempestade, ou pela correnteza das marés: 1 Tes 5.21, "provai todas as coisas, retende o que é bom." Certamente a religião no geral deve ser tomada por escolha e não por acaso, não porque não conhecemos outra, mas porque sabemos que não há melhor: como Jer 6.16 “Ponde-vos nos caminhos, e vede, e perguntai pelas veredas antigas, qual é o bom caminho, e andai por ele." E o mesmo é verdade quanto às opiniões particulares e controvérsias sobre religião, até que tenhamos ἰδιον στηριγμα, “vossa própria firmeza", 2 Pedro 3.17.
Quando estamos de pé com a firmeza dos outros, quando nós professamos a verdade apenas por causa da companhia deles, quando a corrente é quebrada, todos nós caímos aos pedaços.
Enquanto clamamos por constância, não devemos acalentar preconceito teimoso, que
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fecha a porta sobre a verdade. No entanto, para evitar a opinião superficial, antes de as pessoas religiosas professarem alguma coisa, sua garantia precisa estar muito clara, tanto para o bem do mundo e o seu próprio, para que não criem problemas desnecessários, e depois mudem de ideia, e escandalizem outros, e a sua própria causa: ἀνὴρ δίψυχος, Tg 1.8 "o homem de coração dobre é inconstante em todos os seus caminhos."
E nós temos necessidade de ter o cuidado de estar certos, porque cada erro tem uma influência sobre o coração e a prática: sobre o coração, pois enfraquece a fé e o amor; e a prática: algumas opiniões não têm maldade em si, mas a profissão delas pode dividir a igreja, e nos fazer, por causa de contendas, inimigos do crescimento e progresso do reino de Cristo.
Agora, se desejamos ser confirmados na verdade, temos que ver o que influencia cada verdade relativa à nova natureza, ou como isto opera em direção a Deus pela fé, para acompanhar nosso respeito a ele, ou aos homens, por amor.
Um homem não deixará ir facilmente a verdade com a qual está acostumado a transformá-la em prática, e o modo de viver como ele crê. Mais uma vez, precisamos ser confirmados na presente verdade; isto não é zelo para lutar com os fantasmas e erros antigos, mas para participar de Deus em nossa própria época.
[2] Em toda boa obra, ou em santidade de vida. Aqui se necessita de maior confirmação, para
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que possamos nos manter em nossa jornada para o céu.
Isto fica doente, quando a mente está contaminada, mas é pior quando o coração está alienado de Deus, e geralmente é a perversa inclinação da vontade que macula a mente. Portanto, a grande confirmação deve ser estabelecida num curso de piedade: 1 Tes 3.13, “que os vosso corações sejam confirmados irrepreensíveis em santidade diante de nosso Deus e Pai, até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, com todos os seus santos." Agora, esta confirmação é muito difícil.
Primeiro, por causa da contrariedade dos princípios que residem dentro de nós: Gál 5.17, “Porque a carne luta contra o Espírito, e o Espírito contra a carne, e estes são contrários um ao outro, para que não façais o que quereis." A guarnição não está livre de perigo porque tem um inimigo dentro do quartel. O amor do mundo e da carne estavam no coração antes do amor de Deus e da santidade, e este não é totalmente erradicado. Sim, isto é natural para nós, ao passo que a graça é uma planta plantada em nós, contrária à natureza; e à terra que produz as ervas daninhas e cardos de sua própria vontade, mas as flores e boas ervas com muito preparo e cultivo, se houver negligência, as ervas daninhas em breve crescerão demais.
Em segundo lugar, porque é mais difícil continuar na conversão do que nos convertermos pela primeira vez. Em nossa primeira conversão somos mais passivos; é Deus que nos converte, colhendo-nos a si
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mesmo, e nos planta em Cristo, mas na perseverança e cumprindo nosso dever, estamos mais ativos, é o nosso trabalho, apesar de fazemos isso pela graça de Deus. Uma criança no ventre da mãe é alimentada pela alimentação da mãe, mas depois ela deve mamar e buscar seu próprio alimento, e quanto mais envelhecer, estará mais entregue a si mesma no que tange ao cuidado com a sua vida. Agora, aquilo que é o nosso trabalho, é mais difícil. É verdade que Deus, concluirá a boa obra que começou em nós, mas, a aperfeiçoará, não sem o nosso cuidado, Fp 1.6, daí se dizer “desenvolvei... com temor e tremor”.
Quando estamos prontos e preparados para as boas obras, Deus o espera de nós para que possamos andar nelas. Deus nos confirma na palavra, mas isto está em toda boa obra. Além disso, na conversão, fazemos aliança com Deus, mas pela perseverança podemos manter nossa aliança com ele. Agora é mais fácil concordar com as condições do que cumpri-las; as cerimônias, num primeiro momento da celebração do casamento, não são tão difíceis quanto o exercício das funções da aliança do casamento propriamente dito. É mais fácil construir um castelo num tempo de paz do que mantê-lo num tempo de guerra. Pedro mais facilmente consentiu em vir a Cristo sobre a água, mas quando ele começou a experimentá-lo, seus pés estavam prontos para afundar, Mat 14.29,30. Quando os ventos e as ondas são contra nós, ai!, quão rapidamente falhamos! Portanto, uma boa primavera não é sempre garantia de
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uma colheita proveitosa, nem de abundância de flores na floricultura. Estamos vivendo com sinceridade seguindo a Cristo em determinada época, mas quando nos deparamos com dificuldades imprevistas, ficamos desfalecidos e desencorajados.
3. Com respeito ao assunto em que isto está assentado, o qual é a alma com as suas faculdades. A força do corpo é conhecida por experiência e não por descrição, mas a força da alma deve ser determinada por sua constituição para o bem e o mal. As faculdades da alma são o entendimento, a vontade e os afetos ou emoções.
[1] A mente (ou entendimento) é confirmada quando temos uma clara, correta e plena apreensão da verdade do evangelho; isto é chamado de conhecimento; a certeza, e a saudável apreensão disso é chamado de fé, ou assentimento intelectual, ou "a plena certeza do entendimento" Col 2.2, quando há um devido conhecimento do que Deus tem revelado, com uma correta persuasão da verdade disto, operada em nós pelo Espírito Santo. Agora, nós conhecemos certamente essas coisas, e quanto mais poderosamente elas afetem o coração, somos mais confirmados. Aquele que tem pouco conhecimento e pouca certeza é chamado fraco na fé: Rom 14.1,e aqueles que têm uma compreensão mais clara são chamados fortes, como se vê em Rom 15.1: "Nós que somos fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos," significando aqui forte no conhecimento. Assim também pela certeza de
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persuasão, se diz em Rom 4.20, Abraão foi "forte na fé, dando glória a Deus," quando em todos as suas aflições as suportou com confiança na palavra e na promessa de Deus. Bem, então, a mente é confirmada quando temos um bom estoque de conhecimento, e cremos firmemente no que conhecemos de Deus, de Cristo e da salvação eterna.
[2] Falemos agora sobre a vontade, que é outra faculdade da alma. Agora, a confirmação da vontade é conhecida quando ela está completamente firme e resoluta para Deus e contra o pecado. Para Deus: como em Atos 11. 23 – Barnabé - “Tendo ele chegado e, vendo a graça de Deus, alegrou-se e exortava a todos a que, com firmeza de coração, permanecessem no Senhor.” A vontade, primeiro escolhe, depois se apega a seus princípios, e isso com propósito completo, quando a vontade está tão fixada no conhecimento e na fé do evangelho que ela resolve respeitar a sua escolha: Sl 27.4, "Uma coisa pedi ao Senhor, o que eu vou buscar.”. Quando a resolução espiritual coloca a força e autoridade de um princípio na alma, e nada pode quebrá-lo: 1 Pedro 4.1 “armai-vos também vós do mesmo pensamento." Assim como Cristo perseverou constantemente no trabalho de mediação, assim também você no trabalho de obediência, não obstante as suas dificuldades. Tenha esta poderosa vontade, que se opõe às tentações, e aos maiores impedimentos no caminho para o céu, de modo que você preferiria tirar vantagem da oposição do que ficar desanimado por ela, quando o que é
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sensual ou carnal exerce pouca força sobre você, e você pode desprezar as mais agradáveis iscas do pecado.
[3] As afeições ou emoções da alma, nos excitam e nos estimulam a fazer o que a mente está convencida e a vontade deliberada quanto às funções necessárias do evangelho, tendo em vista a felicidade eterna. Nós nunca funcionamos melhor do que quando trabalhamos com a força de alguma afeição eminente, quando o coração está dilatado: Sl 119.32, “eu vou percorrer o caminho dos teus mandamentos, se tu alegrares o meu coração."
Amor ou esperança. O amor nos enche de alegria, vencendo a nossa indolência e lentidão natural nos caminhos de Deus: Sl 40.8, "Agrada-me fazer a tua vontade, meu Deus, sim, o teu amor está dentro do meu coração," 1 João 5.3, “pois este é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos, e os seus mandamentos não são penosos”, Sl 112.1, "Bem-aventurado o homem que teme ao Senhor, que tem grande prazer nos seus mandamentos."
A esperança nos dá testemunho em desprezo às concupiscências e terrores dos sentidos: Heb 3.6, “a qual casa somos nós, se guardarmos firme, até ao fim, a ousadia e a exultação da esperança.”, de modo que servimos a Deus com vigor e entusiasmo. Quando nossos afetos são amortecidos, a graça cai e definha, se você perder o seu sabor, sua prática irá definhar também, e o serviço de Deus não será tão uniforme. É uma grande parte da nossa
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confirmação manter o vigor e fervor de nossas afeições.
4. Com relação aos usos para os quais a confirmação serve, quanto aos deveres, sofrimentos, conflitos.
[1] Fazer a vontade de Deus, ou realizarmos nossas obras com prazer, alegria e constância, porque toda força é para realizar um trabalho: Ef 3.16, “para que, segundo a riqueza da sua glória, vos conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito no homem interior;”. Para que possamos fazer o nosso trabalho com prontidão de espírito torna-se necessária a fé em Cristo e o amor a Deus. Isso é muitas vezes mencionado nas escrituras: Fp 2.13, “Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade".
A omissão frequente de boas obras, ou o exercício raro da graça, produz necessariamente uma decadência, como o ferrugem na chave que raramente é usada na fechadura, assim, perdemos a vida e o conforto da religião, e finalmente a lançamos fora como algo desnecessário e inútil.
[2] A confirmação é necessária para suportarmos as aflições, e passarmos por todas as condições com honra para Deus e segurança para nós mesmos: Fp 4.13, “posso fazer todas as coisas através de Cristo, que me fortalece”; - são as palavras do apóstolo que estava confirmado na palavra e nas boas obras. Col 1.11, "sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da sua glória, em toda a perseverança e
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longanimidade; com alegria,”. O grande uso da confirmação é para nos fortalecer contra todos os males e inconvenientes da vida presente, para que possamos cumprir nossa jornada para o céu no caminho justo e estreito, e não por sermos grandemente movidos por tudo o que nos suceda em nossa caminhada.
[3] A confirmação é necessária para os conflitos com as tentações do diabo, do mundo e da carne. O diabo procura trabalhar em cima de nossas afeições e inclinações, e a carne nos inclina para satisfazê-las. Como, então, o cristão pode vencê-las? Sendo confirmado por Deus: Ef 6.10, "Finalmente, fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder." Um cristão está aqui embaixo num estado militar, mas, de nós mesmos, somos como canas agitadas por qualquer vento, temos necessidade de confirmação no que diz respeito à nossa própria fraqueza, e à força de nossos inimigos. Devemos ser confirmados contra tudo o que o diabo solicita; contra o mundo, com o seu argumento silencioso pelo qual ele nos solicita a nos afastarmos de Deus e do céu; contra a carne, o princípio de rebelião que está na nossa velha natureza terrena. Bem, então, esta confirmação é para que a graça nos capacite a realizar as funções da religião (nossa fé cristã) com constância, frequência e prazer, para cumprirmos todos os inconvenientes da religião com paciência e fortaleza, e para sermos mais surdos e resolutos contra todas as sugestões do diabo, ou as maquinações da carne, provocadas pelo mundo.
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5. Para evitar os escândalos e os atalhos: 1 Coríntios 15. 58, “Sejam firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor”, e Ef 3.17, “para que sejais arraigados e alicerçados em amor", e Col 1.23: "Se permanecerdes na fé, fundados e firmes, não vos deixando apartar da esperança do evangelho." Se não olharmos para o grau da nossa confirmação, a nossa fraqueza e instabilidade crescerão em nós e teremos uma mente inquieta: Ef 4.14, “levados ao redor por todo vento de doutrina". Eles nunca foram bem fundamentados na verdade, e, portanto, pela sua própria fraqueza e em razão da astúcia e diligência dos sedutores, são atraídos para o erro.
Em matéria de prática, se nós consentirmos com os nossos primeiros declínios, o mal irá crescer e prevalecerá sobre nós, quando o nosso julgamento condescende mais com pecado do que antes, e a vontade se opõe a ele com menor resolução, ou com maior fraqueza e indiferença, ou quando a oposição mais nos desencoraja. Não; deve haver uma vitória resoluta sobre as tentações que lhe pervertem; e isto nos ajudará neste propósito: Heb 12.3 “Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossa alma.”. Quando nosso primeiro amor se for, nossas primeiras obras em grande medida cessarão: Apo 2.4,5, 'No entanto, tenho contra ti, que deixaste o teu primeiro amor. Lembra-te, portanto, de onde caíste, e arrepende-te, e faz as tuas primeiras obras.” Bem, então, o grau deve
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ser lembrado; porque um homem pode ser firme no principal, e ainda ser um pouco movido e abalado, mas um cristão não deve apenas ser firme, mas inabalável, caso contrário seremos muito incertos em nosso posicionamento.
Como a Providência é a continuação da criação, de igual modo a confirmação na graça é a continuação da nova criação. A mesma graça que nos coloca no estado da nova criação, é a que nos confirma.
Mesmo em estado de graça, somos como um copo sem fundo, quebrado, e, portanto, somente Deus é capaz de nos fazer ficar de pé, e perseverar nesta graça que recebemos: 2 Coríntios 1.21, “Mas aquele que nos confirma convosco em Cristo e nos ungiu é Deus,”. Depois que estivermos em Cristo, a nossa estabilidade estará somente em Deus.
2. Devemos considerar a indisposição de nossa natureza, tanto para toda boa obra quanto para toda boa palavra.
(1) Para toda boa palavra. As verdades do evangelho são sobrenaturais. Agora, as coisas que são plantadas em nós contra a natureza dificilmente podem subsistir e serem mantidas. O evangelho depende de revelação, por isso há tantas heresias contra o evangelho, mas nenhuma contra a lei. Portanto, como o conhecimento das verdades do evangelho dependem de uma revelação divina, devem ser aplicadas em nossos corações por um poder divino, e por um poder divino que as preserve ali. A fé é um dom de Deus: Ef 2.8 , "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé, e isto não vem
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de vós, é dom de Deus;", tanto quanto ao seu início, quanto para a sua preservação e aumento.
(2) Para toda boa obra. Não há somente lentidão e atraso de coração para os deveres do evangelho, mas um pouco da velha inimizade e aversão da natureza terrena que ainda remanesce em nós. Nossos corações não são apenas inconstante e instáveis, mas muito rebeldes: Jer 14.10, "Assim diz o Senhor a este povo: Pois que tanto gostam de andar errantes”, Sl 95.10: "É um povo que erra de coração." Moisés havia ido mais cedo para o lado de Deus no monte, mas os israelitas, depois de seu pacto solene, caíram na idolatria. Antes de que a lei fosse escrita, eles a quebraram.
Agora, temos que ter um princípio guerreando dentro de nós como devemos ter, a menos que Deus nos confirme?
III. Por que deve ser buscado de Deus?
1. Somente ele é capaz de nos confirmar: Rom 14.25, "Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo,". Deus é capaz de derrotar o poder dos inimigos, e de preservar os seus filhos em meio às tentações. Então, Judas 24, "Ora, àquele que é poderoso para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados diante da sua glória,”. Os santos acham nisto um alívio para os seus pensamentos contra a oposição terrível e poderosa do mundo, eles não têm nenhuma razão para duvidar do amor de seu Pai.
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2. Deus não nos abandou, quando demos as costas para ele e estávamos prontos para abandoná-lo, mas nos guardou de perigos e riscos, sim, ele chamou a sua graça, e nos confirmou até agora. Por que teríamos que duvidar de sua graça para o futuro? 2 Coríntios 1.10 : "Quem nos livrou de tão horrível morte, e livrará; em quem nós confiamos que ele ainda nos livrará," 2 Tim 4.17,18: "Não obstante, o Senhor esteve ao meu lado e me fortaleceu, para que por mim a pregação fosse totalmente conhecida, e que todos os gentios a ouvissem, e fui libertado da boca do leão. E o Senhor me livrará de toda má obra, e me levará salvo para o seu reino celestial, ao qual seja glória para todo o sempre. Amém ".
3. Ele fez promessas de sustentação e preservação: Sl 73.23, “Todavia estou de contínuo contigo; tu me sustentaste pela minha mão direita." Ainda que caia, não ficará prostrado, porque Deus o sustém com a sua mão. Se Deus tem prometido preservar essa graça que ele tem uma vez nos dado, não deveríamos orar para a sua continuação com maior encorajamento?
Aplicação. Isto deve nos pressionar em todos os momentos para olharmos para Deus em busca de confirmação, e especialmente em duas ocasiões:
1. Quando começamos a declinar, e a ficar mais omissos e indiferentes na prática da piedade. Se a graça está em você, você deve buscar fortalecê-la. Quando você fica mais ousado na prática do pecado, e mais estranho para Deus e
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Jesus Cristo, e tem pouco conversado com ele no Espírito, oh! é hora de instar com seriedade com Deus, para que ele lhe restaure. Embora você tenha desviado a sua força, você tem tratado com um Deus misericordioso; vá até ele para ajuda: Sl 17.5, "Os meus passos se afizeram às tuas veredas, os meus pés não resvalaram.” Você tem perdido os socorros mais abundantes da graça, mas peço-lhe que não a abandone completamente. Você deve confessar o pecado, mas Deus deve remediar o mal: Sl 119.133: "Ordena os meus passos na tua palavra, e não deixe qualquer iniquidade ter domínio sobre mim." Senhor, estou apto a ser levado por seduções mundanas; meu gosto espiritual está destemperado com vaidades carnais, mas: “não deixe a iniquidade ter domínio sobre mim."
2. Devemos também buscar a Deus em tempos incertos, quando estamos cheios de temores, e achamos que nunca conseguiremos nos manter no caminho da santidade. Deus, que nos guarda em tempos de paz, vai nos guardar em momentos de dificuldade: Sl 16.8 “Tenho posto o Senhor continuamente diante de mim, porque ele está à minha mão direita, não serei abalado."
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O Que é Não Praticar a Iniquidade Segundo o Evangelho
Tradução e adaptação de citações extraídas do sermão de Thomas Manton, baseadas no Salmo 119.3, elaboradas pelo Pr Silvio Dutra.
“Eles não praticam iniquidade, mas andam nos seus caminhos” - (Salmo 119.3)
O salmista continua ainda a descrição de um homem bem-aventurado. Nos dois primeiros versículos, a santidade (que é o caminho para a evidência da bem-aventurança) é considerada em relação ao sujeito e ao objeto da mesmo, a vida e o coração do homem. A vida do homem: “Bem-aventurados os retos em seus caminhos." O coração do homem: “eles buscam com todo o coração."
Agora, a santidade é considerada, em suas partes, de forma negativa e positiva. As duas partes da santidade são: 1 - abster-se do pecado e 2 - aplicar-se para agradar a Deus. Você tem ambas neste versículo: “Eles não praticam iniquidade, mas andam nos seus caminhos."
Primeiro, você tem o homem bem-aventurado descrito negativamente, eles não praticam iniquidade. Ao ouvir estas palavras, ocorre uma dúvida, como pode então alguém ser bem-aventurado? porque “não há homem que viva e não peque”, Ec 7.20, e Tg 3.2: "Tropeçamos em muitas coisas”. Negá-lo, é uma mentira evidente
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contra a verdade, e contra a nossa. experiência. "Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós", 1 João 1.8. A expressão pode ser mal interpretada por um lado, afirmando-se a impecabilidade e perfeição dos santos. Por outro lado, pode ser mal interpretada por pessoas de uma consciência fraca e tenra, para o impedimento de seu consolo e regozijo em Deus. Quando ouvem que é este o caráter de um homem abençoado, “eles não praticam iniquidade,” eles concluem contra a sua própria regeneração, como sendo a causa de suas falhas diárias.
Para evitar estas dificuldades, perguntarei:
1. O que é praticar a iniquidade?
2. Quem são as pessoas entre os filhos dos homens das quais pode ser dito que não praticam a iniquidade?
Em primeiro lugar o que é praticar iniquidade? Se fizermos disto o nosso comércio e prática para continuar em desobediência intencional. Pecar é uma coisa, mas fazer do pecado nosso trabalho é outra: 1 João 3.9, "Aquele que é nascido de Deus não comete pecado;” ele não faz do pecado o seu trabalho, e Mat 7.23, "Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade." Esse é o caráter dos obreiros reprováveis da perversidade. Então temos João 8.34, "todo aquele que comete pecado é servo do pecado." O pecado é o seu comércio constante: Sl 139.24, "Veja se há algum caminho mau em mim.” Ninguém está absolutamente livre do pecado, mas não é o seu comércio, a sua maneira, o seu
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trabalho. Quando um homem faz a sua aplicação de mente e negócio seguir um curso de pecado, então é dito dele ser praticante da iniquidade.
Em segundo lugar, quem são aqueles dos quais é dito que não praticam iniquidade segundo Deus, embora eles falhem, muitas vezes por fraqueza da carne e por causa da violência da tentação? Resposta:
1. Todos que são renovados pela graça, e reconciliados com Deus, por meio de Jesus Cristo; a estes Deus não imputa qualquer pecado para a condenação, e a seu ver não praticam iniquidade. Isto é notável em 1 Reis 14.8. Diz-se de Davi que "Ele guardou os meus mandamentos e me seguiu de todo o coração, e fez somente o que era reto aos meus olhos." Como pode ser isso? Podemos delinear Davi por suas falhas, elas estão registradas em toda a palavra, mas aqui um véu é aplicado sobre elas, Deus não as colocou em sua conta. Há um motivo duplo porque suas falhas não foram estabelecidas em sua conta. Em parte, por causa de seu estado geral; pois elas estão em Cristo, tomadas em favor através dele, e "não há nenhuma condenação para os que estão em Cristo." Rom 8.1; por isso os erros e omissões particulares não alteraram sua condição. O que não deve ser entendido como se um homem não devesse se humilhar, e pedir perdão a Deus por suas fraquezas, não, porque, então, eles praticariam iniquidades, e elas serão postas em registro contra eles. Isto foi a fantasia grosseira dos Valentinianos, que afirmavam que não se contaminavam com o pecado que praticavam;
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embora, pessoas obscenas, ainda assim eles eram a seu ver como o ouro na poeira. Não, não, nós devemos recuperar a nós mesmos através do arrependimento, para obter o favor de Deus. Quando Davi se humilhou e se arrependeu, então Natã disse, 2 Sam 12.13: "O Senhor perdoou o teu pecado."
Em parte, também, porque sua inclinação habitual é fazer o contrário. Puseram-se a cumprir a vontade de Deus, para buscar e servir ao Senhor, embora eles estejam com muitas fraquezas. Um homem mau peca com deliberação e prazer, sua inclinação é para fazer o mal, ele faz provisão para as concupiscências. Rom 13.12, e as serve por uma sujeição voluntária, Tito 3.3. Mas aqueles que são renovados pela graça, não são devedores à carne; eles tomaram outra dívida e obrigações com eles, que é o servir ao Senhor, Rom 8.12.
Em parte, também, porque o curso e o modo geral é fazer o contrário - tudo funciona de acordo com a sua forma; a ação constante de uma natureza estão de acordo com o seu tipo. Assim, a nova criatura, as suas operações constantes estão de acordo com a graça. Um homem é conhecido por seu costume, e no curso de seus esforços, o que é o seu negócio. Se um homem constantemente, com facilidade, é levado muitas vezes ao pecado, ele descobre um hábito de alma, o temperamento de seu coração.
Os prados podem ser atravessados, mas o chão do pântano é alagado com o retorno de cada maré. Um filho de Deus pode ser levado a agir de forma contrária à inclinação da nova natureza;
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mas quando os homens são afundados e são vencidos com o retorno de cada tentação, e apostatam, isto evidencia o hábito do pecado.
E em parte, porque o pecado nunca leva à derrota facilmente, mas com alguns desgostos e resistências da nova natureza. Os filhos de Deus fazem o seu negócio evitar todo pecado, observando, orando, e os mortificando: Sl 39.1, "eu disse, eu vou tomar cuidado com os meus caminhos, para que eu não peque com a minha língua." E então há uma resistência ao pecado. Deus tem plantado graças em seus corações; o temor de Sua majestade, que opera a resistência, e, portanto, não há uma provisão completa do que eles fazem. Esta resistência, por vezes, é mais forte; então a tentação é vencida: "Como eu posso fazer esta maldade e pecar contra Deus?" Gên 39.9. Às vezes é mais fraca, e, então, é vencida pelo pecado, embora contra a vontade de um homem santo: Rom 7.15,18: "O mal que eu odeio, esse eu faço”. Isto é o mal que eles odeiam; eles protestam contra isso, pois eles são como homens que estão oprimidos pelo poder do inimigo. E então há um remorso depois do pecado: "O coração de Davi o acusou.” Lhes entristece e envergonha terem praticado o mal. Há ternura na nova natureza; Pedro pecou abominavelmente, mas ele saiu e chorou amargamente.
Bem, então, o ponto é este:
Doct. 1 Aqueles que são e serão bem-aventurados são os que fazem o seu negócio evitar todo o pecado.
Posso ilustrar isso por estas razões:
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1. Certamente eles serão abençoados, porque eles cuidam para remover aquilo que excita contendas e disputas, o muro de separação entre Deus e eles. É o pecado que separa: Isa 59.2: "Mas as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus.” Foi isso que lançou os anjos do céu, quando eles pecaram, Deus já não poderia suportar a sua companhia. Isto lançou Adão para fora do paraíso. Isto é o que impede os homens de terem comunhão com Deus.
2. Estes estão se preparando para o gozo de suas grandes esperanças: Col 1.12: "Quem nos fez idôneos para participar da herança dos santos na luz," I João 3.3: “Aquele que tem esta esperança purifica-se, assim como ele é puro."
Quando Ester foi escolhida para ser a noiva e esposa daquele grande rei, teve seus meses de purificação. O tempo que passamos no mundo são os meses de nossa purificação; isto é o que eles têm em mente como sendo o seu negócio, eles estão se preparando para a felicidade eterna. Eles se lembram de que são pequenos para aparecer diante do grande Deus, portanto, devem ser preparados.
José lavou as suas vestes quando ele estava para ir diante de Faraó.
Eles têm essa esperança de que verão a Deus como ele é, e que devem ser como ele, e ele vai aparecer para o seu conforto, por isso eles estão se preparando mais e mais.
3. Neles se inicia a verdadeira felicidade. Há graus na bem-aventurança - os anjos que nunca pecaram, os santos glorificados que pecaram, mas que não pecam mais; os santos sobre a
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terra, nos quais o pecado não reina; por isso é aqui que a felicidade deles começa. Como o pecado é tirado, por isso a nossa felicidade aumenta; primeiro Deus começa conosco com a justificação; ele tira o poder condenatório que está no pecado; e na santificação o trabalho prossegue, para que o pecado não reine posteriormente, portanto, estes começaram a sua felicidade, e eles se apressam em sua direção em ritmo acelerado.
Aplicação 1. Para julgamento e análise, se podemos ser contados entre os homens bem-aventurados, sim ou não. Há alguns que pensam, porque os filhos de Deus estão sujeitos a tantas falhas, e havendo tantas artimanhas e males no coração do homem, que não pode haver um julgamento sobre o caso entre os pecados do regenerado e do não regenerado. Mas, certamente, há uma diferença entre o pecado de um, e o do outro, e essa diferença pode ser discernida: 1 João 3.9, "Todo aquele que é nascido de Deus não vive pecando." Agora observe no verso 10: “Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo." Isto é o que distingue os filhos de Deus dos filhos do diabo. Bem, então, como devemos gerir esta descoberta, para que possamos ser capazes de julgar nossos próprios estados?
Primeiro, vamos considerar como o pecado pode estar em um homem abençoado, em um filho de Deus.
1. Eles têm uma natureza corrupta, eles têm pecado em si, bem como as demais pessoas, isto é enfim a sua miséria: Rom 7.24, "Miserável
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homem que sou", diz o santo apóstolo. O pecado, embora seja dejectum - derrubado em relação à regência, mas não é ejectum - expulso em relação à inerência; sua natureza corrupta permanece nele. Alguém comparou isto a uma figueira selvagem, ou hera em uma parede; corte o caule, os galhos, ramos, mas ainda haverá algo que estará brotando novamente até cobrir a parede. Assim é o pecado que habita em nós, apesar de nós orarmos, nos esforçarmos, e cortar as brotações aqui e ali, mas até que ele seja arrancado totalmente depois da nossa morte, ele permanece conosco.
2. Eles têm suas falhas e fraquezas diárias: Ec 7.20, “Não não, não há um homem justo sobre a terra, que faça o bem, e que nunca peque." Aqueles que, por seu estado geral, são homens justos e virtuosos, ainda carregam certos pecados dos quais não podem se livrar, e que são inevitáveis, como pecados de ignorância e, leviandade, dos quais não seremos livrados enquanto estivermos neste estado imperfeito. Assim também imperfeições de dever, pois não podemos servir a Deus com aquele elevado grau de reverência, alegria e perfeição que Ele requer. Há fraquezas inevitáveis que são de fato perdoadas.
3. Eles podem ser culpados de alguns pecados que por falta de vigilância poderiam ser evitados, como os pensamentos vãos, ociosos, discursos apaixonados, e muitas ações carnais. É possível que estes possam ser evitados pelas assistências comuns da graça, e se mantivermos uma estrita vigilância sobre nossos próprios
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corações. Mas, neste caso, os filhos de Deus podem ser vencidos e subjugados pela rapidez ou violência da tentação: Gál 6.1: "Se um homem for surpreendido nalguma falta, o tal” etc; Tg 1.14, “'Todo homem é tentado quando é atraído e seduzido pela sua própria concupiscência”.
4. Eles pode então cair abominavelmente, como Noé por excesso de bebida; Ló por incesto; Davi por adultério; Pedro por negação. Falhas e fraquezas que não são determinadas pela pequenez ou grandeza do ato, mas por outras circunstâncias concomitantes. Não pela pequenez do ato. Permitir-se afeto para os pequenos pecados é mortal e condenável: aquele que é infiel no pouco será infiel no muito. Cristãos, onde as tentações são fracas e impotentes, e de uma ligeira importância, elas podem ser mais facilmente refutadas, de modo que nossa rebelião a Deus por pequenos pecados pode ser maior. Um homem pode ter grandes afetos aos pequenos pecados; assim, isto pode se revelar uma iniquidade, um pecado abominável.
Por outro lado, grandes pecados podem ser fraquezas, como o incesto de Ló, o adultério de Davi, quando não é feito com pleno consentimento da alma, quando seus corações não estão totalmente carregados com elas. Iniquidades são determinadas pela sua forma: Judas 15, "para exercer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele.”,
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quando, com pleno consentimento da vontade, e quando isto é o curso de um ódio e desprezo habitual de Deus.
5. Um filho de Deus pode ter alguns males particulares, que podem ser chamados pecados predominantes (não com respeito à graça, que é impossível, que um homem seja renovado e tenha esses pecados que resistem à graça); mas deles se pode dizer que têm um predomínio em comparação com outros pecados; ele pode ter alguma inclinação especial para alguns males acima de outros. Davi teve a sua iniquidade, Sl 18.23. Veja, como os santos têm graças particulares; Abraão era eminente na fé, Timóteo na sobriedade, Moisés, na mansidão, etc. Então eles têm suas corrupções particulares que são mais adequadas ao seu temperamento e curso da vida. Pedro parece estar inclinado a tergiversação, e à hesitação em um tempo de angústia. Vamos encontrá-lo muitas vezes tropeçando nesse tipo de pecado; na negação de seu mestre, novamente, em Gál 2. 12, é dito que ele dissimulou por causa dos judeus, pois Paulo lhe resistiu na cara, porque era repreensível. É evidente, por experiência, que há corrupções particulares para as quais os filhos de Deus estão mais inclinados: isto aparece pelo grande poder e influência que elas têm para comandar outros males a serem praticados, pela sua inclinação para elas.
Em segundo lugar, quando a graça traz isto à lume, onde reside a diferença?
1. No fato de que eles não podem cair naquelas iniquidades em que há uma absoluta
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contrariedade à graça, como o ódio a Deus e a apostasia total, de modo que não podem pecar o pecado que é para a morte, 1 João 5.16.
2. No fato de que eles não pecam com todo o coração: Sl 119.176, “eu tenho andado desgarrado como ovelha perdida; procura o teu servo, pois não me esqueço dos teus mandamentos." Havia um pouco de Deus no coração, quando ele estava consciente de si mesmo de andar desgarrado, e Davi diz em outro lugar: “Eu não me apartei perversamente dos teus preceitos.”. Quando eles pecam, é com a antipatia e a relutância da nova natureza; isto é mais um estupro do que um consentimento. Bernard diz: “Um filho de Deus sofre pecado mais do que pratica, e o seu coração protesta contra isto.”
3. Isto não é o curso deles; não constante, fácil e frequente. Recaídas em pecados grosseiros, afirmam uma aversão habitual a Deus, pois o hábito é determinado pela constância e uniformidade dos atos; portanto, isto sucede de vez em quando debaixo de alguma grande tentação. Há pecado, e há uma forma de pecar: Sl 139.24, "Sonda-me e vê se há alguma forma de maldade em mim".
4. Quando eles caem, não descansam no pecado: "Será que eles caem, e não se levantarão?" Jer 8.4. Eles podem cair na terra, mas eles não repousam e não chafurdam como porcos na lama. Uma fonte pode ser enlameada, mas trabalha para ficar limpar de novo. A agulha que foi tocada com a magnetita pode ficar desconcertada, mas nunca pára até que ela
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aponte para o Norte novamente. Os filhos de Deus têm suas falhas, mas buscam o seu perdão, correm para o seu advogado, 1 João 2.1, humilham-se diante de Deus.
5. Suas quedas são santificadas. Quando eles têm ardido sob o pecado, eles crescem mais vigilantes. Um filho de Deus pode ter a pior na batalha, mas não na guerra. Algumas vezes a parte carnal pode conseguir a vitória, e eles podem cair, mas não numa queda final, mas veja a questão: Sl 51.6 : "No oculto me fazes conhecer a sabedoria." Davi pecou contra o Senhor, mas aprendeu a sabedoria, nunca confiar num coração impertinente, mas achou-se no fim, melhor.
6. A Graça é descoberta pelos esforços constantes que eles fazem contra o pecado. Qual é o curso constante de um cristão? Eles gemem sob os resquícios do pecado, que é o seu fardo, que eles têm uma natureza tão má, Rom 7.24. Eles voam para a graça de Deus em Cristo para receberem perdão diariamente, 1 João 1.9. Eles estão sempre lavando suas vestes no sangue do Cordeiro, Apo 7, e todos os dias estão se limpando da imundícia que contraem pelo pecado: João 13.10, “Aquele que está lavado, não necessita lavar senão os pés." Um homem que veio de uma viagem, num país onde havia o costume de se andar descalço, quando chegou em casa, teve que lavar seus pés. Assim, um homem que se reconcilia com Deus, ainda que tenha tomado um banho, na fonte que Deus abriu para lavar a impureza, deve ainda, todos os dias, lavar seus pés, limpando-se pelo sangue de
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Cristo, cada vez mais, porque ele contraiu uma nova contaminação. Então, usará todos os esforços contra isto, Col 3.5; com a oração, esforçando-se, vigiando, mortificando as disposições da carne. Eles não vivem voluntariamente e sem oposição debaixo do pecado e da sua tirania escravizante. A bendita e habitual inclinação deles é fazer o contrário, por isso que se diz que não praticam iniquidade, ao passo que aqueles que são imprudentes e descuidados de sua alma, do pecado e que nunca o colocam para fora do coração, são os obreiros da iniquidade.
Aplicação 2. Se este é o caráter de um homem abençoado, fazer disto o nosso negócio para evitar o pecado, então aqui está o cuidado para o povo de Deus:
1. Ter cuidado com todo o pecado.
2. Ser muito cauteloso contra os pecados graves, cometidos contra a luz da consciência.
3. Tomar cuidado com a continuação no pecado.
Em primeiro lugar, para ter cuidado com todo o pecado. Quanto mais você tem a marca de um homem abençoado: 1 João 2.1, “estas coisas vos escrevo, para que não pequeis." Apesar de você ter sido perdoado e purificado pelo sangue de Cristo, de você ter um advogado, todavia, não peque. Agora os motivos para manter esse cuidado são tomados a partir de Deus, de nós mesmos, e a partir da natureza do pecado.
1. De Deus. Não pecar. Por quê? Porque é uma ofensa a Deus. Considere como o pecado é contrário a todas as pessoas da Trindade. A Deus, o Pai, como um legislador, sendo um
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desprezo de sua autoridade, 1 João 3.4. O pecado é ἀνομίαν, “a transgressão da lei”, ou seja, um ato de deslealdade e rebelião contra a coroa do céu. A desconsideração para com a lei divina. O pecado aberto como ele foi proclamado como sendo rebelião e guerra contra Deus; e o pecado privado é uma conspiração contra Ele. Todas as criaturas têm uma lei: Sl 148.6, “puseste-lhes um limite, além do qual não podem passar.” E elas são menos exorbitantes em seus movimentos do que nós. Pecar é uma maior violação da lei da natureza para o homem do que para o mar que ultrapassa os seus limites. As criaturas não têm sentido e razão, mas elas não passam além da lei que Deus definiu para elas. Isto deveria prevalecer com a nova criatura em Cristo Jesus, especialmente, com aqueles cujos corações Deus tem adequado à lei, de modo que eles oferecem uma violência à sua própria consciência. Tenham cuidado para não entrar em conflito com Deus, desprezando a sua autoridade. Qualquer pecado leve que é cometido a lei o proíbe: 2 Sam 12.9, “Por isso tu desprezas os seus mandamentos?” Deus vela muito sobre a sua lei, e um til não passará dela, - e você a despreza, vai torná-la sem efeito, quando você ceder ao pecado. Além disto é um abuso do seu amor: 1 João 3.1, "Vede que grande amor o Pai nos mostrou," vocês são filhos de Deus, e serão descuidados com o seu amor? Seus pecados são como a traição de Absalão contra seu pai. Os recabitas são elogiados por terem obedecido à ordem de seu pai, Jer 35. O pai deles estava morto, mas o nosso está vivo; vocês
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serão filhos renunciando a Deus e tomando partido do diabo, e cometendo pecado, - vocês a quem o Pai mostrou tanto amor a ponto de lhes chamar de seus filhos? Então isto é um erro contra Jesus Cristo - ao seu mérito, ao seu exemplo. Ao seu mérito. Cristo veio para tirar o pecado, e você vai ligar os cabos mais rapidamente do que Cristo veio para soltar? Então você irá derrotar o propósito de sua morte, e colocar o seu Redentor exposto à vergonha. Você procura anular a grande finalidade para a qual Cristo veio, que foi para remover o pecado. E, além disso, você deprecia o valor do preço que ele pagou, porque você faz do sangue de Cristo uma coisa barata, quando despreza a graça e a santidade, ao não fazer nada daquilo que Lhe custou tão caro, e você diminui a grandeza dos Seus sofrimentos.
E isto é um erro contra o seu padrão. Você deve ser "puro como Cristo é puro", 1 João 3.3, e veja 3.7, ser "justo como ele é justo." Você deve descobrir a pessoa santa que Cristo foi, por uma conformidade a ele em sua conversação. Agora, você vai desonrá-lo? Que Cristo estranho você pregará para o mundo, quando seu nome está sobre você - você dará lugar para ao pecado e à insensatez? E é um erro contra Deus, o Espírito Santo, para tristeza dele. Seu grande e primeiro trabalho foi nos lavar do pecado, Tito 3.5. Você se esquece que este trabalho foi feito no seu coração, quando retorna ao pecado novamente, e que você "tem sido purgado de seus antigos pecados", 2 Pedro 1.9, e a habitação permanente do Espírito no coração é para verificar as
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concupiscências da carne, e para prevenir os atos pecaminosos. "Se, pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis." Rom 8.13.
2. Por um argumento tirado de nós mesmos, isto é muito inadequado para você. Nos professamos regenerados e nascidos de Deus: 1 João 3.9, "Aquele que é nascido de Deus não peca." Isto não é somente contrário ao seu dever, mas à sua nova natureza, porque você é uma nova criatura. Seria monstruoso o ovo de uma criatura trazer uma ninhada de outro tipo. Isto é uma produção não natural, a saber, a de uma nova criatura pecar, por isso para vocês que são nascidos de Deus, isto é incomum e inadequado. Não desonre o seu nascimento do alto.
3. Considere a natureza do pecado; se você lhe der lugar, ele irá invadir ainda mais. Os pecados roubam no trono insensivelmente, e ficando acostumados a eles em nós por muito tempo, nós não podemos facilmente sacudir o jugo ou nos livrar de sua tirania. Eles vão de pouco a pouco, e ganham força por atos multiplicados. Portanto, devemos ter muito cuidado para evitar todo o pecado.
A segunda parte do cuidado é, cuidado com os pecados graves, cometidos contra a luz e a consciência. Quando somos tentados a pecar, digamos com José: Gênesis 39.9, “'Como posso fazer essa maldade e pecar contra Deus?" Há maior deliberação e vontade em qualquer ação, o pecado é a mais suja. Considere, pecados imundos são uma mancha que vai ficar muito tempo em nós. Veja 1 Reis 15.5, "Davi andou em
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todos os caminhos do Senhor, e não se desviou de tudo o que lhe ordenou em todos os dias da sua vida, a não ser no caso de Urias, o hitita". Ora, havia muitas outras coisas na qual Davi falhou; você lê sobre sua timidez e desconfiança em Deus: “eu vou perecer um dia pela mão de Saul.” Lemos de sua dissimulação, fingindo-se de louco na companhia dos filisteus. Lemos sobre a sua injustiça para com Mefibosete, sua afeição exagerada por Absalão, sua indulgência para com Amon. Lemos sobre o seu censo do povo, e, desobediência a Deus, que custou a vida de milhares de pessoas instantaneamente, e todas elas são grandes falhas, mas estas foram facilmente lavadas, mas o caso de Urias, deixou uma cicatriz e uma mancha que não foi facilmente lavada.
Em terceiro lugar, cuidado com a continuação no pecado. Como podemos continuar no pecado? Em que sentido? Há três coisas que eu vejo no pecado – Falta, culpa e mancha.
1. A falta é continuada quando os atos inerentes a ela se repetem, quando caímos no mesmo pecado de novo e de novo. Recaídas são muito perigosas, como um osso quebrado, muitas vezes no mesmo lugar, você está em perigo disso, antes da brecha ser bem feita entre Deus e você, como Ló duplicando o seu incesto: aventurar-se uma vez e, novamente, é muito perigoso.
2. A culpa acompanhará um homem até que haja o arrependimento sério e solene, até que se processe o perdão em nome de Cristo.
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3. Existe a mácula, a mancha, pela qual os escolásticos entendem uma inclinação para pecar novamente, a má influência do pecado perseverando até usarmos esforços sérios para mortificar a raiz dele. Quando temos sido derrotados por qualquer desejo, esta luxúria deve ser mortificada. Por exemplo, Jonas se arrependeu de abandonar a sua chamada, quando ele foi lançado no ventre da baleia, mas o pecado apareceu de novo, porque ele não mortificou a raiz, que era o seu orgulho. Então, não é o suficiente lamentar o pecado, mas devemos lancetar a ferida, e descobrir a raiz e o cerne da questão antes, e então tudo ficará bem.
Um homem pode se arrepender da erupção do pecado, o primeiro ato, mas a inclinação para o pecado, novamente, não é retirada. Juízes 16.2. Sansão amou uma mulher de Gaza, e ela lhe havia traído, mas pela remoção dos portões da cidade, ele salvou a sua vida: possivelmente sobre aquela experiência ele deve ter se arrependido de sua loucura e amor desordenado por aquela mulher. Mas, ai! a raiz do pecado permaneceu: por isso ele se apaixonou por outra mulher, Dalila. Portanto, para que você fizesse o que é seu dever, você deveria olhar para a culpa, para que a mesma não seja renovada, para que não seja continuada por omissão de arrependimento; e para que também a mancha não fique sobre você, por não procurar a raiz da fraqueza, a causa do pecado pela qual temos sido derrotados. Assim, para a primeira parte do texto, “eles não praticam iniquidade.”
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A segunda parte do texto é, “eles andam em seus caminhos.” Esta é a parte positiva, não somente evitando o pecado, mas a prática da santidade, está implícita. Observe;
Doct. 2. Não é suficiente apenas evitar o mal, mas temos que praticar o bem.
"Eles não praticam iniquidade,” então “eles andam nos seus caminhos." Por quê?
1. A lei de Deus é positiva, bem como negativa. Em cada comando existem preceitos e proibições, para que possamos ter a Deus, bem como renunciar ao diabo, e manter comunhão com Ele, assim como evitar a nossa própria miséria: Amós 5.15, "Aborrecei o mal, e amai o bem", Rom 12.9, "Aborrecei o mal, apegando-se ao que é bom."
2. As misericórdias de Deus são positivas, bem como privativas. Nossa obediência deve corresponder às misericórdias de Deus. Agora, Deus não somente nos livra do inferno, com também nos chama para a glória. João 3.16: O fim da vinda de Cristo é que "não pereçamos" (é a parte privativa), mas "para que tenham a vida eterna" (é a parte positiva). Na aliança Deus se comprometeu em ser "um sol e um escudo”, Sl 84.11, não somente um sol, que é a fonte da vida e da vegetação e bênçãos, mas um escudo para nos defender do perigo no mundo, por isso a nossa obediência deve ser positiva, bem como privativa.
Aplicação. Isto reprova aqueles que descansam em negativas. Como foi dito do imperador, que não foi tão vicioso quanto virtuoso. Muitos têm toda a sua religião executada em cima de
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negativas: Lucas 17.11: "Eu não sou como este publicano." Esse solo nada é, embora não produza espinhos e abrolhos, se não produzir boas colheitas. Não somente o servo rebelde é lançado no inferno, o qual bateu no seu conservo, que comeu e bebeu com o bêbado, mas o servo ocioso, que enterrou o seu talento. Meroz é amaldiçoado, não porque se opôs a lutar, mas por não ajudar - Juízes 5.23. O rico não tirou a comida de Lázaro, mas ele não lhe deu de suas migalhas. Muitos dirão, não servi nenhum outro deus; Ai! mas amou, reverenciou e obedeceu ao Deus verdadeiro? No segundo mandamento, eu abomino ídolos, mas tem prazer nas ordenanças? Eu não juro e não nego o nome de Deus por maldições; ai! mas glorificas a Deus e o honra? Eu não violo o sábado; mas tu o santificas? Tu não fazes coisas erradas com teus pais, mas os reverencia? E tu que não és assassino, fazes o bem a teu próximo? Tu não és adúltero, mas és sóbrio e temperado de modo santo em todas as coisas? Geralmente os homens cortam metade da sua conta, como o mordomo infiel da parábola. Nós não pensamos nos pecados de omissão. Se não estamos bêbados, se não somos adúlteros, e pessoas profanas, nós não pensamos o que significa não ser omisso com relação a Deus, e falta de reverência à sua santa majestade; para deleitar-se nEle e nos Seus caminhos.
Em último lugar, tome conhecimento do conceito, pelo qual os preceitos de Deus são expressos, aqui eles são chamados de caminhos, "que anda nos seus caminhos” – Como é isto? -
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não como ele nos deu um exemplo, para ser santo como ele é santo, e justo assim como ele é justo, mas seus caminhos são os seus preceitos. Por que eles são os seus caminhos? Porque eles são designados por Deus, e prescritos por ele. Que mostra o mal de deserção e extravio dele. Porque isto é um desprezo de Deus e da sua autoridade e sabedoria. O grande e sábio Deus, tem descoberto um caminho para que a criatura caminhe nele, para que possa alcançar a verdadeira felicidade; e estaríamos ainda andando em atalhos? Isto é um desprezo de sua bondade: "Ele te declarou, O homem, o que é bom,” como andar passo a passo. Então, eles são os caminhos de Deus, pois eles levam ao prazer dEle. A partir daí podemos aprender que muitos que desejam estar onde ele está, não entrarão ali, porque eles não andam no caminho que conduz a Ele. Um homem nunca pode chegar a um lugar, caso não vá pelo caminho que vai levá-lo para lá: assim nunca chegarão à alegria de Deus numa condição abençoada, aqueles que não tomaram o caminho do Senhor para a bem-aventurança, que não seguem o curso que Deus tem prescrito para eles na sua palavra.
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DESVENDANDO O MISTÉRIO
DE LEVÍTICO 19.17
“Não odiarás a teu irmão no teu coração; não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por causa dele.” (Lev 19.17)
Por Thomas Manton (traduzido e adaptado por Silvio Dutra)
Eu vou falar com você neste momento sobre o cristão e a reprovação fraterna. Nosso primeiro cuidado deveria ser que nós mesmos não fôssemos achados transgressores por causa do nosso próximo, por não participarmos dos pecados de outros; não somente por conivência às más ações deles, como também por uma conivência silenciosa por não lhes advertirmos quanto aos seus pecados, quando somos convocados por Deus, para a Sua glória, que lhos advirtamos quanto ao seu dever, e do perigo que estão correndo.
O ódio é proibido quando a reprovação é prescrita, porque é um impedimento ou obstáculo que deve ser removido, porque há uma suposição de se cometer uma injustiça, quando se nutre ódio ou ira no coração, que não permanecerá neste estado por muito tempo lá e se transformará em vingança e maldade. Basta portanto, mostrar-lhes o pecado que praticaram com vistas a trazê-los ao arrependimento.
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De Absalão se diz o seguinte em II Sm 13.22: “Absalão, porém, não falou com Amnom, nem mal nem bem, porque odiava a Amnom por ter ele forçado a Tamar, sua irmã.”.
Amnon praticou a injustiça, mas Absalão não lhe reprovou, porque ele o odiou. Maldade implacável e desejo de vingança são escondidos debaixo de silêncio e dissimulação: Ele não falou nem mal, nem bem a Amnon, quanto ao assunto do estupro da sua irmã; e ele não reprovou o fato de maneira que pudesse esconder a sua malícia, até a ocasião em que pudesse levar a sua vingança à execução.
Então Deus, conhecendo bem esta disposição do homem, deu através de Moisés este mandamento de não se odiar o irmão, e reprová-lo de forma sábia. Portanto, reprove-o pelas injustiças que praticar, mas não lhe odeie por tais coisas.
Semelhante a isto é a lei de Cristo em Lc 17.3: “Tende cuidado de vós mesmos; se teu irmão pecar, repreende-o; e se ele se arrepender, perdoa-lhe.”. Ele diz: “Tende cuidado de vós mesmos” quando o teu irmão pecar, porque você ficará exposto à possibilidade de guardar ódio e rancor contra ele, e em vez disso, deve repreendê-lo e se dispor a perdoá-lo caso se arrependa.
Faça o máximo para reduzir qualquer ofensa, embora tenha sido prejudicado; não deseje se vingar, mas busque uma oportunidade para lhe perdoar diante do seu arrependimento.
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“Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, terás ganho teu irmão;” (Mt 18.15).
Quer dizer, o teu amor deve remover todos os pensamentos de vingança contra ele; sim, e o levará a se esforçar a usar todos os métodos prudentes para trazê-lo a um senso da sua falta para contigo, e os modos mais discretos e suaves serão realizados primeiro.
Aquele que não reprova o seu irmão quando ele faz qualquer coisa errada, realmente não o ama, e o odeia.
Há duas coisas que nos exigem a reprovação – zelo pela glória de Deus, e amor à alma do nosso próximo.
Há uma falha no nosso zelo se nós não buscarmos vindicar a honra de Deus quando ela for ferida por outros: Salmo 69.9: “Pois o zelo da tua casa me devorou, e as afrontas dos que te afrontam caíram sobre mim.”.
Danos feitos a Deus e ao evangelho são como injustiças pessoais feitas a nós mesmos. Assim há uma falha em nosso amor por outros se deixamos as suas almas ficarem em perigos de juízos divinos, sem que os reprovemos com vistas a conduzi-los ao arrependimento. Assim, a reprovação é oposta ao ódio, e a lisonja que é falsa e uma corrupção do amor: Prov 28.23: “O que repreende o homem gozará depois mais amizade do que aquele que lisonjeia com a língua.”.
Quando nós estivermos a ponto de reprovar outros pelas suas faltas, temos que temer ofendê-los, porque toda a amizade seria
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rompida entre nós e eles, e assim fica-se sujeito à tentação de incorrer em outros pecados. Entretanto, haja em princípio um pequeno desagrado da parte reprovada, ela verá com o tempo que você lhe mostrou uma verdadeira amizade, considerando que outros lhe agradaram e o lisonjearam nos seus pecados, e tendo cuidado pelo humor dele, não tiveram nenhum cuidado em relação à sua alma, na verdade odiaram a sua alma, porque se o amassem de fato procurariam livrá-lo das consequências danosas eternas sobre a sua alma em razão do pecado.
É possível que você possa enfurecer um insensato mau e arrogante, entretanto, você cumpriu o seu dever para livrar a sua própria alma.
Mas de outros, você obterá gratidão por ter-lhes feito um verdadeiro serviço de amor. De modo que o temor de romper uma amizade provará ser um meio de nutrir o verdadeiro amor. Prov 9.8: “Não repreendas o escarnecedor, para que não te odeie; repreende o sábio, e ele te amará.”.
“5 Melhor é a repreensão franca do que o amor encoberto.
6 Leais são as feridas feitas pelo amigo, mas os beijos do inimigo são enganosos.” (Pv 27.5,6).
Uma repreensão franca é feita quando, às vezes, convencemos os homens dos seus erros, ou dos seus pecados, e isto é melhor do que amor encoberto, porque isso é inútil e não nos ajuda em nada.
Aquele que me ajuda a deixar o caminho errado, como quem salva alguém de se afogar ou ser
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queimado pelo fogo, embora ele quebre um braço ou perna, terá salvo a minha vida, ainda que tenha usado um remédio amargo como o da repreensão, mas terá feito a mim um grande benefício muito mais do que aquele que somente professa um grande amor por mim, e me deixa perecer em meus pecados.
Uma reprovação afiada é chamada em Provérbios de feridas leais produzidas pelo amigo, porque visa ao meu bem, mas os beijos de um inimigo não fazem bem algum à minha alma, além de serem enganosos. Por beijos devem ser entendidas todas as declarações de amor que encobrem as nossas faltas, ou que visem fazer-nos o mal de maneira encoberta, tal como Joabe beijou Amasa e o apunhalou (II Sm 20.9,10), e Judas beijou Cristo e o traiu (Mt 26.48,49).
“Porque o SENHOR repreende aquele a quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem.” (Pv 3.12). O verdadeiro amor repreende a quem quer bem. Deus ama os seus filhos afetuosamente, mas não deixará que se percam nos seus pecados, e para isto Ele usará às vezes de disciplina para corrigi-los.
Satanás procura manter os homens adormecidos em seus pecados, oferecendo-lhes os prazeres da carne, mas Deus usará a vara da correção para desviar os seus filhos disto.
“Fira-me o justo, será isso uma benignidade; e repreenda-me, será um excelente óleo, que não me quebrará a cabeça; pois a minha oração também ainda continuará nas suas próprias calamidades.” (Sl 141.5).
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Davi percebeu quanto dano tinham produzido em Saul aqueles lisonjeadores que o cercavam, e por isso julgava uma grande bênção de Deus ter amigos piedosos e fiéis sobre ele que não concordariam com qualquer injustiça que viesse a praticar, como também o reprovariam por isto.
A reprovação pode parecer como uma ferida à carne que está orgulhosa e impaciente para não ser contraditada; mas é o fruto de um amor sincero; e é comparado a um óleo precioso que é derramado na nossa cabeça, para a nossa saúde e alegria.
Voltando agora ao nosso texto de Lev 19.17 apreciemos a própria exortação: “não deixarás de repreender o teu próximo”. E nós temos aqui tanto o objeto (o próximo), quanto o ato (a repreensão).
Em Lc 10.29 Jesus ensinou que o próximo é aquele que necessita do nosso amor, seja ele um judeu ou um samaritano. Isto é, seja um amigo ou inimigo, como também ensinou diretamente em Mt 5.43,44.
A ordenança se aplica assim a todas as pessoas, mas especialmente aos da família da fé (Gál 6.10).
Os incrédulos são nosso próximo e devem ser amados com um amor verdadeiro, além do amor que dedicamos aos irmãos (filadélfia) que é o amor ágape, que é requerido entre os cristãos (II Pe 1.7).
Então este dever da reprovação deve ser praticado especialmente na Igreja. (Mt 18.15-17).
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O ato de reprovação deve ser feito com misericórdia e prudentemente.
“Este testemunho é verdadeiro. Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sãos na fé.” (Tt 1.13).
“exortes, com toda a longanimidade e doutrina.” (II Tim 4.2).
Uma censura orgulhosa não é uma reprovação amorosa. Requer-se paciência, amor, longanimidade e doutrina para que se possa obter um melhor resultado.
“Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai o tal com espírito de mansidão; olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado.” (Gál 6.1).
Nossa indignação contra o pecado não nos deve transportar para além da nossa piedade pela pessoa, e não deve ser motivo para o rigor e severidade de censura que procedem de orgulho e que visa submeter o errado, em vez de ajudá-lo a se levantar da sua queda.
O que está em vista é a correção do nosso irmão e não a destruição dele, ou nos compararmos a ele, fazendo uma boa opinião em relação a nós mesmos como se fôssemos singulares em santidade.
Por isso todas as circunstâncias devem ser pesadas prudentemente, para que se possa agir da maneira correta.
“Como pendentes de ouro e gargantilhas de ouro fino, assim é o sábio repreensor para o ouvido atento.” (Pv 25.12). Quer dizer, a reprovação sábia é uma joia preciosa.
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Finalmente, consideremos em nosso texto de Lev 19.17 o argumento pelo qual este dever nos é ordenado: “e não levarás sobre ti pecado por causa dele”. Assim como não devemos deixar que nenhuma fagulha de fogo venha a incendiar a roupa de outros, de igual modo não devemos deixar que nenhuma marca pecaminosa permaneça nas consciências deles e conversações, e para tanto devemos exortá-los a buscar o perdão que há na graça de Cristo, em face do seu arrependimento.
Mas ao reprovarmos outros, devemos ter o cuidado de não condenarmos a nós mesmos, por sermos achados também na prática do pecado tanto quanto eles (Rom 2.1).
Aquele que tinha o dever de salvar uma alma da morte e que se mostrou indiferente a isto terá também o seu castigo por ter se omitido no dever que lhe é imposto por Deus para a alertar o seu próximo quanto ao perigo que corre a sua alma em pecado (Ez 3.18).
Esta reprovação fraterna é um dever necessários pelo qual todos os cristãos estão ligados, e obrigados por Deus a praticarem.
A reprovação é uma advertência e não um ato que visa à humilhação ou destruição.
Especialmente os ministros do evangelho devem dar atenção especial a isto, trabalhando para convencer os malfeitores dos seus maus caminhos, mas isto é um dever de todos os cristãos (I Tes 5.14). Isto é uma forma do amor e de zelo pela santidade ao Senhor que é devido por todos os cristãos mutuamente.
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“14 Mas, se alguém não obedecer à nossa palavra por esta carta, notai o tal, e não vos mistureis com ele, para que se envergonhe.
15 Todavia não o tenhais como inimigo, mas admoestai-o como irmão.” (II Tes 3.14,15).
Todos os cristãos têm o dever de preservar a Igreja de Cristo de escândalos, e é por isso que ao verem que qualquer homem tenha abandonado o caminho do Senhor, é seu dever preveni-lo de sua falta.
Sabendo que os homens são hábeis para serem pacientes com os seus pecados, assim também são em relação aos pecados dos outros, e sendo este dever de reprovação de grande utilidade, Satanás procurará por todos os meios tentar impedir isto com o seu poder, de maneira que a maioria das pessoas são omissas em relação a isto, por causa do endurecimento natural reforçado pelo Inimigo quanto à recepção da reprovação como um ato de amor, e não como motivo para indignação.
Todavia, independente disto somos obrigados a ajudar a levantar todo o que está caído em seus pecados, assim como nos dispomos a levantar naturalmente quem sofre uma queda, fisicamente falando, e fica na expectativa de receber auxílio para ser levantado.
“Dize-lhes mais: Assim diz o SENHOR: Porventura cairão e não se tornarão a levantar? Desviar-se-ão, e não voltarão?” (Jer 8.4). Por isso Deus ordena como um ato de amor através do profeta, que aqueles que estão caídos se disponham a se levantar.
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Levantar um irmão caído é portanto, uma dívida de amor que temos para com ele.
Se a Lei de Deus ordena a ajuda ao próximo a levantar um animal de carga de sua posse que tenha caído (Ex 23.4; Dt 22.1), quanto mais não é nosso dever levantar os homens que se encontram caídos, pela pregação do evangelho a eles, alertando-lhes do perigo que correm se permanecerem caídos em seus pecados.
Por isso Deus se dirige de modo duro aos maus pastores que não ajudam as ovelhas de suas igrejas a permanecerem de pé e saudáveis diante dEle: “As fracas não fortalecestes, e a doente não curastes, e a quebrada não ligastes, e a desgarrada não tornastes a trazer, e a perdida não buscastes; mas dominais sobre elas com rigor e dureza.” (Ez 34.4).
Contudo, como dissemos antes, este não é um dever exclusivo dos pastores, mas um dever de amor que todos os cristãos devem ter mutuamente entre si:
“Eu próprio, meus irmãos, certo estou, a respeito de vós, que vós mesmos estais cheios de bondade, cheios de todo o conhecimento, podendo admoestar-vos uns aos outros.” (Rom 15.14).
Este texto de Romanos confirma a necessidade de bondade e conhecimento para o exercício desta admoestação mútua.
“8 Não te precipites em litigar, para que depois, ao fim, fiques sem ação, quando teu próximo te puser em apuros.
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9 Pleiteia a tua causa com o teu próximo, e não reveles o problema a outrem,
10 Para que não te desonre o que o ouvir, e a tua infâmia não se aparte de ti.” (Pv 25.8-10).
Se nós corremos para a lei, sem usar de métodos de bondade e prudência, nós corremos o risco de perda e infâmia, pelo modo indevido que podemos conduzir a reprovação de faltas alheias.
“22 E apiedai-vos de alguns, usando de discernimento;
23 E salvai alguns com temor, arrebatando-os do fogo, odiando até a túnica manchada da carne.” (Jd 22,23).
Deve ser considerado o valor deste preceito, que não é uma direção arbitrária que nós podemos omitir ou observar a nosso bel prazer, mas é um preceito necessário que devemos obedecer.
Em Provérbios 24.11,12, nós vemos uma reafirmação da ordenança de Levítico 19.17:
“11 Livra os que estão sendo levados à morte, detém os que vão tropeçando para a matança.
12 Se disseres: Eis que não o sabemos; porventura aquele que pesa os corações não o percebe? e aquele que guarda a tua vida não o sabe? e não retribuirá a cada um conforme a sua obra?” (Pv 24.11,12).
Este mandamento deve ter o seu equilíbrio com a ordenança de Cristo de não se lançar pérolas e coisas santas aos cães e aos porcos.
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Evidentemente, seria um grande pecado negar o conhecimento da fonte de salvação a quem tem grande sede por ela e não sabe como encontrá-la, e estando no nosso domínio fazê-lo seria um grande pecado a nossa omissão.
De modo que a Palavra nos ordena a não admoestar o ímpio e insensato porque a repreensão não entrará neles, mas é um dever repreender os sábios, sobretudo os que são da família da fé, para que se tornem ainda mais sábios.
O apóstolo Paulo pratica de maneira muito consciente este preceito pelo temor de não ser responsabilizado por Deus pelas vidas que se perdessem debaixo do seu ministério e haviam sido colocadas ao alcance da sua ministração, conforme podemos ver por exemplo em suas palavras em At 20.17-27:
“17 De Mileto mandou a Éfeso chamar os anciãos da igreja.
18 E, tendo eles chegado, disse-lhes: Vós bem sabeis de que modo me tenho portado entre vós sempre, desde o primeiro dia em que entrei na Ásia,
19 servindo ao Senhor com toda a humildade, e com lágrimas e provações que pelas ciladas dos judeus me sobrevieram;
20 como não me esquivei de vos anunciar coisa alguma que útil seja, ensinando-vos publicamente e de casa em casa,
21 testificando, tanto a judeus como a gregos, o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus.
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22 Agora, eis que eu, constrangido no meu espírito, vou a Jerusalém, não sabendo o que ali acontecerá,
23 senão o que o Espírito Santo me testifica, de cidade em cidade, dizendo que me esperam prisões e tribulações,
24 mas em nada tenho a minha vida como preciosa para mim, contando que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus.
25 E eis agora, sei que nenhum de vós, por entre os quais passei pregando o reino de Deus, jamais tornará a ver o meu rosto.
26 Portanto, no dia de hoje, vos protesto que estou limpo do sangue de todos.
27 Porque não me esquivei de vos anunciar todo o conselho de Deus.”.
Certamente muito devia pesar para o apóstolo não somente os textos da Lei de Moisés, do Livro de Provérbios, dentre outros, como também a citação de Ezequiel 33.2-9:
“2 Filho do homem, fala aos filhos do teu povo, e dize-lhes: Quando eu fizer vir a espada sobre a terra, e o povo da terra tomar um dos seus, e o constituir por seu atalaia;
3 se, quando ele vir que a espada vem sobre a terra, tocar a trombeta e avisar o povo;
4 então todo aquele que ouvir o som da trombeta, e não se der por avisado, e vier a espada, e o levar, o seu sangue será sobre a sua cabeça.
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5 Ele ouviu o som da trombeta, e não se deu por avisado; o seu sangue será sobre ele. Se, porém, se desse por avisado, salvaria a sua vida.
6 Mas se, quando o atalaia vir que vem a espada, não tocar a trombeta, e não for avisado o povo, e vier a espada e levar alguma pessoa dentre eles, este tal foi levado na sua iniquidade, mas o seu sangue eu o requererei da mão do atalaia.
7 Quanto a ti, pois, ó filho do homem, eu te constituí por atalaia sobre a casa de Israel; portanto ouve da minha boca a palavra, e da minha parte dá-lhes aviso.
8 Se eu disser ao ímpio: O ímpio, certamente morrerás; e tu não falares para dissuadir o ímpio do seu caminho, morrerá esse ímpio na sua iniquidade, mas o seu sangue eu o requererei da tua mão.
9 Todavia se advertires o ímpio do seu caminho, para que ele se converta, e ele não se converter do seu caminho, morrerá ele na sua iniquidade; tu, porém, terás livrado a tua alma.”.
Nós estamos assim, debaixo do perigo de ter que suportar o castigo por causa do pecado que não reprovamos, por não termos principalmente alertado às pessoas que estão debaixo da influência do nosso ministério que elas estão em grave perigo vivendo no pecado. Especialmente os ministros do evangelho estão encarregados deste dever, mas é um dever comum a todos os cristãos.
Devemos lembrar que é uma questão de vida eterna, ou de morte espiritual ou eterna, que se encontram no cumprimento do preceito, e
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assim, toda negligência carrega consigo grande culpa. Isto deveria nos estimular mais ao nosso dever de pregar o evangelho a toda criatura.
No caso de cristãos que são admoestados a que se arrependam de seus pecados, que recebemos o galardão da fidelidade em cumprir o preceito, em razão do que Jesus diz em Suas palavras, que com isto, ganhamos o nosso irmão, isto é, nós o recuperamos para viver para Deus através da nossa admoestação (Mt 18.15).
No caso de incrédulos, o mesmo amor que nos levaria a livrá-los da iminência de uma morte física temporal, deveria ser exercido muito mais para tentar livrá-los da morte eterna (Hb 3.12,13).
Não somente os que são superiores a outros têm o dever de reprovar os pecados dos que lhes são inferiores, mas estes têm o mesmo dever para com os seus superiores, como Joabe fez em relação ao rei Davi, bem como o profeta Natã. E este dever em relação aos superiores é ainda maior porque o perigo que eles correm é maior do que o nosso, porque Deus cobrará mais de quem mais é dado.
Entretanto, em relação aos superiores nós devemos usar de modéstia e reverência (I Tim 5.1).
O admoestador deveria ter uma chamada para tal função por alguma forma de relação existente entre ele e o ofensor. Como por exemplo, de ministro e profeta, como no caso de Davi e Natã, ou como conselheiro, como no caso de Joabe quando reprovou Davi; ou como relação matrimonial, no caso de Abigail que
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reprovou Nabal; ou ainda de um filho em relação ao pai, como Jônatas fez com Saul (I Sm 19.4); de um servo para o seu senhor, como Daniel fez em relação a Nabucodonosor (Dn 5.27); de um amigo para o seu amigo (Pv 27.6) etc. De maneira que este dever é universal, e deve ser realizado na ocasião apropriada.
Quem dera, todos tivessem um coração humilde e uma cerviz amolecida para aceitarem a repreensão, porque conforme se diz em Provérbios 15.31,32:
“31 O ouvido que escuta a advertência da vida terá a sua morada entre os sábios.
32 Quem rejeita a correção menospreza a sua alma; mas aquele que escuta a advertência adquire entendimento.”.
Quem rejeita a correção por não dar ouvido à advertência, menospreza a sua alma. E quantos não estão dispostos a isto por causa do endurecimento do pecado?
De modo que todo aquele que for verdadeiramente prudente, dará ouvido à repreensão, que é segundo a doutrina, como se vê em Pv 17.10:
“Mais profundamente entra a repreensão no prudente, do que cem açoites no insensato.”.
Nós vemos assim, quão importante é este dever, e nós faríamos bem em lhe dar a devida atenção, porque tem sido ordenado pela boca de Deus.
Agora, a palavra de Deus nos ordena e revela em muitos lugares que esta repreensão deve ser feita com muita mansidão (II Cor 2.4; Gál 6.1). Nós devemos ser extremamente cuidadosos
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para não agirmos farisaicamente coando mosquitos e engolindo camelos.
O dever é o de prevenir o pecado e não o de detratar, censurar ou caluniar. Se fizermos isto estaremos transformando o próprio dever num outro pecado (Ef 5.4).
Assim, a reprovação é um ato de amor ou misericórdia pelo qual nós buscamos através da persuasão, tirar nosso irmão do pecado para o arrependimento. É um ato de amor e misericórdia e não de orgulho ou vanglória. É um ato de misericórdia para com o nosso irmão na sua miséria espiritual, que esteja provocando a ira de Deus.
Esta admoestação deve ser feita entre aqueles que estão caminhando na verdade, ou a tendo como alvo de suas vidas, e na atmosfera de uma verdadeira comunhão espiritual entre aqueles que com um coração puro louvam ao Senhor (Col 3.16). De maneira que o ofensor verá que é Deus que lhe está reprovando e não o homem.
Não se trata portanto de se ter simplesmente conhecimento das palavras das Escrituras, para estar habilitado ao exercício da reprovação mútua, mas, como no dizer de Paulo em Romanos 15.14, os cristãos devem estar cheios do amor de Deus e de conhecimento da Sua vontade para tal exercício.
O coração não deve estar longe de Deus, mas perto dele, quando se repreende um irmão.
Não se deve portanto reprovar com base em boatos incertos, ou por ruim suspeita, porque o amor não suspeita mal (I Cor 13.6).
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Temos também que considerar que há casos em que apesar da reprovação não ocorrerá um arrependimento completo e sincero, e assim, quando não há nenhuma evidência de que a reprovação alcançará o seu fim, nós podemos dar um tal caso como de nenhuma esperança, como vemos nas palavras do Senhor através do profeta Ezequiel:
“3 E disse-me ele: Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel, às nações rebeldes que se rebelaram contra mim; eles e seus pais têm transgredido contra mim até o dia de hoje.
4 E os filhos são de semblante duro e obstinados de coração. Eu te envio a eles, e lhes dirás: Assim diz o Senhor Deus.
5 E eles, quer ouçam quer deixem de ouvir (porque eles são casa rebelde), hão de saber que esteve no meio deles um profeta.
6 E tu, ó filho do homem, não os temas, nem temas as suas palavras; ainda que estejam contigo sarças e espinhos, e tu habites entre escorpiões; não temas as suas palavras, nem te assustes com os seus semblantes, ainda que são casa rebelde.
7 Mas tu lhes dirás as minhas palavras, quer ouçam quer deixem de ouvir, pois são rebeldes.” (Ez 2.3-7).
Muitas vezes, pensamos que podemos ajudar estas casas rebeldes com a nossa reprovação do mau caminho deles, mas por um mistério que somente Deus conhece, eles não se arrependerão, e bem faríamos então em não alimentar esperanças apesar de receber de
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Deus, pelo Espírito, a direção de repreender o pecado deles, que no caso servirá apenas para o agravamento da ofensa e não para a cura deles, não pela falta de desejo de Deus ou nosso de que sejam curados, mas pela sua própria rebeldia obstinada, em se justificarem em seus pecados. Eles não creem na possibilidade de uma vida verdadeiramente santa, e o seu coração está por demais apegado ao mundo e à sua própria vontade, para que se submetam à vontade do Senhor, permitindo serem humilhados e transformados por Ele.
Neste caso, a repreensão tem em vista glorificar o nome de Deus e vindicar a Sua santidade, para que eles saibam que houve entre eles um profeta de Deus, e vejam o poder de Deus na vida do Seu profeta, de maneira que fiquem injustificáveis em seu endurecimento no pecado. Eles são incorrigíveis e se levantarão contra o próprio Deus e contra aqueles que são por Ele enviados, criticando a obra que estão fazendo, ou se opondo, ainda que indiretamente a ela, por insuflarem e envenenarem os corações com palavras mentirosas e invejosas àqueles que se encontram debaixo da influência deles, mas em tudo isto prestarão contas ao Senhor no Tribunal de Cristo, e poderão receber severas sanções ainda neste mundo.
Assim a reprovação ministerial deve ser dada mesmo nos casos em que não haja nenhuma esperança. As águas do santuário devem continuar fluindo, embora haja estes maus obreiros que em vez de cooperarem com o trabalho de Deus, se opõem a ele, criando
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condições para tentar inviabilizá-lo. Assim, as águas do rio de águas vivas devem continuar fluindo quer os homens bebam delas ou não. E os que têm o dever de proclamar o puro evangelho em vidas puras devem continuar fazendo isto a par de todas estas oposições que sempre existiram e sempre existirão até que Cristo venha com glória e poder para estabelecer o Seu reino na terra em Sua forma final e dar o pago a cada um segundo as suas obras.
O mordomo fiel não deve portanto, ficar intimidado pelos obreiros da iniquidade, ainda que se digam ministros verdadeiros do evangelho, porque a fidelidade será recompensada agora e também no por vir.
Contudo, nos é imposto o dever de reprovar e protestar continuamente contra o pecado, ainda que obstinadamente os tais se recusem a emendarem o seu caminho diante de Deus (II Pe 1.13).
Entretanto, a ordenança do Senhor de Mt 7.6 de não se dar coisas santas aos cães e pérolas aos porcos, deve sempre ser observada nestes casos, de maneira que o Espírito nos conduzirá a ficar calados perante aqueles que agiriam como cães ou porcos diante das coisas sagradas de Deus, e nisto devemos seguir o exemplo de Jesus quando foi provocado por Herodes, não lhe dizendo uma única palavra.
Alguns desprezam e desdenham das suas corrupções, porque no seu endurecimento contra o trabalho da graça pelo Espírito, permanecem cegos em seus pecados e
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endurecidos neles, tal como os fariseus nos dias de Jesus, que a seus próprios olhos se consideravam muito santos, e sequer eram convertidos.
Entretanto, em tudo devemos ser criteriosos de forma a não passar nenhum julgamento precipitado sobre quem quer que seja quanto a esta condição de cão e porco, porque nos é ordenado que não julguemos para que não sejamos julgados. Isto é, este julgamento não deve ser movido por uma razão de desprezo pessoal carnal, ou por qualquer outro motivo ou meio injustificável, senão somente por um juízo adequado, consciente, espiritual da condição do fruto que é produzido pela árvore que estamos julgando, se é bom ou mau. Há portanto critério para o julgamento para que não erremos e não sejamos conduzidos pela carne neste processo, senão unicamente pelo Espírito de Deus, tendo um coração humilde e simples como o das pombas.
O critério para esse julgamento não deve consistir em sentimentos pessoais mas na verdade revelada da Palavra de Deus.
A questão da oportunidade adequada para todo tipo de reprovação é um fato a ser considerado devidamente, conforme o critério geral de Ec 3.1. 7: “Tudo tem a sua ocasião própria, e há tempo para todo propósito debaixo do céu... tempo de estar calado, e tempo de falar;”.
Pela verdade da Palavra expressa em Pv 12.1, nós podemos concluir que a grande maioria da humanidade é insensata, porque não ama a correção:
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“O que ama a correção ama o conhecimento; mas o que aborrece a repreensão é insensato.” (Pv 12.1).
Daí decorre que a maior parte das reprovações serão rechaçadas, e devemos estar cientes disto, para não nos desestimularmos pensando que estamos fracassando no cumprimento do nosso dever de pregar e ensinar a verdade do evangelho, e de repreender segundo a doutrina o irmão faltoso. Lembremos que devemos fazer a nossa parte e o próprio Deus tratará com os rebeldes e contradizentes.
Devemos ter em conta quanto a estes, as palavras do apóstolo em Tito 3.10: “Ao homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestação, evita-o,”. Porque se aplica aqui neste caso as situações sem esperança a que já nos referimos.
Devemos lembrar que a disciplina está na verdade, nas mãos do próprio Deus, que mantém permanente controle sobre as almas dos homens, de modo que se a Sua Palavra é a verdade, como de fato é, então a ameaça de Prov 15.10, cumprir-se-á e não falhará para aqueles que deixam o caminho da verdade e que se endurecem em seus pecados recusando-se a viverem de maneira consagrada e santa diante de Deus:
“Há disciplina severa para o que abandona a vereda; e o que aborrece a repreensão morrerá.” (Pv 15.10).
Deus exemplificou isto na vida de Ananias e Safira, e em muitos na Igreja de Corinto, para nossa advertência, quanto ao risco que
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corremos em andar contrariamente à Sua vontade.
É melhor se corrigir do que morrer. Ainda que não seja a correção da morte física, haverá a correção da morte espiritual, que é a quebra da comunhão com Deus, e isto, todo cristão rebelde há de experimentar, e quão dura coisa isto é.
Sabedor desta verdade espiritual o autor de Hebreus roga a toda a igreja de Cristo que se submeta às correções de Deus.
“e já vos esquecestes da exortação que vos admoesta como a filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor, nem te desanimes quando por ele és repreendido;” (Hb 12.5).
É muito conhecida nossa a citação de Pv 29.1, mas poucos dão a ela a devida consideração que deveriam dar a bem de suas almas:
“Aquele que, sendo muitas vezes repreendido, endurece a cerviz, será quebrado de repente sem que haja cura.” (Pv 29.1).
Destruições súbitas podem ser determinadas por Deus, quando menos as esperarmos, por causa do nosso endurecimento no pecado, e resistência ao conserto depois de sermos várias vezes repreendidos.
Há, por incrível que possa parecer, até mesmo muitos ministros do evangelho, que em razão de orgulho espiritual se recusam a se submeter humildemente debaixo da potente mão de Deus, que lhes traz repreensões de várias maneiras quanto ao seu mau caminhar.
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Qual é o amor que estes ministros do evangelho têm por sua família?
Sendo negligente no seu caminhar com Deus e deixando de se esforçar em seu testemunho para andar humildemente com aqueles que servem a Deus com um coração puro, como pode afirmar que ama de fato ao Senhor, à sua família, aos seus irmãos em Cristo?
Como pode ter a aprovação e a bênção do Senhor justificando o erro e o pecado, e fazendo da graça de Jesus um motivo para luxúria?
Como poderá promover algum serviço real no reino de Deus, deixando-se vencer pelo ciúme e inveja daqueles que estão procurando consagrar verdadeiramente suas vidas ao Senhor?
Como poderá se firmar na verdade vivendo na dissimulação de lábios, afirmando amor e amizade somente de língua, mas não de fato e de verdade?
Como poderá ser reerguido por Deus se não se humilha diante dEle nas provações que tem vivido?
Como poderá ser curado do pecado justificando suas faltas e atribuindo a causa do seu insucesso a outros?
Como poderá afinal ser santificado se recusa a verdade da Palavra da maneira nua e crua como se encontra revelada na Bíblia?
Quando alguém se considera dono da Igreja de Deus, como Diótrefes, quando pensa que as ovelhas de Cristo são da sua própria posse, quando vive para usar o rebanho para os seus interesses, e não para ser modelo dos cristãos de
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maneira a conduzi-los a uma vida consagrada a Cristo, pouca esperança há para que uma tal pessoa seja curada do seu mal, porque se alinha entre aqueles a quem Jesus chamou de lobos vestidos em peles de ovelhas, que não se submetem a Ele e à Sua Palavra, mas que, recusando-se a se auto negarem e a carregarem a cruz, sentem-se vítimas de tudo e de todos, e sempre andarão em busca da realização dos seus próprios sonhos egoístas.
São nuvens sem água, pedras de tropeço na obra de Deus, homens desqualificados para o ministério, que entraram nele simplesmente para ficarem inchados em seu orgulho, e imprestáveis para Deus.
Todo aquele que repreender um tal homem como este, ainda que o faça por amor e com lágrimas, há certamente de ser ferido por ele, conforme prediz a Palavra do Senhor, porque ele é justo aos seus próprios olhos, e acha que se encontra acima de toda verdade e justiça, e não se submeterá à correção de Deus, e assim irá de mal a pior, por mais que tente demonstrar por um viver hipócrita que está cheio da plenitude de Deus.
Estes fazem parte do número daqueles aos quais o Senhor se refere dizendo que com os lábios o louvam, mas o seu coração está distante dEle.
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7 - Thomas Hooker
Charles Haddon Spurgeon, que é conhecido como o príncipe dos pregadores, dizia que nenhum homem tem o direito de subir ao púlpito se ele não tiver a unção do Espírito Santo, e caso não tenha recebido a sua mensagem diretamente de Deus para pregá-la no poder do Espírito.
Ele viveu cerca de um século depois da era puritana, mas tinha o mesmo espírito dos puritanos, tal como João Batista viera a este mundo com o mesmo tipo de espírito de Elias.
Nós devemos estudar o mais que pudermos não somente a história dos puritanos, mas ler as suas obras e sermões, porque eles foram estes homens cheios do Espírito Santo, e de fervor e zelo pela causa do único e verdadeiro evangelho de Jesus Cristo.
Aqui, neste espaço, gostaríamos de registrar umas breves citações sobre Thomas Hooker, que foi um dos muitos gigantes espirituais do puritanismo.
Cotton Mather chamou Thomas Hooker de a Luz das Igrejas Ocidentais, em razão da grande contribuição de Thomas Hooker na obra de evangelização. E foi especialmente com ele que a doutrina da conversão na salvação recebeu a ênfase adequada que lhe é devida.
Hooker nasceu em 7 de julho de 1586 e ingressou em Cambridge em 1604, dois anos após a morte de William Perkins em 1602, o qual
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havia ministrado em Cambridge. As faíscas do ministério de Perkins haviam se espalhado e aceso com um fogo ainda maior a muitos homens de Deus que ingressaram naquela universidade depois da sua morte. Dentre estes estão Thomas Taylor, Paul Baynes, William Ames, Richard Sibbes, John Cotton, John Preston e muitos outros.
Hooker não tinha nenhuma intenção de se estabelecer numa mera vida acadêmica. Talvez tenha sido influenciado por John Dod que tal como John Preston enfatizava que era melhor pregar e ganhar almas para Deus do que colecionar cátedras de teologia.
Hooker afirmava que a influência dos sermões não é medida pela quantidade deles. Dizia que os pastores e teólogos deviam entrar no mesmo espírito e poder de João Batista.
De Hooker disse Cotton Matter que não somente despertou o indiferente como fez tremer o descuidado, como também houve uma grande reforma na cidade e em todas as partes que as pessoas vieram ouvir a sabedoria do Senhor Jesus Cristo no seu evangelho através da instrumentalidade do ministério de Thomas Hooker.
Vivacidade era a primeira característica de Hooker quando pregava. Uma vivacidade extraordinária, diz Matter. Havia vida na voz dele, no seu olhar, nas suas mãos, em todos os seus movimentos. E, enquanto reconhecia que uma parte disto pertencia à personalidade de Hooker, não duvidava que a principal causa daquele poder era a brasa do altar que lhe havia
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tocado, e que seria uma injustiça ao Espírito de Deus, não reconhecê-lo como o autor disto.
Além disso ele tinha uma coragem notável. Um tal homem como ele com a majestade e o temor de Deus, colocaria um rei no seu bolso. Foi declarado de George Whitefield, por uma geração posterior que ele pregou como um leão. O mesmo era verdadeiro em relação a Hooker.
Tal era o poder de Deus na vida deste homem que os seus opositores da Igreja Estatal Inglesa viram que ainda que ele fosse colocado numa prisão na Inglaterra ele continuaria influenciando com a sua vida a muitos outros a seguirem os seus passos, e assim decidiram que ele deveria ser deportado para New England nos EUA.
Ele afirmava que a glória de Deus havia deixado a Inglaterra, tal como havia passado de Israel quando abandonou Siló no passado (I Sm 4.22). Que a recompensa dos pecados da Inglaterra estava vindo rapidamente, e que Deus havia feito as malas do seu evangelho porque ninguém compraria as Suas mercadorias na Inglaterra. Deus estava começando a transportar os seus Noés que haviam profetizado e predito aquela destruição que estava se aproximando; e Deus estava fazendo de New England uma arca, um refúgio para os seus Noés e os seus Lós, uma rocha e um abrigo para os seus justos, e todos aqueles cujas vidas tinham sido infamadas pelos descrentes da Inglaterra, de maneira que estivessem em segurança em New England.
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Ele dizia: “Nós estamos em conflito com Deus, e este é o dia da nossa reconciliação. Este é o dia em que nós devemos fazer nossa paz com nosso Deus! Então, nos deixe labutar para prevalecer com Deus, e, para que nós não percamos a Sua presença, façamos como a esposa em Cantares 3.1. Ela buscou o noivo mas não pôde achá-lo, contudo ela não desistiu, mas o seguiu até que ela o achasse. Assim, o nosso Deus está indo, e nós vamos permanecer deitados em nossas camas? Você teria o evangelho mantido com estes desejos preguiçosos? Oh, não, não! Levantem! Levantem de suas camas macias e caiam sobre seus joelhos e peçam a Deus para deixar o Seu evangelho para vocês e para a sua posteridade! Devemos nós, por nossos pecados, privarmos nossos filhos e a posteridade deles de uma tal bênção? Nós furtaremos deles o evangelho que é, ou que deveria ser a vida das vidas deles, para deixá-los expostos em superstição? Não, não! Senhor, nós não podemos suportar isto. Oh, não nos dê riquezas, nem qualquer outra bênção, mas somente o teu evangelho! Este é o nosso argumento, Deus. E quando nós acharmos Deus, então O tragamos para nossas casas e O retenhamos lá para que ele possa ser o nosso Deus e o Deus da nossa posteridade. Nós clamaremos: Deus, tenha misericórdia de nós. Oh, meu amado, leve Deus para casa com você e não O deixe partir. Deixe que Ele seja um Pai para você e para sua posteridade!”.
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8 – William Bates
(Nota Introdutória: Quando lemos esta tradução e adaptação feitas pelo Pr Silvio Dutra, de um texto de William Bates, em domínio público, podemos entender quanto o verdadeiro evangelho exposto nas Escrituras, tem sido obscurecido e desviado do seu principal significado em nossos dias presentes, especialmente por influência do consumismo desenfreado e da busca de prosperidade material ao custo da negligência das necessidades do espírito, que têm moldado uma mentalidade que vislumbra prioritariamente as coisas temporais e não o reino de Deus e a sua justiça. Não é surpreendente portanto que a própria igreja cristã, esteja, em grande parte, aprisionada pelos ditames da mídia secular, quando cristãos se empenham na mesma busca daquelas os gentios procuram, e fazem da fé para alcançar objetivos o grande alvo da pregação do evangelho. Daí decorrem os ensinos focados em prosperidade material, ministração de psicologia aplicada, e tantos outros, em substituição ao puro evangelho de Cristo, em muitas igrejas ditas cristãs. Não são poucos os cristãos que não possuem um conhecimento adequado do que seja o evangelho, ou a sã doutrina bíblica, e que têm feito uma aplicação do conteúdo das promessas de salvação pela fé em Cristo, pelo perdão dos
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nossos pecados, pela fé nele, a um mero diagnóstico e busca de soluções para problemas temporais, relativos à esfera financeira, sentimental, emocional, e a outros interesses diferentes daquilo para o que a fé foi designada, conforme o dizer do apóstolo: “obtendo o fim da vossa fé: a salvação da vossa alma.” (I Pe 1.9). Seguramente, a produção das Escrituras e o envio do Filho de Deus a este mundo para salvar pecadores, não consistiu na elaboração de um manual de autoajuda para descobrirmos um meio de tirar o melhor desta vida que temos aqui neste mundo. Temos assim nas sábias palavras de William Bates, um resumo daquilo que é o evangelho verdadeiro, tal e qual ele foi planejado e revelado por Deus na pessoa e obra de nosso Jesus Cristo.)
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O Perdão de Pecados
"Mas contigo está o perdão, para que sejas temido." (Salmo 130.4)
O salmista, no primeiro e segundo versos, se dirige a Deus com os desejos sinceros de suas misericórdias salvíficas: "Das profundezas clamo a ti, Senhor. Escuta, Senhor, a minha voz; estejam abertos os teus ouvidos às minhas súplicas.” Ele humildemente deplora a severa inquirição da justiça divina; “Se observares, Senhor, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?” (verso 3). Se Deus observasse nossos pecados com um olho preciso, e nos chamasse para um ajuste de contas, quem poderia estar de pé em juízo? Quem poderia suportar esta prova de fogo? Os melhores santos, embora nunca sejam tão inocentes e irrepreensíveis aos olhos dos homens, embora nunca sejam tão vigilantes e atentos sobre seus corações e caminhos, não estão isentos dos pontos de fragilidade humana, que de acordo com o rigor da lei, iria expô-los a uma sentença condenatória. Ele encontra alívio se apoiando sob esta apreensão temível com as esperanças de misericórdia: "Mas contigo está o perdão, para que sejas temido." É o teu poder e a tua vontade, perdoar os pecadores arrependidos que retornam, "para que sejas temido". O temor de Deus nas Escrituras significa a santa reverência
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humilde a ele, como nosso Pai celestial e Soberano, que nos faz cautelosos para que não o ofendamos, e tenhamos cuidado em agradá-lo. Por isso, o temor de Deus é abrangente em todas as religiões, "o dever de todo homem", para o qual isto é uma introdução, e é o principal ingrediente da mesma. A compaixão e a misericórdia de Deus é a causa de um temor filial, misturado com amor e compromisso dos homens. Outros atributos, sua Santidade que emoldurou a lei, a justiça que ordenou o castigo do pecado, o poder que o inflige, torna sua majestade terrível, e causa uma fuga dele como um inimigo. Se tudo deve perecer por seus pecados, nenhuma oração ou louvor os levará ao céu, toda a adoração religiosa cessará para sempre, mas sua terna misericórdia prontamente recebe os humildes suplicantes, e os restaura em seu favor, e isto nos leva a amá-lo e admirá-lo, e também nos conduz para perto dele. Há duas proposições a serem considerados no versículo do nosso texto: I. Que o perdão pertence a Deus. II. Que o perdão misericordioso de Deus é um poderoso motivo de adoração e obediência a ele.
Quanto à primeira proposição é necessário considerar, 1. O que está contido no perdão.
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2. Os argumentos que demonstram que o perdão pertence a Deus. 1. O que está contido no perdão.
Isto supõe necessariamente pecado, e o pecado supõe uma lei que é violada por ele: a lei implica um legislador soberano, a cuja vontade declarada a sujeição é devida, e que exigirá uma prestação de contas no julgamento da obediência ou desobediência dos homens à sua lei, e que atribuirá recompensas e punições conforme for o caso. Deus pelos mais claros títulos "é o nosso rei, nosso legislador e juiz”; porque ele é nosso criador e preservador, e consequentemente possui uma plena propriedade de nós, e autoridade absoluta sobre nós; e por sua soberana e singular perfeição está qualificado para nos governar. Um ser criado está necessariamente em um estado de dependência e sujeição. Todas as espécies de criaturas do mundo são ordenadas por seu Criador; seus "reino domina sobre tudo."
Criaturas meramente instintivas são conduzidas pelos impulsos da natureza para suas ações, e não por terem qualquer luz para distinguir entre o bem e o mal moral, elas não têm escolha, e são incapazes de receber a lei, mas criaturas inteligentes são dotadas de faculdades judiciosas e livres, e têm entendimento para discernir entre o bem e o mal moral, e para escolher ou rejeitar o que lhes
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é proposto, e são capazes de ter uma lei para dirigir e regular a sua liberdade.
Para o homem, a lei foi dada pelo Criador, (a cópia de sua sabedoria e vontade) a qual possui todas as perfeições de uma regra. Ela é clara e completa, ordenando o que é essencialmente bom, e proibindo o que é essencialmente mau. Deus governa o homem em conformidade com a sua natureza, e nenhum serviço é agradável a ele, senão o quer for o resultado da nossa razão e escolha, a obediência dos nossos supremos poderes principais. Desde a queda no pecado, a luz do entendimento comparada com a descoberta da gloriosa condição que havia em nosso estado original, ou é como o crepúsculo da noite, quando cai um véu escuro sobre o mundo, ou como a alva da manhã, quando o sol nascente começa a dispersar a escuridão da noite. Eu acho que esta última comparação é mais justa e regular; pois é dito que o Filho de Deus "ilumina todo homem que vem ao mundo." A luz inata descobre que há uma linha reta da verdade para regular o nosso julgamento, e uma linha reta de virtude para regular nossas ações. A consciência natural é um princípio de autoridade, dirigindo-nos a escolher e a praticar a virtude, e para evitar o vício. É pouco provável que qualquer um seja tão prodigiosamente ímpio, que não esteja convencido da retidão natural que há em todas as coisas criadas: eles podem distinguir entre o que é justo e o que é fraudulento nas relações, e reconhecem no geral, e no julgamento de
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outros, a equidade das coisas, embora se iludam com a força da convicção na sua aplicação para si mesmos. Agora, já que a razão comum descobre que há uma regra comum, deve haver um juiz comum perante o qual os homens são responsáveis pelo desvio ou conformidade de suas ações a essa regra. A lei de Deus é revelada em sua pureza e perfeição na Escritura.
A lei obriga primeiro à obediência, e na sua negligência, à punição. O pecado é definido pelo apóstolo João como sendo "a transgressão da lei." A omissão daquilo que é ordenado, ou fazer o que é proibido, é pecado. Não somente as cobiças que irrompem em ações e evidências, mas inclinações interiores, contrárias à lei, são pecado. Daqui resulta uma culpa sobre cada pecador, que inclui a imputação da culpa e a obrigação de punição. Há uma conexão natural entre o mal da ação, e o mal do sofrimento: a violação da lei é justamente vingada pela punição da pessoa que a quebra. É uma imaginação impossível, que Deus deveria dar uma lei não executada com uma sanção. Isso seria lançar uma mancha sobre a sua sabedoria, pois a lei tornaria nula a si mesma, e derrotaria os fins pelos quais fora dada; seria imputar uma alta desonra à sua santa majestade, como se fosse indiferente com relação à virtude ou ao vício, e desconsideração da nossa irreverência ou rebelião contra a sua autoridade. O apóstolo declara que "todo o mundo tornou-se culpado diante de Deus," o que torna imputável os seus crimes e sujeito ao julgamento de Deus. O ato do
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pecado é transitório, e o prazer desaparece, mas a culpa, se não perdoada e purgada, permanece para sempre nos registros da consciência. "O pecado de Judá está escrito com um ponteiro de ferro e com a ponta de diamante, está esculpido nas tábuas do coração." Quando os livros da vida eterna e da morte forem abertos no último dia, todos os pecados não perdoados dos homens, com suas agravantes mortais, serão registrados por escrito em caracteres indeléveis, e serão colocados em ordem diante de seus olhos, para a sua confusão: "o justo Juiz jurou que ele não esquecerá nenhuma das suas obras." De acordo com o número e a atrocidade de seus pecados, a sentença deve passar sobre eles: não haverá desculpas que possam suspender o juízo, nem mitigar a execução imediata do mesmo.
O perdão dos pecados contém a abolição de sua culpa e a liberdade da destruição consequente merecida por eles. Isto é expressado por vários termos na Escritura. O perdão se relaciona com algum dano e ofensa nos quais a parte ofendida pode severamente reivindicar o seu direito. Agora, embora o bendito Deus, falando estritamente, não possa receber qualquer dano por criaturas rebeldes, sendo infinitamente superior à impressão do mal, ainda que, como diz o nosso Salvador de alguém que olha para uma mulher com desejo impuro, que cometeu adultério com ela em seu coração, embora a inocência da mulher seja imaculada, de modo que os pecados dos homens, sendo atos de ingratidão contra a sua bondade, e notória
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injustiça contra a sua autoridade, são em um certo sentido prejudiciais a ele, e assim pode exercer justamente vingança sobre eles, mas a sua misericórdia os poupa. O "não imputar o pecado" é apagado das contas dos servidores com seus mestres, e implica a conta que somos obrigados a saldar com o supremo Senhor por todos os benefícios dos quais temos tão miseravelmente abusado. Ele pode justamente exigir de nós os dez mil talentos que lhes são devidos, mas ele, graciosa e prazerosamente risca a nossa dívida em seu livro, e livremente nos desobriga da dívida que temos para com ele. A "purificação do pecado", implica que ele é muito odioso e ofensivo aos olhos de Deus, e tem uma relação especial com os sacrifícios expiatórios, dos quais se diz, que "sem sangue não há remissão." Isso era típico do precioso sangue do Filho de Deus que purifica a consciência "de obras mortas”; da culpa do pecado mortal que crava a consciência do pecador. Através da aplicação do seu sangue a culpa carmesim é lavada, e o pecador perdoado é aceito como alguém puro e inocente.
2. Vou demonstrar a seguir, que o perdão pertence a Deus. Isso será evidente pelas seguintes considerações.
1. É a elevada e peculiar prerrogativa de Deus perdoar o pecado. Sua autoridade fez a lei, e dá vida e vigor a ela, portanto, ele pode remir a punição do ofensor. Isto é evidente a partir da proporção das leis humanas, pois, embora os
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juízes subordinados tenham apenas um poder limitado, e devam absolver ou condenar de acordo com a lei, contudo, o juiz soberano pode revogar suas decisões. Isto é declarado nas Escrituras pelo próprio Deus: "Eu, eu sou aquele, que apago as tuas transgressões por amor do meu nome”, Isa 43. Ele repete isto com ênfase. Ele é proclamado com este título real, “o Senhor clemente e misericordioso, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado." É uma dispensação da soberania divina perdoar o culpado.
Isto é verdade - o perdão a Deus como um pai, de acordo com a promessa graciosa: “poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve.”, Malaquias 3.17, mas isto é feito com a dignidade da sua soberania. Nosso Salvador nos dirige, na perfeita forma de oração ensinada aos seus discípulos a orarem a Deus para o perdão dos nossos pecados, como “nosso Pai que está no céu" em um trono elevado, de onde ele pronuncia o nosso perdão. Sua majestade é gloriosa com sua misericórdia nessa bendita dispensação. Sua supremacia real é mais visível no exercício da misericórdia para com os pecadores arrependidos, do que em atos de juízos sobre criminosos obstinados. Como um rei é mais um rei por perdoar os suplicantes humildes pela operação de seu cetro, do que subjugar os rebeldes pelo poder da espada; porque nos atos de graça, ele está acima da lei, e anula o seu rigor, e nos atos de vingança ele somente está acima dos seus inimigos.
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É prerrogativa peculiar de Deus perdoar o pecado. O profeta reputa todas as divindades criadas pelos pagãos como defeituosas quanto a este poder real: "Quem é Deus semelhante a ti, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado?”, Miqueias 7. O que os fariseus disseram é verdade, “Quem pode perdoar pecados senão Deus?". Porque isto é uma prerrogativa de um imperador absoluto, como somente Deus o é. O poder judicial para o perdão é uma flor inseparável da coroa, porque está fundado numa superioridade à lei, portanto, incompatível com uma autoridade subordinada. A criatura é assim incapaz, e está muito longe de ter a supremacia de Deus para perdoar o pecado, bem como da Sua onipotência para criar o mundo, porque ambos são verdadeiramente infinitos. Além disso, o poder de perdoar pecados, implica necessariamente um conhecimento universal das mentes e dos corações dos homens, que são as fontes de suas ações, e conforme a inclinação deles para o bem ou para o mal moral aumenta. Quanto mais deliberada e intencionalmente um pecado é cometido, o pecador incorre numa maior culpa, e requer uma punição mais pesada. Agora, nenhuma criatura pode mergulhar no coração dos homens: "eles estão nus e abertos ao olhar penetrante de Deus.” Adicione ainda mais isto: o poder de autoridade para perdoar, tem, necessariamente anexada, a potência ativa de dispensar recompensas e punições. Agora, somente o Filho de Deus "tem as chaves da vida
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e da morte em suas mãos." Pode ser objetado que o nosso Salvador declara que "o Filho do Homem tem poder para perdoar pecados.” A resposta para isso ficará clara ao se considerar que há duas naturezas em Cristo, a natureza divina, que originalmente pertence a ele, e é própria à sua pessoa; e a natureza humana, que é como se fosse adotiva, e foi assumida voluntariamente. Agora, a pessoa divina é o único princípio e sujeito desta dignidade real, mas o perdão é exercido em sua conjunção com a natureza humana, e atribuído ao Filho do homem, com base na humilhação de Cristo, os princípios de seus sofrimentos, e os sofrimentos reais, que existem somente na natureza humana, mas por conta da união pessoal eles são atribuídos à pessoa divina, pois se diz: "o Senhor da glória foi crucificado", e "o sangue de Deus" resgatou sua igreja. A igreja de Roma, com alta presunção, arroga para seus sacerdotes um poder judicial de perdoar os pecados, e pela fácil insensatez e ingenuidade das pessoas, e o engano de seus instrutores, exerce uma jurisdição sobre a consciência. Para evitar a imputação de blasfêmia, eles afirmam que há um duplo poder de perdoar, um supremo e outro subordinado, o primeiro pertence a Deus, e o outro é delegado por comissão para os ministros do evangelho. Mas isso é uma contradição irreconciliável: o poder de perdoar é uno e flui de supremacia, e é incomunicável ao homem. Um príncipe que investe uma outra pessoa com um poder
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absoluto para perdoar, deve renunciar à sua soberania. Nenhum homem tem recebido portanto, poder supremo de Deus para pronunciar e dispensar perdão, porque não têm nenhuma autoridade judicial, pois não é presumível que o Deus sábio invista homens com uma autoridade que eles são absolutamente incapazes de exercer.
(A concessão ou retenção de pecados que nosso Senhor atribuiu a toda a igreja, tem em vista tão somente a aplicação da disciplina para a recepção ou afastamento da comunhão dos santos, pelo arrependimento demonstrado, no primeiro caso, e pela obstinação por permanecer no pecado, para o segundo. (Mateus 18; João 20.23).
Evidentemente, está excluída disto a capacidade para absolvição do erro e para a remoção da culpa, até mesmo porque, não há quem não seja pecador aos olhos de Deus, e que não necessite também de ser perdoado por ele.
Isto é evidente para qualquer um que tenha o Espírito Santo habitando nele, para lhe instruir para discernir corretamente este assunto.
Mas, quando não se tem o Espírito e não se é guiado por ele, qualquer um pode afirmar ter poderes que não possui e que são exclusivos de Deus.
Uma incorreta interpretação do significado das
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palavras de nosso Senhor atribuir a si mesmo a qualificação de mediador entre Deus e o pecador, quando na verdade é afirmado expressamente nas Escrituras que há somente um Mediador para reter ou perdoar pecados, que é nosso Senhor Jesus Cristo. (I Tim 2.5) Isto é prerrogativa exclusiva dEle, e assim, nem mesmo a Igreja como um todo a possui, e nem mesmo os seus prelados. Nenhum sacerdote, pastor, presbítero, diácono, profeta, mestre, possui a citada autoridade, nem isoladamente, e nem em grupo.
Isto não é sequer uma prerrogativa de lideranças da Igreja, porque quando nosso Senhor e os apóstolos se referem à Igreja, isto é sempre aplicado a todo o corpo de cristãos que se reúnem nas diversas congregações locais, e cabe a todos os que estão em comunhão deliberar quanto aos assuntos relativos à disciplina ou ao interesse de todo o corpo de Cristo, como vemos por exemplo em Atos 15.22 e Mateus 18.17.
Os que são constituídos como bispos (supervisores, líderes) sobre o rebanho do Senhor não devem deliberar qualquer assunto de interesse da igreja, aparte da participação e aprovação da mesma. – Nota do tradutor)
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Sobre o Orgulho
"Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda impureza, tanto da carne como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus." (2 Coríntios 7.1)
O orgulho (soberba) da vida se une com a concupiscência da carne e dos olhos. O orgulho destruiu dois mundos, ele transformou anjos em demônios, e os expulsou do céu; ele degradou o homem da honra de sua criação, para a condição dos animais que perecem, e o expulsou do paraíso.
Irei considerar a natureza, vários tipos e graus do orgulho, e os meios para nos purificar disso.
A natureza deste vício consiste em um apetite irregular e imoderado de superioridade; e tem duas partes: uma é a afetação de honra, dignidade e poder, além de seu valor e dignidade real, a outra é atribuição de tudo isto a uma pessoa além do seu justo merecimento.
Os tipos de orgulho são moral e espiritual, que às vezes são ocultados à mente e à vontade, mas muitas vezes aparecem nas ações. Assim sendo, é a arrogância de alguém que atribui a si mesmo uma proeminência indevida, e exige indevidamente respeito de outras pessoas; ou a vanglória, que é afetada e alimentada com louvor ou ambição, que ardentemente aspira por lugares elevados, e por títulos de
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precedência e poder; enfim, tudo o que é compreendido pelo nome universal de orgulho.
1. O orgulho inclui um conceito secreto de nossas próprias excelências, que é a raiz de todos os seus ramos. O amor próprio é natural, e profundamente imprimido no coração, que não há adulador mais sutil e oculto, mais facilmente e de bom grado crido, do que essa afeição. O amor é cego para com os outros, e ainda mais para si mesmo. Nada pode ser tão íntimo e querido, como quando o amante, e a pessoa amada são as mesmas. Este é o princípio da alta opinião e sentimentos secretos entretidos pelos homens de seu próprio valor especial. "Enganoso é o coração acima de todas as coisas", e, acima de todas as coisas enganoso para si mesmo. Os homens olham para o espelho encantador de suas próprias fantasias, e ficam encantados com o falso reflexo de suas excelências. O amor próprio dificulta a visão dessas imperfeições; que descobertas, iriam diminuir a estima exagerada de si mesmo. A alma é um mero objeto obscuro para o seu olho, mais do que as mais distantes estrelas nos céus. Sêneca fala de alguns que tiveram uma enfermidade estranha em seus olhos, que para onde quer que eles se voltassem, eles encontravam a visível imagem em movimento de si mesmos. Para o que ele dá esta razão, "Isto procede da fraqueza da faculdade da visão, que por falta de impulsos provenientes do cérebro, não pode atravessar o ar diáfano, para ver objetos; senão que cada parte do ar é um espelho fugaz de si mesmos" O que ele conjeturou para
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ser a causa da fraqueza natural é a mais pura verdade em relação à fraqueza moral, que é o tema do nosso discurso.
É a partir da fraqueza da mente, que a faculdade judicativa não descobre o valor das outras pessoas, e o homem vê apenas o seu próprio ego, como sendo singular em perfeições, e ninguém sendo superior, ou igual, ou próximo a ele.
Um homem orgulhoso terá uma elevação em qualquer vantagem para fomentar o seu orgulho: alguns com a perfeições do corpo, beleza e força, e alguns por suas circunstâncias e condições: riquezas, ou honra, e cada um se julga suficientemente equipado com compreensão; porque a razão é a excelência que distingue um homem dos brutos, pois o título de tolo é muito vergonhoso, a reprovação mais pungente, como é evidente pela gradação do nosso Salvador: "Todo aquele que se encolerizar contra seu irmão sem causa é susceptível ao juízo, quem diz “Raca", que expressa sua raiva desrespeitosa, “está sujeito ao sinédrio, mas quem o chamar de tolo, será punido com o fogo do inferno." Portanto os homens estão aptos a presumirem das suas capacidades intelectuais: um diz, eu não tenho o nível de aprendizagem, como o daqueles que estão pálidos com o estudo, mas eu tenho um estoque de razão natural, ou eu não tenho uma apreensão rápida, mas eu possuo um sólido julgamento; não tenho eloquência, mas eu esbanjo bom senso. O elevado conceito dos homens de seu próprio valor é manifestado de várias maneiras: às vezes
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transparece no semblante; "Há uma geração, oh quão altivos são os seus olhos, e as suas pálpebras são levantadas para cima." Às vezes, se manifesta em arrogância; se os outros não expressam aspectos eminentes deles, ficam ressentidos como uma negligência e injúria.
2. Um incomum desejo de reputação e louvor, é outro ramo do orgulho. O desejo de louvor é semeado na natureza humana para fins excelentes, para contê-los daquelas paixões sedutoras que irão arruinar sua reputação, e incentivá-los a fazer coisas nobres e benéficas para o público. Louvor, a recompensa de fazer o bem, é um poderoso incentivo para melhorar e garantir a felicidade temporal. O rei sábio nos diz: "Um bom nome é melhor para ser escolhido do que grandes riquezas." É uma recompensa que Deus prometeu: "Os retos serão louvados."
O apóstolo nos incentiva a lutar pela santidade universal, por motivos de reputação, bem como da consciência; "Tudo o que é verdadeiro", por consciência, honesto, de fama, "tudo o que é justo e puro", por consciência, "tudo o que é amável", por estima, "se há alguma virtude em nós mesmos, e louvor de outros", para propagá-la, “nisso pensai." Mas o desejo inflamado de louvor dos homens, fica indignado contra os outros como sendo inimigos ou invejosos por o negarem, a assumir que haja causas indignas, (onde não há verdadeira virtude, não há somente elogios) e exterminá-las em nós mesmos, e não transferi-las para Deus, são os efeitos de uma mente vangloriosa.
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O orgulho desvaloriza a bondade em si mesma. O louvor é uma música tão encantadora, que inclina os homens a acreditar que seja verdade o que é agradável, e que eles desejam que os outros acreditem que seja verdade. Um filósofo, quando uma caixa de unguento de composição preciosa foi apresentada a ele, sentindo seu espírito revivido com a sua fragrância, irrompeu com indignação contra as pessoas que se perfumavam habitualmente para fins malignos, e faziam um uso dele vergonhoso. Mas quando o louvor, que é tão doce e poderoso, é um motivo para incentivar mentes generosas para a virtude, é usado por pessoas sem valor, isto é mais detestável.
As flores venenosas de falsos elogios são perniciosas para aqueles que estão enganados e satisfeitos com eles. É a infelicidade daqueles que estão na mais alta dignidade, para quem é desconfortável para descer em si mesmos, e ter uma visão séria e sincera de seu estado interior, e para quem a verdade é dura e desagradável, eles estão em grande perigo de serem corrompidos por bajuladores.
A bajulação é a figura familiar daqueles que se dirigem aos governantes; às vezes com multas fraudes e artifícios insuspeitos dão o rosto de verdade para uma mentira, para representá-los para se destacarem em sabedoria e virtude. Mas se os governantes forem tão vangloriosos que o louvor moderado é considerado como uma diminuição de sua grandeza, e apenas os perfumes mais fortes afetam seu sentido, eles
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vão representá-los como semi-deuses, como um segundo sol para o mundo.
Foi a observação criteriosa de Galba no seu discurso com Piso, que projetou para ser seu sucessor no império de Roma. "Nós falamos com simplicidade entre nós; mas outros falarão bastante com a nossa posição do que com nossas pessoas".
Em suma, todos os que têm uma vantagem eminente para conceder favores e benefícios são passíveis de serem enganados por bajuladores, que são como lentes de aumento, que representam pequenos objetos num tamanho exorbitante; eles vão alimentar os humores daqueles dos quais eles dependem, e falarão coisas agradáveis para eles, e proveitosas para si mesmos. Isto é certamente para a sua maior segurança, lembre-se, que bajuladores tem uma língua dupla, e falam com uma para eles, e com a outra deles.
Em suma, a virtude como o sol é coroada com os seus próprios raios, e não precisa de brilho externo; e argúi uma mente sadia para estimar o louvor como um resultado da virtude, e da virtude para si mesma, mas um homem orgulhoso enquanto orgulhoso, prefere o louvor e a sombra da virtude antes do que a realidade; como uma mulher vaidosa prefere usar um colar falso que é estimado como verdadeiro, do que uma das melhores pérolas orientais, que é estimada como falsa.
3. A ambição, ou a ardente aspiração por posições elevadas e títulos de precedência e poder, é outro ramo do orgulho. O desejo de
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superioridade neste caso, é tão natural e universal, que se manifesta em pessoas do mais baixo nível: funcionários, pastores, trabalhadores, desejosos de exercer poder sobre os outros em sua condição. Isto é como o fogo, que quanto mais é alimentado, mais aumenta. A ambição, se reforçada por emulação, se aventurará por caminhos de erros, pela traição, pela opressão, e indignidade, para obter dignidade. Se qualquer acidente estragar os seus planos para atingirem o seu alvo, eles caem em melancolia; se for preterido por algum concorrente, eles estão prontos para dizer: não foi virtude ou mérito, mas favor e fortuna que os elevou; e o seu próprio deserto o torna infeliz; de acordo com as duas propriedades do orgulho, para exaltar a si mesmos e rebaixar os outros.
O orgulho espiritual se distingue do moral, uma vez que mais direta e imediatamente desonra a Deus. É verdade, que o orgulho é o veneno de cada pecado, pois transgredindo a lei divina, os homens preferem agradar suas vontades corruptas e apetite depravado, antes que obedecer à vontade soberana e santa de Deus, mas em alguns pecados, há um mais imediato desprezo explícito de Deus, e especialmente no orgulho. Pecados desta natureza o provocam extremamente e acendem seu descontentamento.
Esse pecado foi imputado a Senaqueribe, "Por isso, acontecerá que, havendo o Senhor acabado toda a sua obra no monte Sião e em Jerusalém, então, castigará a arrogância do coração do rei da Assíria e a desmedida altivez dos seus olhos;
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porquanto o rei disse: Com o poder da minha mão, fiz isto, e com a minha sabedoria, porque sou inteligente; removi os limites dos povos, e roubei os seus tesouros, e como valente abati os que se assentavam em tronos.” (Is 10.12,13).
Este orgulho é consumado com a confiança em sua própria direção para planejar e capacidade para realizar seus desígnios; e por atribuir a glória de todo o seu sucesso inteiramente a si. O orgulhoso gere os seus assuntos de forma independente em relação à providência de Deus, que é o autor de todas as nossas faculdades, e da eficácia delas, e negligencia totalmente as duas partes essenciais da religião natural, oração e louvor, ou muito ligeiramente executa a parte externa, sem aquelas afeições internas que são o espírito e a vida deles.
Deus adverte rigorosamente o seu povo contra este pecado perigoso, "Guarda-te, não esqueças do Senhor, e digas no teu coração: A minha força, e a fortaleza do meu braço me adquiriram estas riquezas; lembre-se que é ele que dá o poder de obter riquezas."
Quando os homens têm uma presunção vã da santidade de seu estado espiritual, dos graus de sua santidade e sua estabilidade em Deus, não sendo sensíveis à contínua falta de renovação das fontes do céu, eles são culpados de orgulho espiritual. Disto existem duas instâncias nas Escrituras; uma na morna igreja de Laodiceia, e a outra no fariseu, citado por nosso Salvador. Do primeiro Jesus disse: "pois dizes: Estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre,
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cego e nu.”, Apo 3.17. O fariseu, elevou a estima de sua própria piedade, comparando-se com outros, ele disse: "Eu não sou como os demais homens, roubadores, adúlteros, nem ainda como este publicano". É verdade, ele agradece a Deus superficialmente, mas o ar de orgulho transparece através de sua devoção, valorizando-se acima dos outros piores do que ele, como se suas próprias virtudes fossem a causa produtiva de sua piedade distintiva. Se a humildade não for misturada no exercício de todas as graças, é de nenhum valor na estima de Deus; o publicano injusto humilde foi justificado e não o fariseu orgulhoso.
Este orgulho espiritual é muito observável no supersticioso, que mede as coisas divinas como se fossem humanas, e fazendo uma mistura com a imaginação, introduzir ritos carnais para a adoração de Deus, e valorizam a si mesmos quanto à sua santidade opinativa; eles confundem o inchaço de um tumor como sendo um crescimento substancial e presumem-se ser mais santos do que os outros, por sua singularidade orgulhosa. A superstição é como a hera, que enrosca sobre a árvore, e é o seu ornamento aparente, mas drena sua seiva vital, e debaixo de suas folhas verdes cobre uma carcaça; assim cerimônias carnais parecem adornar a religião, mas realmente desencorajam e enfraquecem a sua eficácia. O orgulho farisaico é fomentado por uma observância zelosa de coisas não ordenadas na Palavra, nem agradáveis a Deus, nem rentáveis para os homens. Pelo contrário, alguns
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visionários fingem possuir tal sublimidade da graça e de uma eminente santidade, que estão acima do uso das ordenanças Divinas; eles fingem viver em comunhão imediata com Deus, como os anjos, e deslumbrados com espiritualidades ilusórias, eles negligenciam a oração, ouvir a palavra, e se exercitarem nos meios de crescimento na graça, como se estivessem chegado à perfeição. Este é o efeito de orgulho espiritual e ilusão.
Para a mortificação desta disposição viciosa, considere que o orgulho está em um alto grau prejudicial e provocando a Deus. Um malfeitor comum quebra as leis do rei, mas um rebelde ataca a sua pessoa e coroa. O primeiro e grande mandamento é honrar a Deus com a mais alta estima e amor, com a adoração mais humilde e, consequentemente, o maior pecado é o desprezo da sua majestade, e obscurecimento da sua glória. Não há pecado mais claramente contrário à razão e religião, porque o dever mais importante e de caráter de uma criatura racional, é dependência e observância de Deus como causa primeira e fim último de todas as coisas; receber com gratidão os seus benefícios, e encaminhá-los todos para a sua glória. O orgulho contradiz a justiça natural, interceptando a subida afetuosa e grata da alma a Deus, ao celebrar a sua grandeza e bondade. Um homem orgulhoso construtivamente, coloca a si mesmo fora do número de criaturas de Deus, e merece ser excluído da sua terna providência. O zelo de Deus, o seu atributo mais severo e sensível, se acendeu para esta revolta
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da criatura quanto ao seu dever, e que o privou de Sua glória. É verdade, que glória declarativa de Deus não é rentável para ele, mas ele não dará sua glória a outro, nem permitirá que outro a usurpe; a sua concessão e autorização seria diretamente contrária à regra eterna da justiça, e, portanto, impossível sem a negação de si mesmo.
O orgulho está na dianteira daqueles pecados que Deus odeia, e são uma abominação para ele: "Um olhar orgulhoso", que raramente é dissociado de um coração orgulhoso. Deus "olha para longe do orgulhoso com um desprezo santo." Ele resiste aos soberbos. O orgulho é o mais pernicioso de todos os vícios; porque qualquer vício é o oposto de sua virtude contrária: impureza expulsa castidade; a cobiça, a liberalidade; o orgulho, como uma doença infecciosa, mancha as partes sadias, corrompe as ações de todas as virtudes, e as priva de sua verdadeira graça e glória. O orgulho é tão ofensivo a Deus, que Ele às vezes permite que os seus filhos caiam em pecados de um outro tipo para corrigir o orgulho. Quando o apóstolo esteve perante a tentação do orgulho, por suas visões celestiais, foi permitido a um mensageiro de Satanás esbofeteá-lo.
Os exemplos terríveis da ira de Deus sobre os orgulhosos, deve provar de forma convincente quão odioso eles são aos seus olhos. Os anjos caíram por orgulho, e são as criaturas mais amaldiçoadas da criação, e estão amarrados com cadeias nas trevas para o juízo do grande dia. Adão esteve doente da mesma doença, que
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envolveu ele e sua descendência sob a sentença da primeira e da segunda morte. Quantos grandes reis, para o esquecimento insolente de sua condição frágil, eram por vingança divina derrubados a partir da altura de sua glória, e feitos espetáculos de miséria vergonhosa! O faraó orgulhoso e teimoso, que desafiou o Todo-Poderoso, e disse: "Quem é o Senhor, que eu deveria obedecê-lo, e deixar ir Israel?", que ameaçou: "Eu vou perseguir, eu alcançarei, repartirei os despojos.", este orgulhoso rei foi domado por sapos e moscas, e, finalmente, se afogou com o seu exército no Mar Vermelho. Senaqueribe voou tão alto com a presunção de sua força irresistível, que ele desafiou o céu: "quem é o seu Deus? Que ele seja capaz de livrá-los das minhas mãos?", descobriu que havia um poder acima, que em uma noite destruiu seu poderoso exército, e depois o matou em sua idolatria. Nabucodonosor, a cabeça de ouro na figura representando os impérios do mundo, foi por causa do seu orgulho pastar entre os animais.
O orgulho é muito odioso aos olhos dos homens e por isso, muitas vezes empresta a máscara da humildade para obter seus fins, mas é sempre odioso a Deus, que vê o funcionamento mais íntimo dele no coração. Um homem orgulhoso é um inimigo para o mais excelente e digno; ele está satisfeito com os vícios e as infelicidades dos outros, como se eles oferecessem uma vantagem para exaltar-se acima deles.
O orgulho é o pai da discórdia, que exagera o sentido de uma pequena ofensa, coloca uma
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vantagem em cima da raiva, e tem muitas vezes oferecido espetáculos, que encheram as cenas com sangue e lágrimas. A humildade produz paciência, porque ela faz um homem se sentir inferior aos seus próprios olhos, daquilo que ele é, na opinião dos outros. O orgulho trata os outros com desprezo e censura, e, assim, os provoca para transformar a reverência em desprezo e o amor em ódio; quando um homem orgulhoso cai em miséria, ele é o menos lamentado.
Que a cura deste pecado é muito difícil, ficará evidente por uma variedade de considerações.
O orgulho é o pecado do qual os anjos e os homens em seu melhor estado foram particularmente responsáveis. Os anjos que contemplavam a glória divina, e refletiam sobre suas excelências, foram intoxicados com a autoadmiração. É estranho espantoso, que deveriam tão repentinamente abandonar suas naturezas, e renunciar ao seu Criador, que os cumulou com seus excelentes benefícios, e os levantou para aquela eminência brilhante acima das outras criaturas. O homem, no estado de inocência imaculada, quando todas as perfeições do corpo e da mente entraram em sua constituição, com todos as suas graças, foi corrompido pelo orgulho. "Sereis como deuses", foi a tentação que lhe corrompeu. Desordem prodigiosa! Seu orgulho começa quando termina sua verdadeira glória, e sua humildade termina quando começa a sua vergonha.
Na natureza depravada do homem, o orgulho é o pecado radical reinante, que primeiro vive e
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depois morre. É chamado de "o orgulho da vida.", I Jo 2.16. Orgulho brota no coração de uma criança, e continua até a velhice. Outros vícios têm suas épocas, que quando expiram eles murcham e decaem. Prazeres carnais mudam suas naturezas, e tornam-se desagradáveis, com o passar do tempo, mas o orgulho floresce e cresce em todas as idades, Eclesiastes 12. Agora, é geralmente em vão dar conselhos de sabedoria para aqueles que estão afundados em orgulho.
Alguns vícios são odiosos pela sua visível materialidade, a intemperança, a impureza e a injustiça, por fraudar e oprimir os outros, mas o orgulho é muitas vezes incentivado e oriundo das mesmas coisas em que as virtudes são exercidas. Um homem pode visivelmente desprezar a pompa e as vaidades do mundo, e isso pode levantar a estima nas mentes dos verdadeiros santos, e da prática externa da bondade será produzido o louvor da bondade pelos outros; mas isso vai permitir uma forte tentação de orgulho. Em todas as operações de virtudes, até o exercício de humildade, que são a matéria e argumento de louvor, pode haver incentivos de orgulho, e essas doenças são extremamente perigosas, que são alimentadas por esse alimento que é necessário para sustentar a vida. A antiga Serpente, quando não pode seduzir os homens por tentações carnais, que são facilmente descobertas, inspira-os com tão suave respiração de opinião de suas próprias virtudes, que insensivelmente lhes contamina.
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O desejo de honra externa e poder além do que eles merecem ser desejados, e que é devido às pessoas desejosas deles, não é facilmente descoberto: em parte, porque aspirar por dignidade é, no consenso universal dos homens, um argumento e indicação de um espírito sublime, e que a modesta recusa dela, expõe à infâmia, como se o recusador tivesse uma alma de chumbo.
Todo homem é um estranho para si mesmo; assim como o olho vê as coisas de fora, mas é cego para ver a si mesmo. Homens estudam e se aplicam para saber mais dos outros do que de si mesmos e, portanto, se conhecem menos.
1. Considere as coisas que podem aliviar o tumor de orgulho e vaidade. A razão é a perfeição do homem, e o conhecimento de Deus e de nós mesmos é a perfeição da razão; a partir do que procede a magnificência de Deus, e a nossa vileza.
Deus é o eterno Jeová, "e não há outro além dele." Somente Ele tem uma existência independente e infinita. Todas as criaturas são dependentes de sua eficiência: cada centelha de vida e grau de ser é dele. Sem o mínimo esforço de seu poder, ele fez o mundo, e como facilmente o governa. Ele habita em luz inacessível, não somente aos olhos mortais, mas para os anjos imortais. Ele é o único ser sábio, bom, e imortal. Não há ninguém absolutamente grande, senão Deus, que é verdadeiramente infinito. No céu, onde os espíritos bem-aventurados têm a vista mais imediata e plena da divindade "somente o Senhor é exaltado."
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2. Considere-se que todo o mundo intelectual e sensível, comparado a Deus, é como "um pingo que cai de um balde", e em que parte estamos neste pingo? Se considerarmos os homens no estado de sua natureza primitiva, é um princípio evidente escrito em seus corações, com caracteres da luz mais clara, que é seu dever mais razoável, renunciar inteiramente a si mesmos, e dedicar-se à glória de Deus.
"Todo dom perfeito e bom vem do Pai das luzes.", e são continuados por irradiações dele. Existe uma diferença entre as impressões de sons, e as emanações de luz no ar. Os sons são propagados pelo movimento sucessivo de uma parte do espaço em outra, depois que cessa a primeira causa, o instrumento de som é silenciado. Mas um raio de luz que se estende através do ar, depende inteira e necessariamente do ponto original de onde a luz procede. Os raios de luz que enchem o ar, no primeiro instante em que o sol se retira no horizonte, desaparecem. Assim, todos os dons espirituais dependem continuamente da presença de Deus que é a fonte da luz espiritual. Agora, como é que podemos estar orgulhosos de Seus dons mais preciosos, dos quais fazemos um confisco e não podemos possuir sem humildade? As vantagens mais eminentes que alguns têm acima dos outros, são as marcas brilhantes da sua generosidade divina. Que absurdo é que alguém se orgulhe de riqueza, quando vive diariamente vive de esmolas recebidas de Deus? Quanto mais recebermos, maiores são as nossas
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obrigações, e quão mais pesada será a nossa conta.
Para ser mais instrutivo, vamos considerar o que são os incentivos usuais de orgulho, e vamos descobrir que a ignorância e a vaidade são sempre misturadas com eles.
Há mulheres, que quando idolatradas por homens ímpios, ficam orgulhosas de sua beleza e mais zelosas para não deixarem suas faces serem deformadas, do que suas almas.
Agora, o que é carne e sangue, senão uma mistura de terra e água? O que é a beleza, a aparência superficial, uma flor atingida por milhares de acidentes? Quanto tempo as cores e encantos do rosto resistem ao desvanecimento? Quantas vezes o desvanecimento as trai punindo-as por seu pecado de orgulho com deformidade e podridão? A mais bela não é menos mortal do que as outras; elas devem logo serem presas da morte, e servirão de pasto aos vermes, e pode um brinquedo com tal desvanecimento inspirar orgulho para elas?
Alguns são inchados com a vaidade de suas riquezas, mas isso é muito irrazoável, porque nenhum bem externo pode agregar valor real a uma pessoa; somente tolos adoram um bezerro de ouro. Se todo o ar de orgulho sobe em um possuidor de riquezas, ele pode justamente provocar a Deus por reclamarem suas bênçãos como ele liberalmente as concedeu a eles.
Não há nada que os homens mais valorizem do que o relato de seus conhecimentos; todavia, o "conhecimento incha". Mas quão pouco
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sabemos! O orgulho é o efeito de grande presunção, e pouco conhecimento.
2. Será um excelente meio para curar o orgulho, convencer as mentes dos homens, o que é a verdadeira honra, e direcionar seus desejos a ela.
O mais sábio dos reis nos disse "que diante da honra vai a humildade." O orgulho é uma paixão degenerada, degrada um homem, e o traz em miserável cativeiro. Depende da opinião e aplausos das pessoas, cujos humores são muito mutáveis; é tão inquieto, que os ambiciosos muitas vezes mordem suas cadeias pesadas, embora às vezes eles as beijem porque são douradas. Mas a humildade preserva a liberdade verdadeira e nobre da mente do homem, assegura sua querida liberdade, paz e domínio de si mesmo. Este é o efeito da sabedoria excelente.
3. A humildade é o ornamento mais precioso aos olhos de Deus, e aprovado pela mente divina, e aceito pela vontade divina, é a maior honra, mais digna de nossa ambição.
A humildade é especialmente recomendada no evangelho como a mais amável e excelente graça. Recebemos o mandamento de "não fazer nada por contenda ou por vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmos." Fp 2.3. Isto pode parecer uma lição irrazoável, e inconsistente com a sinceridade. Mas, embora a diferença entre os homens em coisas temporais e em capacitação intelectual seja notória, todavia, em qualidades morais, nós conhecemos nossos
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próprios defeitos e falhas secretas, e podem ser preferidos outros, cujas excelências ocultas são visíveis a Deus, antes de nós mesmos.
O apóstolo Paulo ainda que de modo excelente, representasse o Rei dos santos em sua vida, reconheceu-se ser o principal dos pecadores. É observável que Pedro na conta de sua queda e arrependimento, registrada por Marcos, que escreveu o evangelho por sua direção, agrava o seu pecado mais do que está expresso no evangelho de Lucas e João, onde sua negação é citada não somente com o seu praguejar e com juramentos, dizendo: "Eu não conheço este homem", e seu arrependimento não é tão plenamente declarado; porque os outros evangelistas nos dizem, "ele chorou amargamente" na reflexão da sua negação de Cristo, mas isso só é dito em Marcos, quando "ele pensou nisso, ele chorou."
Muitas excelentes promessas são feitas aos humildes. Eles são declarados bem-aventurados por nosso Salvador, que não são ricos em tesouros terrenos, mas pobres em espírito; Deus revivificará o espírito dos humildes; ele vai dar graça aos humildes, e ouvir as suas orações. Estamos certos de que o Senhor é elevado, mas ele se inclina para os humildes; ele afirma sua estima e amor por eles, e os conforta; a humildade atrai o olhar e o coração do próprio Deus. Jó nunca foi mais aceito por Deus do que quando ele abominou a si mesmo.
Vou acrescentar esta consideração, que deve ser de peso infinito para nós: o Filho de Deus desceu do céu, para estabelecer diante de nós
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um modelo de humildade. Ele de uma maneira especial nos instrui nesta lição: "aprendei de mim, porque sou manso e humilde." Nunca a glória poderia subir mais alto do que em Sua pessoa, nem a humildade descer mais baixo do que em Suas ações. Há registradas as mais profundas passagens de humildade em todo o curso da sua vida desprezada e com sofrimentos ignominiosos. O que pode ser mais honroso do que imitar o humilde Rei da Glória?
(Quando lemos esta tradução e adaptação feitas pelo Pr Silvio Dutra, de um texto de William Bates, em domínio público, podemos entender quanto o verdadeiro evangelho exposto nas Escrituras, tem sido obscurecido e desviado do seu principal significado em nossos dias presentes, especialmente por influência do consumismo desenfreado e da busca de prosperidade material ao custo da negligência das necessidades do espírito, que têm moldado uma mentalidade que vislumbra prioritariamente as coisas temporais e não o reino de Deus e a sua justiça. Não é surpreendente portanto que a própria igreja cristã, esteja, em grande parte, aprisionada pelos ditames da mídia secular, quando cristãos se empenham na mesma busca daquelas os gentios procuram, e fazem da fé para alcançar objetivos o grande alvo da pregação do evangelho. Daí decorrem os ensinos focados em prosperidade material, ministração de psicologia aplicada, e tantos outros, em
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substituição ao puro evangelho de Cristo, em muitas igrejas ditas cristãs. Não são poucos os cristãos que não possuem um conhecimento adequado do que seja o evangelho, ou a sã doutrina bíblica, e que têm feito uma aplicação do conteúdo das promessas de salvação pela fé em Cristo, pelo perdão dos nossos pecados, pela fé nele, a um mero diagnóstico e busca de soluções para problemas temporais, relativos à esfera financeira, sentimental, emocional, e a outros interesses diferentes daquilo para o que a fé foi designada, conforme o dizer do apóstolo: “obtendo o fim da vossa fé: a salvação da vossa alma.” (I Pe 1.9). Seguramente, a produção das Escrituras e o envio do Filho de Deus a este mundo para salvar pecadores, não consistiu na elaboração de um manual de autoajuda para descobrirmos um meio de tirar o melhor desta vida que temos aqui neste mundo. Temos assim nas sábias palavras de William Bates, um resumo daquilo que é o evangelho verdadeiro, tal e qual ele foi planejado e revelado por Deus na pessoa e obra de nosso Jesus Cristo.)
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O Perdão de Pecados
"Mas contigo está o perdão, para que sejas temido." (Salmo 130.4)
O salmista, no primeiro e segundo versos, se dirige a Deus com os desejos sinceros de suas misericórdias salvíficas: "Das profundezas clamo a ti, Senhor. Escuta, Senhor, a minha voz; estejam abertos os teus ouvidos às minhas súplicas.” Ele humildemente deplora a severa inquirição da justiça divina; “Se observares, Senhor, iniquidades, quem, Senhor, subsistirá?” (verso 3). Se Deus observasse nossos pecados com um olho preciso, e nos chamasse para um ajuste de contas, quem poderia estar de pé em juízo? Quem poderia suportar esta prova de fogo? Os melhores santos, embora nunca sejam tão inocentes e irrepreensíveis aos olhos dos homens, embora nunca sejam tão vigilantes e atentos sobre seus corações e caminhos, não estão isentos dos pontos de fragilidade humana, que de acordo com o rigor da lei, iria expô-los a uma sentença condenatória. Ele encontra alívio se apoiando sob esta apreensão temível com as esperanças de misericórdia: "Mas contigo está o perdão, para que sejas temido." É o teu poder e a tua vontade, perdoar os pecadores arrependidos que retornam, "para que sejas temido". O temor de Deus nas Escrituras significa a santa reverência
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humilde a ele, como nosso Pai celestial e Soberano, que nos faz cautelosos para que não o ofendamos, e tenhamos cuidado em agradá-lo. Por isso, o temor de Deus é abrangente em todas as religiões, "o dever de todo homem", para o qual isto é uma introdução, e é o principal ingrediente da mesma. A compaixão e a misericórdia de Deus é a causa de um temor filial, misturado com amor e compromisso dos homens. Outros atributos, sua Santidade que emoldurou a lei, a justiça que ordenou o castigo do pecado, o poder que o inflige, torna sua majestade terrível, e causa uma fuga dele como um inimigo. Se tudo deve perecer por seus pecados, nenhuma oração ou louvor os levará ao céu, toda a adoração religiosa cessará para sempre, mas sua terna misericórdia prontamente recebe os humildes suplicantes, e os restaura em seu favor, e isto nos leva a amá-lo e admirá-lo, e também nos conduz para perto dele. Há duas proposições a serem considerados no versículo do nosso texto:
I. Que o perdão pertence a Deus.
II. Que o perdão misericordioso de Deus é um poderoso motivo de adoração e obediência a ele.
Quanto à primeira proposição é necessário considerar,
1. O que está contido no perdão.
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2. Os argumentos que demonstram que o perdão pertence a Deus.
1. O que está contido no perdão.
Isto supõe necessariamente pecado, e o pecado supõe uma lei que é violada por ele: a lei implica um legislador soberano, a cuja vontade declarada a sujeição é devida, e que exigirá uma prestação de contas no julgamento da obediência ou desobediência dos homens à sua lei, e que atribuirá recompensas e punições conforme for o caso.
Deus pelos mais claros títulos "é o nosso rei, nosso legislador e juiz”; porque ele é nosso criador e preservador, e consequentemente possui uma plena propriedade de nós, e autoridade absoluta sobre nós; e por sua soberana e singular perfeição está qualificado para nos governar. Um ser criado está necessariamente em um estado de dependência e sujeição. Todas as espécies de criaturas do mundo são ordenadas por seu Criador; seus "reino domina sobre tudo."
Criaturas meramente instintivas são conduzidas pelos impulsos da natureza para suas ações, e não por terem qualquer luz para distinguir entre o bem e o mal moral, elas não têm escolha, e são incapazes de receber a lei, mas criaturas inteligentes são dotadas de faculdades judiciosas e livres, e têm
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entendimento para discernir entre o bem e o mal moral, e para escolher ou rejeitar o que lhes é proposto, e são capazes de ter uma lei para dirigir e regular a sua liberdade.
Para o homem, a lei foi dada pelo Criador, (a cópia de sua sabedoria e vontade) a qual possui todas as perfeições de uma regra. Ela é clara e completa, ordenando o que é essencialmente bom, e proibindo o que é essencialmente mau. Deus governa o homem em conformidade com a sua natureza, e nenhum serviço é agradável a ele, senão o quer for o resultado da nossa razão e escolha, a obediência dos nossos supremos poderes principais. Desde a queda no pecado, a luz do entendimento comparada com a descoberta da gloriosa condição que havia em nosso estado original, ou é como o crepúsculo da noite, quando cai um véu escuro sobre o mundo, ou como a alva da manhã, quando o sol nascente começa a dispersar a escuridão da noite. Eu acho que esta última comparação é mais justa e regular; pois é dito que o Filho de Deus "ilumina todo homem que vem ao mundo." A luz inata descobre que há uma linha reta da verdade para regular o nosso julgamento, e uma linha reta de virtude para regular nossas ações. A consciência natural é um princípio de autoridade, dirigindo-nos a escolher e a praticar a virtude, e para evitar o vício. É pouco provável que qualquer um seja tão prodigiosamente ímpio, que não esteja convencido da retidão natural que há em todas as coisas criadas: eles podem distinguir entre o
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que é justo e o que é fraudulento nas relações, e reconhecem no geral, e no julgamento de outros, a equidade das coisas, embora se iludam com a força da convicção na sua aplicação para si mesmos. Agora, já que a razão comum descobre que há uma regra comum, deve haver um juiz comum perante o qual os homens são responsáveis pelo desvio ou conformidade de suas ações a essa regra. A lei de Deus é revelada em sua pureza e perfeição na Escritura.
A lei obriga primeiro à obediência, e na sua negligência, à punição. O pecado é definido pelo apóstolo João como sendo "a transgressão da lei." A omissão daquilo que é ordenado, ou fazer o que é proibido, é pecado. Não somente as cobiças que irrompem em ações e evidências, mas inclinações interiores, contrárias à lei, são pecado. Daqui resulta uma culpa sobre cada pecador, que inclui a imputação da culpa e a obrigação de punição. Há uma conexão natural entre o mal da ação, e o mal do sofrimento: a violação da lei é justamente vingada pela punição da pessoa que a quebra. É uma imaginação impossível, que Deus deveria dar uma lei não executada com uma sanção. Isso seria lançar uma mancha sobre a sua sabedoria, pois a lei tornaria nula a si mesma, e derrotaria os fins pelos quais fora dada; seria imputar uma alta desonra à sua santa majestade, como se fosse indiferente com relação à virtude ou ao vício, e desconsideração da nossa irreverência ou rebelião contra a sua autoridade. O apóstolo declara que "todo o mundo tornou-se culpado
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diante de Deus," o que torna imputável os seus crimes e sujeito ao julgamento de Deus. O ato do pecado é transitório, e o prazer desaparece, mas a culpa, se não perdoada e purgada, permanece para sempre nos registros da consciência. "O pecado de Judá está escrito com um ponteiro de ferro e com a ponta de diamante, está esculpido nas tábuas do coração." Quando os livros da vida eterna e da morte forem abertos no último dia, todos os pecados não perdoados dos homens, com suas agravantes mortais, serão registrados por escrito em caracteres indeléveis, e serão colocados em ordem diante de seus olhos, para a sua confusão: "o justo Juiz jurou que ele não esquecerá nenhuma das suas obras." De acordo com o número e a atrocidade de seus pecados, a sentença deve passar sobre eles: não haverá desculpas que possam suspender o juízo, nem mitigar a execução imediata do mesmo.
O perdão dos pecados contém a abolição de sua culpa e a liberdade da destruição consequente merecida por eles. Isto é expressado por vários termos na Escritura. O perdão se relaciona com algum dano e ofensa nos quais a parte ofendida pode severamente reivindicar o seu direito. Agora, embora o bendito Deus, falando estritamente, não possa receber qualquer dano por criaturas rebeldes, sendo infinitamente superior à impressão do mal, ainda que, como diz o nosso Salvador de alguém que olha para uma mulher com desejo impuro, que cometeu adultério com ela em seu coração, embora a inocência da mulher seja imaculada, de modo
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que os pecados dos homens, sendo atos de ingratidão contra a sua bondade, e notória injustiça contra a sua autoridade, são em um certo sentido prejudiciais a ele, e assim pode exercer justamente vingança sobre eles, mas a sua misericórdia os poupa. O "não imputar o pecado" é apagado das contas dos servidores com seus mestres, e implica a conta que somos obrigados a saldar com o supremo Senhor por todos os benefícios dos quais temos tão miseravelmente abusado. Ele pode justamente exigir de nós os dez mil talentos que lhes são devidos, mas ele, graciosa e prazerosamente risca a nossa dívida em seu livro, e livremente nos desobriga da dívida que temos para com ele. A "purificação do pecado", implica que ele é muito odioso e ofensivo aos olhos de Deus, e tem uma relação especial com os sacrifícios expiatórios, dos quais se diz, que "sem sangue não há remissão." Isso era típico do precioso sangue do Filho de Deus que purifica a consciência "de obras mortas”; da culpa do pecado mortal que crava a consciência do pecador. Através da aplicação do seu sangue a culpa carmesim é lavada, e o pecador perdoado é aceito como alguém puro e inocente.
2. Vou demonstrar a seguir, que o perdão pertence a Deus. Isso será evidente pelas seguintes considerações.
1. É a elevada e peculiar prerrogativa de Deus perdoar o pecado. Sua autoridade fez a lei, e dá vida e vigor a ela, portanto, ele pode remir a
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punição do ofensor. Isto é evidente a partir da proporção das leis humanas, pois, embora os juízes subordinados tenham apenas um poder limitado, e devam absolver ou condenar de acordo com a lei, contudo, o juiz soberano pode revogar suas decisões. Isto é declarado nas Escrituras pelo próprio Deus: "Eu, eu sou aquele, que apago as tuas transgressões por amor do meu nome”, Isa 43. Ele repete isto com ênfase. Ele é proclamado com este título real, “o Senhor clemente e misericordioso, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado." É uma dispensação da soberania divina perdoar o culpado.
Isto é verdade - o perdão a Deus como um pai, de acordo com a promessa graciosa: “poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve.”, Malaquias 3.17, mas isto é feito com a dignidade da sua soberania. Nosso Salvador nos dirige, na perfeita forma de oração ensinada aos seus discípulos a orarem a Deus para o perdão dos nossos pecados, como “nosso Pai que está no céu" em um trono elevado, de onde ele pronuncia o nosso perdão. Sua majestade é gloriosa com sua misericórdia nessa bendita dispensação. Sua supremacia real é mais visível no exercício da misericórdia para com os pecadores arrependidos, do que em atos de juízos sobre criminosos obstinados. Como um rei é mais um rei por perdoar os suplicantes humildes pela operação de seu cetro, do que subjugar os rebeldes pelo poder da espada; porque nos atos de graça, ele está acima da lei, e
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anula o seu rigor, e nos atos de vingança ele somente está acima dos seus inimigos. É prerrogativa peculiar de Deus perdoar o pecado. O profeta reputa todas as divindades criadas pelos pagãos como defeituosas quanto a este poder real: "Quem é Deus semelhante a ti, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado?”, Miqueias 7. O que os fariseus disseram é verdade, “Quem pode perdoar pecados senão Deus?". Porque isto é uma prerrogativa de um imperador absoluto, como somente Deus o é. O poder judicial para o perdão é uma flor inseparável da coroa, porque está fundado numa superioridade à lei, portanto, incompatível com uma autoridade subordinada. A criatura é assim incapaz, e está muito longe de ter a supremacia de Deus para perdoar o pecado, bem como da Sua onipotência para criar o mundo, porque ambos são verdadeiramente infinitos. Além disso, o poder de perdoar pecados, implica necessariamente um conhecimento universal das mentes e dos corações dos homens, que são as fontes de suas ações, e conforme a inclinação deles para o bem ou para o mal moral aumenta. Quanto mais deliberada e intencionalmente um pecado é cometido, o pecador incorre numa maior culpa, e requer uma punição mais pesada. Agora, nenhuma criatura pode mergulhar no coração dos homens: "eles estão nus e abertos ao olhar penetrante de Deus.” Adicione ainda mais isto: o poder de autoridade para perdoar, tem, necessariamente anexada, a potência ativa de dispensar recompensas e punições. Agora,
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somente o Filho de Deus "tem as chaves da vida e da morte em suas mãos." Pode ser objetado que o nosso Salvador declara que "o Filho do Homem tem poder para perdoar pecados.” A resposta para isso ficará clara ao se considerar que há duas naturezas em Cristo, a natureza divina, que originalmente pertence a ele, e é própria à sua pessoa; e a natureza humana, que é como se fosse adotiva, e foi assumida voluntariamente. Agora, a pessoa divina é o único princípio e sujeito desta dignidade real, mas o perdão é exercido em sua conjunção com a natureza humana, e atribuído ao Filho do homem, com base na humilhação de Cristo, os princípios de seus sofrimentos, e os sofrimentos reais, que existem somente na natureza humana, mas por conta da união pessoal eles são atribuídos à pessoa divina, pos se diz: "o Senhor da glória foi crucificado", e "o sangue de Deus" resgatou sua igreja. A igreja de Roma, com alta presunção, arroga para seus sacerdotes um poder judicial de perdoar os pecados, e pela fácil insensatez e ingenuidade das pessoas, e o engano de seus instrutores, exerce uma jurisdição sobre a consciência. Para evitar a imputação de blasfêmia, eles afirmam que há um duplo poder de perdoar, um supremo e outro subordinado, o primeiro pertence a Deus, e o outro é delegado por comissão para os ministros do evangelho. Mas isso é uma contradição irreconciliável: o poder de perdoar é uno e flui de supremacia, e é incomunicável ao homem. Um príncipe que investe uma outra pessoa com um poder
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absoluto para perdoar, deve renunciar à sua soberania.
Nenhum homem tem recebido portanto, poder supremo de Deus para pronunciar e dispensar perdão, porque não têm nenhuma autoridade judicial, pois não é presumível que o Deus sábio invista homens com uma autoridade que eles são absolutamente incapazes de exercer.
(A concessão ou retenção de pecados que nosso Senhor atribuiu a toda a igreja, tem em vista tão somente a aplicação da disciplina para a recepção ou afastamento da comunhão dos santos, pelo arrependimento demonstrado, no primeiro caso, e pela obstinação por permanecer no pecado, para o segundo. (Mateus 18; João 20.23).
Evidentemente, está excluída disto a capacidade para absolvição do erro e para a remoção da culpa, até mesmo porque, não há quem não seja pecador aos olhos de Deus, e que não necessite também de ser perdoado por ele.
Isto é evidente para qualquer um que tenha o Espírito Santo habitando nele, para lhe instruir para discernir corretamente este assunto. Mas quando não se tem o Espírito e não se é guiado por ele, qualquer um pode afirmar ter poderes que não possui e que são exclusivos de Deus.
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E uma incorreta interpretação do significado das palavras de nosso Senhor atribuir a si mesmo a qualificação de mediador entre Deus e o pecador, quando na verdade é afirmado expressamente nas Escrituras que há somente um Mediador para reter ou perdoar pecados, que é nosso Senhor Jesus Cristo. (I Tim 2.5) Isto é prerrogativa exclusiva dEle, e assim, nem mesmo a Igreja como um todo a possui, e nem mesmo os seus prelados. Nenhum sacerdote, pastor, presbítero, diácono, profeta, mestre, possui a citada autoridade, nem isoladamente, e nem em grupo.
Isto não é sequer uma prerrogativa de lideranças da Igreja, porque quando nosso Senhor e os apóstolos se referem à Igreja, isto é sempre aplicado a todo o corpo de cristãos que se reúnem nas diversas congregações locais, e cabe a todos os que estão em comunhão deliberar quanto aos assuntos relativos à disciplina ou ao interesse de todo o corpo de Cristo, como vemos por exemplo em Atos 15.22 e Mateus 18.17.
Os que são constituídos como bispos (supervisores, líderes) sobre o rebanho do Senhor não devem deliberar qualquer assunto de interesse da igreja, aparte da participação e aprovação da mesma – nota do tradutor)
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2. Deus está pronto a perdoar. O poder de perdoar sem uma inclinação para isto, não oferece qualquer alívio para as agonias de uma consciência acusada, e para os terrores do juízo eterno. A vontade misericordiosa de Deus declarada em sua palavra, é o fundamento da nossa bendita esperança, e nos encoraja em nossos pedidos diante do seu trono: "Pois tu, Senhor, és bom e compassivo; abundante em benignidade para com todos os que te invocam.” Sl 86.5. O atributo do qual o perdão é uma emanação, é geralmente expresso por graça e misericórdia. Diz-se, a "graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, pela graça sois salvos”. Graça significa favor livre. Existe a este respeito uma diferença entre amor e graça. O amor pode ser definido num objeto digno dele. O objeto principal do amor de Deus é ele próprio, cujas excelentes perfeições são dignas de amor infinito. O amor de pais por filhos é um dever mais claramente natural, mas a graça exclui todo o mérito e dignidade, e toda a obrigação da pessoa que a manifesta. Ainda mais a graça de Deus é exercida sem um motivo em nós que a mereça. A graça de Deus pode ser considerada como tendo sido exercida em nossa criação e na nossa redenção. Na criação era absolutamente livre, porque os anjos e os homens não existiam antes, e havia apenas um modo de serem trazidos à existência. Agora, não pode haver qualquer
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mérito antes de sua existência. É verdade, a bondade é glorificada e coroada por comunicação: o mundo é um fluxo brilhante da glória divina, mas não diminui a bondade livre do Criador. Não houve restrição em Deus para fazer o mundo para a Sua glória; porque sua glória essencial é verdadeiramente infinita, e não depende de aparência externa para ser tornada completa. A igreja universal paga humilde homenagem ao grande Criador, "reconhecendo que, para seu prazer e vontade todas as coisas foram criadas." A bondade divina para com os anjos e os homens em sua pureza original, era graça, porque embora a imagem de Deus brilhando neles fosse motivo para a sua aprovação e aceitação, ainda assim, não mereciam nenhum benefício dele: há uma distância e desproporção muito infinitas entre Deus e as criaturas, que não podem, por um direito comum reivindicar qualquer coisa como dever de sua majestade. Além disso, ele é a causa produtiva e conservadora de todas as suas faculdades ativas, e a eficácia das mesmas. A criação da bondade de Deus é eclipsada na comparação com a sua graça salvadora. A primeira pressupõe nenhuma deserção do seu favor, mas isso pressupõe nossas más deserções: a primeira era livre, mas misericordiosa e curativa graça. A misericórdia nos reaviva e nos restaura quando estamos em miséria. Esta graça e misericórdia é de tão pura natureza, que as inclinações humanas mais ternas para aliviar os aflitos, são misturadas com
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autointeresses em comparação com a misericórdia de Deus para conosco. Nossas entranhas se comovem e nossas afeições se manifestam com a visão de pessoas em miséria profunda. Mas há um constrangimento interior e involuntário da natureza que excita sentimentos ressentidos, e nossa compaixão é movida pela reflexão sobre nós mesmos, considerando que nesse estado estamos sujeitos a muitas tristezas e mágoas, mas Deus é infinitamente livre de toda paixão perturbadora, e isento de todos os males possíveis. Para representar o imenso amor e a misericórdia de Deus em suas circunstâncias cativantes, e para demonstrar sua disposição de perdoar, devemos considerar o que ele fez com o propósito de perdoar pecadores. 1. Se considerarmos Deus como legislador e juiz supremo do mundo, como o protetor da justiça e da bondade, e o vingador de todas as desordens de seu governo moral, isto o leva a não perdoar os pecadores sem que o pecado seja punido de uma maneira que possa satisfazer à sua justiça ofendida, e vindicar a honra de sua lei desprezada, e declarar mais convincentemente seu ódio contra o pecado. Agora, para esses grandes objetivos, ele decretou enviar seu Filho do seu seio, para assumir a nossa natureza, e sofrer a terrível calamidade da morte de cruz, para fazer a propiciação pelos nossos pecados. Este foi o planejamento de sua sabedoria, que os anjos mais esclarecidos não chegaram a ter noção disto. Agora, pode haver uma evidência mais
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real, clara e convincente de que Deus está pronto para perdoar os pecados, do que a dar o seu Filho unigênito, a pessoa tão elevada e querida, o herdeiro de seu amor e glória, para ser um sacrifício, para que ele pudesse nos poupar? Nesta dispensação, o amor foi o atributo principal regente, para que a sua sabedoria, justiça e poder ficassem a ele subordinados: eles estavam em exercício para uma ilustração mais gloriosa da sua misericórdia. Nós temos o mais forte argumento do amor de Deus na morte de seu Filho, para que o nosso perdão fosse o fim disto. A partir daí, é evidente que Deus está mais disposto a dispensar sua misericórdia redentora, do que os pecadores estão para recebê-la. 2. A prontidão de Deus para perdoar apela nos termos graciosos e fáceis prescritos no evangelho para a obtenção do perdão. Há duas maneiras de justificação diante de Deus, e elas são como dois caminhos de uma cidade: um é direto e curto, mas profundo e intransponível, o outro encontra-se em um circuito, mas vai trazer uma pessoa segura para o local. Assim, há uma justificativa de uma pessoa que se assegura pelas obras, que se prende à imposição da lei, e uma justificação do pecador pela fé em nosso todo-suficiente Salvador. A primeira era um caminho curto para o homem, no estado de integridade; a segunda, tal é a distância entre os termos, que tem que ser usada uma bússola. Há uma passagem mais
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curta da vida para a ação, do que da morte para a vida. Não há esperança ou possibilidade de nossa justificação legal. Diz o apóstolo, "aquilo que a lei não poderia fazer no que estava enferma pela carne, Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e pelo pecado, condenou o pecado na carne.", Rom 8. A expiação do pecado, e a nossa renovação à imagem de Deus, são obtidas por meio do evangelho. A lei é chamada, "a lei do pecado e da morte", o que deve ser entendido não como considerado em si mesmo, como sendo a lei de Deus, mas relativamente à nossa natureza depravada. A lei supõe os homens em um estado de natureza não corrompida, e foi dada para ser um preservativo da nossa santidade e felicidade, e não um remédio para nos recuperar do pecado e da miséria. Ela era uma diretriz do nosso dever, mas desde nossa rebelião a vara é transformada numa serpente. A lei é dura e imperiosa, severa e inexorável, o seu teor é este, "faça ou morra para sempre”. Ela exige uma justiça completa e sem mácula, aquilo que aquele que é nascido em pecado não pode produzir no tribunal de julgamento. O homem é totalmente incapaz, por seus poderes caducos, de recuperar o favor de Deus, e para cumprir sua obrigação pela obediência à lei. Mas o evangelho descobre um caminho aberto, fácil para a vida, para tudo o que se referir à salvação pelo Redentor. O apóstolo expressa a diferença entre a condição da lei e do evangelho de uma forma muito significativa. Moisés descreve a justiça que é da lei, de que o homem
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que faz estas coisas viverá por elas, mas a justiça que vem da fé fala desta maneira: “Mas a justiça decorrente da fé assim diz: Não perguntes em teu coração: Quem subirá ao céu?, isto é, para trazer do alto a Cristo; ou: Quem descerá ao abismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos. Porém que se diz? A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração; isto é, a palavra da fé que pregamos. Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo.”, Rom 10.6-9. O que o apóstolo quer dizer é que é que as coisas acima no céu, ou nas profundezas abaixo, são de descoberta e realização impossíveis, por isso é igualmente impossível ser justificado pelas obras da lei. O pecador ansioso procura em vão por justiça na lei, que somente pode ser encontrada no evangelho. Pode-se objetar que a condição da lei, e a condição do evangelho, comparadas relativamente às nossas faculdades corrompidas, são igualmente impossíveis. A mente e as afeições carnais, são assim avessas a se arrepender e receber a Cristo como nosso Senhor e Salvador, assim como em relação à obediência da lei. Nosso Salvador diz aos judeus, "mas não quereis vir a mim para que tenhais vida, e ninguém pode vir a mim se o Pai não o trouxer." Estas palavras são altamente expressivas de nossa total impotência para acreditar na salvação em Cristo. Mas há uma resposta clara a essa objeção, a diferença entre as duas dispensações consiste principalmente
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no seguinte: a lei exige obediência total e constante como a condição de vida, sem dar o menor poder sobrenatural para realizá-lo. Mas o evangelho tem o espírito de graça concomitante com ele, os pecadores por essa eficácia onipotente são revividos, e habilitados para cumprir os termos da salvação. O espírito da lei é denominado o espírito de escravidão por seus efeitos rigorosos; ela descobriu o pecado, e aterrorizou a consciência, sem a implantação de um princípio de vida que possa restaurar o pecador a um estado de santa liberdade. Como o fogo no mato fez os espinhos nele visíveis, sem consumi-los, assim o fogo da lei descobre os pecados dos homens, mas não os remove, mas "a lei do Espírito da vida em Cristo Jesus, isto é, o evangelho, nos libertou da lei do pecado e da morte." Eu vou mais particularmente considerar os termos graciosos prescritos no evangelho para a obtenção de perdão; "Arrependimento para com Deus e fé no Senhor Jesus Cristo." A necessidade deles não é uma constituição arbitrária, mas fundada na natureza imutável das coisas. Arrependimento significa uma mudança sincera da mente e do coração do amor às práticas do pecado, para o amor e à prática da santidade, com base em motivos evangélicos e divinos. Os principais ingredientes nisto são, reflexões com tristeza e vergonha sobre os nossos pecados passados, com resoluções firmes para uma futura obediência. Isto é um princípio vital produtivo de frutos adequados
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para ele (arrependimento): ele é chamado de "arrependimento de obras mortas, o arrependimento para a vida." É a semente de uma nova obediência. O arrependimento na ordem de natureza é anterior ao perdão, mas eles estão inseparavelmente unidos no mesmo ponto do tempo. Davi é um exemplo abençoado disto: "Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: confessarei ao Senhor as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado.", Sl 32.5. A súmula e o teor da comissão do apóstolo registrada por Lucas é, "o arrependimento e a remissão dos pecados deve ser pregado em nome de Cristo a todas as nações." Lucas 24. Que somente um pecador arrependido está qualificado para o perdão, será evidente ao considerarmos, (1) Que um pecador impenitente é o objeto de vingança e juízo; e é então absolutamente inconsistente que a misericórdia perdoadora e o juízo vingativo devam ser aplicados à mesma pessoa, ao mesmo tempo, e no mesmo sentido. Diz-se: "o Senhor odeia todos os que praticam a iniquidade, e sua alma odeia o ímpio." A expressão indica graus intensos de ódio. Quando da gloriosa aparição de Deus a Moisés, quando proclamou com os mais altos títulos de honra: "O Senhor Deus, clemente e misericordioso, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado", isto é adicionado, “ele não inocenta o culpado", isto é, os pecadores impenitentes. Devemos supor que Deus seja de natureza mutável flexível, (que é uma
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imaginação blasfema, e faz com que ele goste do homem por ser ele pecador) a ponto de um pecador impenitente poder ser recebido sem buscar uma mudança em sua disposição. Deus não pode se arrepender de dar uma santa lei, a regra do nosso dever, portanto, o homem deve se arrepender de sua violação da lei antes que ele possa se reconciliar com Deus. A verdade é que o homem considerado apenas como um pecador não é objeto da misericórdia de Deus, isto é, de piedade e compaixão, pois como tal, ele é objeto da ira de Deus, e é uma contradição formal afirmar que ele é objeto do seu amor e ódio ao mesmo tempo. Mas o homem, considerado como criatura de Deus, envolvido na miséria pela fraude do tentador, e sua própria loucura, era o objeto da compaixão de Deus, e a recuperação dele de seu estado miserável abandonado, foi o efeito desta compaixão. (2) Apesar de a misericórdia ser considerada como um atributo separado ela pode perdoar um pecador impenitente, mas não em conjunto e harmonia com as perfeições essenciais de Deus. Muitas coisas são possíveis de serem absolutamente consideradas, quanto ao que Deus não pode fazer, porque o seu poder é sempre dirigido em seu exercício, pela sua sabedoria, e limitado pela sua vontade. Seria menosprezar a sabedoria de Deus, manchar sua santidade, violar a sua justiça, perdoar um pecador impenitente. O evangelho com a promessa de perdão para tal, seria frustrado no seu objetivo principal, que é para “nos purificar
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de toda a iniquidade, e fazer de nós um povo zeloso de boas obras." (3) Se um pecador impenitente pode ser perdoado como tal, ele pode ser glorificado: pois o que qualifica um homem em busca de perdão, o qualifica para a salvação, e o decreto divino estabelece uma ligação inseparável entre eles, "a quem Deus justifica, ele glorifica”, Rom 8.30. Neste caso suposto, se um pecador morre imediatamente após ter recebido o seu perdão, nada pode impedir de ser recebido no céu. Agora isso é totalmente impossível, pois sem santidade ninguém verá a Deus. A admissão de um pecador impenitente no céu poluiria o lugar santo, e removeria a consagração do templo de Deus, onde sua santidade brilha em sua glória É contestado por alguns, que o arrependimento que é requerido para qualificar o pecador para o perdão ofusca a graça do evangelho. Mas esta pressuposição é mal fundamentada e mal orientada neste assunto. Isso será evidente, considerando: Que o arrependimento é uma graça evangélica, o dom do Redentor: “Deus, porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados.”, Atos 5.31. A lei não continha o arrependimento, nem a promessa do perdão para a salvação. O desígnio da lei era o de nos manter no favor e comunhão com Deus, mas não proporcionava qualquer meio de reconciliação após que o ofendêssemos. O
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arrependimento não tinha o menor grau na perfeição do homem antes da sua queda, mas é um alívio para a sua imperfeição depois. A lei chama os justos para a obediência, o evangelho chama os pecadores ao arrependimento. Que não há causalidade ou mérito no arrependimento para obtermos o nosso perdão. A misericórdia de Deus por causa dos mais preciosos méritos e mediação de Jesus Cristo é a única causa do perdão. Uma torrente de lágrimas de arrependimento, uma efusão de nosso sangue, são de um preço muito baixo para fazer qualquer satisfação a Deus, e para merecer um retorno ao seu favor. O amor mais sincero de santidade e firme resolução de abandonar o pecado, que é a parte principal de nosso arrependimento, pode satisfazê-lo quanto às nossas ofensas passadas, pois é dever natural do homem perante a prática do pecado: o arrependimento é apenas uma qualificação vital no assunto que se refere ao perdão. Que é muito óbvia a graça de Deus em conceder perdão, em conformidade com a ordem do evangelho para os pecadores arrependidos. Porque primeiro, o arrependimento torna a misericórdia divina mais honrosa na estima daqueles que participam dela. Nosso Salvador nos diz que: "não precisam de médico, senão aqueles que estão doentes." Aquele que sente a sua doença, e está fortemente apreensivo com o seu perigo, valoriza o conselho e a assistência de um médico acima de todos os tesouros. O pecador arrependido que está sob a forte
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convicção de sua culpa, e do seu constante desagrado a Deus, e a consequência da miséria eterna que disso decorre, valoriza o favor de Deus como o bem mais soberano, e considera seu descontentamento como o mal supremo. O arrependimento inspira afetos ardentes em nossas orações e louvores pelo perdão. O pecador arrependido ora para o perdão com tanto fervor como Daniel orou na cova, para ser preservado dos leões devoradores, ou como Jonas orou do ventre do inferno por libertação. Ele não se dirige a Deus com desejos fracos, mas com desmaios por misericórdia, "Dê-me o perdão, ou eu morro.", Jonas 2. O pecador insensível que está seguro na sombra da morte, pode oferecer alguns pedidos verbais para o perdão, mas a sua oração é defeituosa no princípio, porque ele nunca sente a sua necessidade de perdão; ele ora tão friamente como se fosse indiferente se ele será aceito ou não. E com que êxtase de admiração e alegria, e sentimentos de gratidão, o penitente perdoado exalta a misericórdia divina? A mulher na casa do fariseu Simão se derretia em lágrimas de arrependimento, porque ela “amava muito, porque foi muito perdoada.” Esta afirmação de que o arrependimento qualifica um pecador para o perdão, é mais benéfica para o homem, e, consequentemente, mais ilustra o perdão da misericórdia. Devemos observar, que o pecado não somente nos afeta com a culpa, mas deixa uma corrupção inerente, que contamina e degrada o pecador, e ele se inclina fortemente para a recaída na
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rebelião. Agora o arrependimento dá a verdadeira representação do pecado em suas consequências penais, a ira do Todo-Poderoso, os terrores de consciência, e torna isto evidente e odioso para a alma. Davi teve uma convicção aguda da grave falta que era um pecado de adultério, quando seus "ossos foram quebrados." O arrependimento em tristeza ataca a raiz do pecado, a saber, o amor pelo prazer. Isso nos faz temerosos de ofender a Deus, e nos faz fugir de todas as tentações sedutoras que nos atraiam para pecar. Isso nos faz obedientes. O metal derretido é receptivo a qualquer forma. A contrição é acompanhada com resignação: "Senhor, que queres que eu faça”, foi a voz de arrependimento de Saulo. Pode ser objetado isto que lemos: "Deus justifica o ímpio", mas a resposta é clara. O apóstolo não tem a intenção de um ímpio, um pecador impenitente, mas apresenta a diferença entre o ímpio e alguém que obedece perfeitamente a lei, e é, consequentemente, justificado pelas obras, e, neste sentido, os mais excelentes santos aqui são ímpios. Além disso, o apóstolo não afirma que Deus absolutamente perdoa o ímpio, mas qualifica as pessoas: “Porque aquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, sua fé lhe é imputada como justiça.” Agora, justificado, a fé e o arrependimento são como gêmeos; o arrependimento é o primeiro sentimento, e então a fé opera na aplicação dos méritos da morte de Cristo para o nosso perdão.
É perguntado por alguns, se toda a graça é comunicada a partir de Cristo, como a nossa
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cabeça, supõe a nossa união com ele, de quem a fé é a parte vital e, consequentemente, a primeira graça, através da qual todas as outras graças são derivadas para nós.
A isso respondo, existem dois meios de nossa união com Cristo: o principal é o espírito vivificante descendente de Cristo como a fonte da vida sobrenatural, e uma fé viva operada em nós pelo sua operação pura e poderosa, que parte de nós e se une com ele. Diz-se, que o segundo Adão, foi feito "um espírito vivificante", e que aquele que se une "ao Senhor é um espírito com ele". Como as partes do corpo natural estão unidas pela influência vital da mesma alma que está presente em todo o corpo, de modo que estamos unidos a Cristo pelo Espírito Santo que lhe foi dado sem medida, e de sua plenitude que é comunicada a nós. Está claro, portanto, além de toda contradição, que a fé não é antecedentemente necessária, como o meio de transporte de todas as graças a nós que nos vêm de Cristo.
Há dois atos de fé: o primeiro diz respeito à oferta geral de perdão no evangelho para todos os pecadores arrependidos crentes; o segunda é a aplicação da promessa de perdão para a alma. O primeiro é antecedente ao arrependimento evangélico; o segundo é claramente consequente na ordem natural, pois a promessa assegura o perdão somente aos "cansados e oprimidos que vierem a Cristo para receber o descanso.”
Em suma, não há um acordo perfeito e simpatia entre a razão e a revelação divina nesta doutrina,
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que somente Deus perdoa o pecador arrependido. A afirmação contrária é uma anulação da retidão da sua natureza, e diretamente contrária ao projeto e teor do evangelho. Se um homem pode ser justificado como ímpio, o mandamento evangélico de arrependimento para a remissão dos pecados é inútil e sem proveito. Que pode haver uma influência perniciosa sobre a prática desta doutrina, é óbvio para qualquer um que considerar isso. Eu somente adiciono o seguinte: se Deus perdoa os homens como ímpios, “Como ele julgará o mundo?" Foi profetizado por Enoque, "Eis que o Senhor vem com dez mil santos para julgar todos os ímpios por suas obras de impiedade, que têm impiamente cometido.” Agora, como o apóstolo Tiago argumenta contra a perversidade dos homens, "quando da mesma boca procede a bênção e a maldição; porventura pode a fonte jorrar águas doce e amarga?” Tg 3.10. Esta instância é incomparavelmente mais forte no que diz respeito a Deus do que aos homens. É mais consistente e concebível que uma fonte manasse água doce e salgada, de que o Deus santo e justo, em cuja natureza não há a menor discórdia, deva justificar alguns como ímpios, e condenar os outros como ímpios para sempre.
A fé no Senhor Jesus Cristo é a condição evangélica da obtenção do nosso perdão. Isso aparecerá, considerando a natureza da fé. A fé salvadora é uma convicção sincera do poder e desejo de Cristo para salvar os pecadores, que induz a alma para recebê-lo, e a confiar nele,
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pois ele é oferecido no evangelho. Nós temos a certeza de sua autossuficiência e da sua vontade compassiva para nos salvar; “Ele é capaz de salvar perfeitamente a todos os que vêm a Deus por ele." Nosso Salvador declara: "Quem vier a mim, de modo nenhum o lançarei fora." A fé está assentada na alma, e em conformidade com a verdade e a bondade transcendente do objeto, produz a estima mais preciosa e sagrada disto na mente, e o mais alegre consentimento e escolha disto na vontade. Assim, um crente sincero abraça inteiramente a Cristo como "um Príncipe e Salvador", e está muito disposto a ser governado por seu cetro, a depender de seu sacrifício. A aceitação e a confiança são os ingredientes essenciais da fé justificadora. Esta é a doutrina do evangelho eterno. O anjo o declarou aos pastores: "Eis que vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo, porque vos nasceu hoje, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor.", Lucas 2.10. "Esta é uma palavra fiel, e digna de toda aceitação, que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal.", 1 Tim 1.15.
A fé é indispensavelmente necessária para a obtenção do nosso perdão. A fé é o canal em que as questões preciosas de seu sangue e sofrimentos são encaminhados para nós.
Para tornar mais evidente o quão necessária e graciosa é uma condição de fé no Redentor, para o nosso perdão, vou considerar brevemente o fundamento do pacto de vida no evangelho:
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Depois que o homem mergulhou em condenação, visto que Deus decretou que, sem satisfação da sua justiça não deve haver remissão de seus pecados, e o pecador totalmente incapaz de suportar tal punição em graus, como deve, para ser verdadeiramente satisfatória, necessariamente se segue, que ele deve sofrer uma punição equivalente em duração. Para evitar isso, não havia nenhuma maneira possível, mas ao admitir a fiança, quem deveria representar o pecador, e em seu lugar sofrer o castigo devido ao pecado. Um tríplice consentimento era necessário nesta transação.
(1) O consentimento do soberano, cuja lei foi violada, e sua majestade desprezada, para que haja uma distinção natural entre pessoas e entre as ações de pessoas, assim, deve haver entre as retribuições dessas ações; consequentemente o pecador é obrigado a sofrer a punição em sua própria pessoa. A partir daí, é claro, que a punição não pode ser transferida para outro sem a permissão do soberano, que é o patrono dos direitos da justiça.
(2) O consentimento do fiador é requisitado: porque a punição sendo uma emanação de justiça não pode ser infligida a uma pessoa inocente, sem a sua apresentação voluntária para salvar o culpado. A fiança é legalmente uma pessoa com o devedor, caso contrário o credor não pode executar a ação, pela regra de direito, o pagamento pelo fiador, que é fixado pela lei sobre a pessoa do devedor.
(3) Isto é também claro, que o consentimento do culpado é necessário, que obtenha a
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impunidade pelos sofrimentos vicários de outro. Porque, se ele resolve levar a sua própria culpa, e deliberadamente se recusa a ser liberado pela apresentação de outro entre ele e a punição, nem o juiz nem o fiador podem obrigá-lo. Agora, todos estes concorrem nesta grande transação. Como a criação do homem foi uma obra de conselho solene: "Façamos o homem", por isso a sua redenção foi também o produto do conselho divino. Eu posso aludir ao que nos é representado na visão da glória divina ao profeta Isaías: "Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim.”, Isa 6.8. Assim, o levantar a nossa salvação foi do Pai. Ele faz a pergunta, quem deve ir por nós, para recuperar o homem caído? O Filho se apresenta, "Aqui estou, envia-me". O Pai em sua soberania e misericórdia nomeia e aceita o mediador e fiador para nós. Não fazia parte da lei dada no paraíso, que se o homem pecasse, ele deveria morrer, ou o seu fiador no seu lugar, mas foi um ato do livre poder de Deus como superior à lei, para nomear o seu Filho para ser o nosso avalista, e morrer em nosso lugar.
Diz-se no Evangelho: "Deus amou tanto o mundo”, então acima de toda, comparação e compreensão, ele deu e enviou seu Filho unigênito ao mundo, para que o mundo através dele pudesse ser salvo. O Filho de Deus, com a escolha mais livre, se interpôs entre o Deus justo e o homem culpado para esse fim. Ele voluntariamente deixou seu trono soberano no céu, eclipsou sua glória sob uma nuvem escura
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da carne, degradando-se na forma de um servo, e submetendo-se a uma morte ignominiosa e cruel para a nossa redenção. Quando ele veio ao mundo, ele declarou seu pleno consentimento, com uma nota de eminência: "Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo tu tens me preparado, então eu disse: Eis-me aqui para fazer a tua vontade, ó Deus.” Nesse consentimento do Pai e do Filho, toda a estrutura de nossa redenção é construída. A execução da justiça em Cristo é a expiação de nossos pecados, e pelos seus sofrimentos o preço total é pago para nossa redenção. Há uma troca judicial de pessoas entre Cristo e os crentes, a sua culpa é transferida para ele, e a sua justiça é imputada a eles. "Ele o fez pecado por nós, que não conheceu pecado, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus nele." 2 Coríntios 5. Sua obediência ativa e passiva, sua vida e morte são contadas para os crentes para a sua aceitação e perdão, como se tivessem feito meritoriamente a sua própria salvação.
O pecador deve dar o seu consentimento para ser salvo pela morte de Cristo sobre os termos do evangelho. Esta Constituição é fundamentada sobre os artigos eternos entre o Pai e o Filho no pacto da redenção. Nosso Salvador declara que "Deus deu o seu Filho, para que todo aquele que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna." Não obstante a plena satisfação feita pelos nossos pecados, tenha sido planejada e executada sem o nosso consentimento, todavia, sem uma fé que se aproprie deste planejamento divino, nenhum
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benefício poderia advir para nós. "Ele habita em nossos corações pela fé", e é por esta parte vital de nossa união que temos comunhão com ele em sua morte, e em tudo o que respeita a todos os benefícios abençoados por ele adquiridos, como se tudo o que ele fez e sofreu tivesse sido para nós somente. "Ele é a propiciação pela fé no seu sangue." Desse total consentimento do pecador, há um excelente exemplo no apóstolo: ele o expressa com o maior ardor de afeição: “Eu considero tudo como esterco para que possa ganhar a Cristo e ser encontrado nele, não tendo a minha justiça, que é da lei, mas a que vem pela fé em Cristo.", Fp 3.9. Como um pobre devedor insolvente, pronto para ser lançado numa prisão perpétua, anseia por uma fiança rica e liberal, para fazer o pagamento para ele; assim o apóstolo Paulo desejava ser encontrado em Cristo, como um fiador todo-suficiente, para que ele pudesse obter a liberdade da acusação da lei.
O estabelecimento do evangelho, do qual a fé é a condição do nosso perdão, de modo que ninguém pode ser justificado sem ela, é por pura graça. O apóstolo apresenta esse motivo pelo qual todas as obras são excluídas - aquelas realizadas no estado de natureza, ou por um princípio de graça - de serem a causa da aquisição da nossa salvação, que é para evitar a vanglória em homens que resultaria disso. "Vocês são salvos pela graça, mediante a fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus." Ef.2. O perdão do pecado é a parte principal de nossa salvação. Ele declara positivamente, que a justificação "é,
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portanto, da fé, para que seja segundo a graça", Rom 4. Se a justificação fosse obtida por uma condição de execução impossível, isto não teria nenhum favor para oferecer aquele bem-aventurado benefício para nós; senão sendo isto a certeza de um crente que humilde e gratamente o aceita, a graça de Deus é sumamente glorificada. Para tornar isso mais claro, a fé, pode ser considerada como uma graça produtiva, ou receptiva: como produtiva, purifica o coração, trabalha por amor, e nesta consideração não somos justificados por ela. A fé não tem eficiência em nossa justificação, isto é o ato exclusivo de Deus, mas a fé como uma graça receptiva, que abraça Cristo com seus preciosos méritos que nos são oferecidos na promessa, nos credencia para o perdão. E deste modo a graça divina é exaltada: porque aquele que depende totalmente da justiça de Cristo, renuncia absolutamente à sua própria justiça, e atribui a obtenção de perdão exclusivamente à misericórdia e ao favor de Deus, por causa do Mediador.
3. Que Deus está pronto a perdoar, está plenamente provado por muitas declarações graciosas em sua palavra, a expressão infalível de sua vontade. "Nós somos ordenados a buscar a sua face para sempre", seu favor e amor, porque o semblante é o espelho em que os afetos aparecem. Agora todos os mandamentos de Deus nos asseguram a sua aprovação e aceitação de nossa obediência a eles; segue-se, portanto, que é muito agradável para ele, que oremos para o perdão de nossos pecados, e que ele vai
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perdoá-los se orarmos da maneira devida. Quando ele proibiu o profeta Jeremias de orar por Israel, era um argumento de ruína decretada contra eles: "Não rogues por este povo, pois eu não te ouvirei.”, Jer 7.16. Para incentivar a nossa esperança, Deus tem o prazer de nos dirigir em nossos pedidos de misericórdia: ele dirige "Israel, que havia caído pela iniquidade, a observar a palavra, e voltar para o Senhor, lhes dizendo: “Perdoa toda iniquidade, aceita o que é bom e, em vez de novilhos, os sacrifícios dos nossos lábios.", Os 14.2. A isto se soma uma solene renúncia dos pecados que o provocaram à ira. Sua resposta graciosa se segue: "Curarei a sua infidelidade, eu de mim mesmo os amarei, porque a minha ira se apartou deles.", Os 14.4. Se um príncipe faz uma petição a um suplicante humilde para si mesmo, é uma forte indicação de que ele irá concedê-lo. Deus une súplicas aos seus mandamentos, para induzir os homens a aceitar essa misericórdia. O apóstolo declara: "De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo. Como se Deus suplicasse a vocês por nós, rogo-vos em nome de Cristo que vos reconcilieis com Deus", 2 Coríntios 5. Surpreendente bondade! quão condescendente, quão compassivo! A provocação começou por parte do homem, a reconciliação começou primeiro em Deus. Que o Rei do céu, cuja indignação foi acendida por nossas rebeliões, e com justiça poderia enviar algozes para nos destruir, enviaria embaixadores para nos oferecer a paz, e pedir que sejamos reconciliados com ele, como se
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fosse o seu interesse e não o nosso, é a misericórdia acima do que podemos pedir ou pensar. Com mandamentos e súplicas ele mistura promessas de perdão para nos encorajar a vir ao trono da graça: "Quem confessa e abandona seus pecados, alcançará misericórdia." Esta promessa é ratificada pela garantia ainda mais forte: "Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda injustiça.", 1 João 1. O perdão de um pecador arrependido é o efeito mais livre da misericórdia, mas é devido à honra da fidelidade e da justiça de Deus, que tem o prazer de se comprometer com a sua promessa de fazê-lo. E apesar de a palavra de Deus ser tão sagrada e certa como seu juramento, pois é impossível para ele mudar a sua vontade, ou para nos enganar em ambos, ainda para superar os temores, para aliviar as dores, para nos dar forte alento e satisfazer os desejos dos pecadores arrependidos, ele teve o prazer de anexar seu juramento à promessa, Heb 6.18, o qual é de um caráter mais infalível e, note que a bênção prometida é imutável.
Ele acrescenta ameaças aos seus convites, para que o temor, que é um sentimento ativo e forte, possa nos constranger a procurar a sua misericórdia. Nosso Salvador disse aos judeus que se fizeram cegos e endurecidos em sua infidelidade: "Se não credes que eu sou ele", o Messias prometido," e não virdes a mim para obter a vida, morrereis nos vossos pecados." João 8.24. O risco implica um estado final e temeroso,
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além de toda expressão, pois aqueles que morrem em seus pecados, devem morrer por causa deles por toda a eternidade. O inferno é a triste mansão das almas perdidas, cheio de ira e desespero extremos, e onde o desespero é sem remédio, a tristeza é sem mitigação para sempre. A partir daí podemos ser convencidos, como Deus está disposto a perdoar e a nos salvar, em saber como estamos enredados com os pecados que nos são agradáveis, ele nos revela qual será a consequência eterna dos pecados para os quais não houve arrependimento nem perdão, a punição acima de todos os males que são sentidos ou temidos aqui embaixo.
Se os homens se submetem ao chamado de sua palavra, e do seu Espírito, e, humildemente, aceitam os termos de misericórdia, isto é muito agradável para ele. Somos certificados por Jesus Cristo, que é verdade, que há "alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento." O próprio Deus declara com um solene juramento, que ele não tem prazer na morte do pecador, mas que se converta e viva. A santidade e a misericórdia de Deus são duas das suas mais divinas perfeições, a sua glória peculiar e prazer. Agora, o que pode ser mais agradável, do que ver uma criatura pecadora conformada com sua santidade, e salva pela sua misericórdia? Se a alegria interior de Deus, pela qual ele é infinitamente bendito, fosse capaz de novos graus, isto exaltaria de forma mais elevada o exercício da sua misericórdia, que
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perdoa. Há uma clara representação disso na parábola do filho pródigo, em seu retorno a seu pai que o recebeu com um roupão e um anel, com música e um banquete, os sinais de alegria são exaltados nisto. Mas, se os pecadores estão endurecidos, na obstinação, e não obstante Deus esteja tão disposto a perdoá-los, são voluntários para serem condenados, com o variedade de paixões que eles expressam em seu ressentimento. Ele assume a linguagem dos homens, para fazê-los compreender a sua afeição por eles. Às vezes, ele protesta com uma terna simpatia, “Por que morrereis?" como se fossem imediatamente cair no abismo. Ele expressa piedade, misturada com indignação, pela sua louca escolha e ruína; “Até quando, ó néscios, amareis a necedade? E vós, escarnecedores, desejareis o escárnio? E vós, loucos, aborrecereis o conhecimento?" (Pv 1.22). Que relutância e remorso ele expressa contra proceder aos juízos extremos? “Como te deixaria, ó Efraim? Como te entregaria, ó Israel? Como te faria como a Admá? Como fazer-te um Zeboim? Meu coração está comovido dentro de mim, as minhas compaixões, à uma, se acendem.”, Os 11.8.. Com que compaixão o Filho de Deus anunciou a destruição decretada de Jerusalém, por rejeitar o Salvador e a salvação! "e dizia: Ah! Se conheceras por ti mesma, ainda hoje, o que é devido à paz! Mas isto está agora oculto aos teus olhos.”, Lc 19.42. Como um juiz que se compadece do homem, quando ele condena o malfeitor.
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Aqueles que interpretam algumas expressões das Escrituras, de que "Deus ri da calamidade dos ímpios, e zomba quando o medo vem,” Pv 1.26, e é inexorável para as suas orações, em tal sentido, maiores são as expressões da graça de Deus, para induzir os pecadores a se arrependerem e crerem para a sua salvação; chamam a escuridão de luz, porque as ameaças são dirigidas contra os rebeldes obstinados que frustram os mais poderosos métodos da misericórdia, e rejeitam a chamadas de Deus, no dia da sua graça, e por meio de retribuição, suas orações são ineficazes, e rejeitadas, no dia da sua ira.
Que Ele é tão grande e irreconciliavelmente provocado pelo desprezo deles da Sua misericórdia, é uma indicação certa do quão altamente ele teria ficado satisfeito com a humilde aceitação deles da mesma. Que ninguém, então, por uma suspeita vil e miserável, suponha que os repetidos apelos de Deus para os pecadores voltarem a viver, não significam a sua vontade sincera, e diminuam a glória de sua bondade, e blasfemem da sua santidade sem mácula. A excelência da sua grandeza nos assegura da sua sinceridade. Por que a gloriosa Majestade da coorte do Céu deveria ser desprezada por criaturas que necessitam ser reconciliadas? Estamos infinitamente abaixo dele, e nenhuma vantagem pode ser dada a ele por nós. Príncipes temporais podem ser seduzidos pelos juros de enviar declarações falsas a rebeldes armados, para reduzi-los à obediência; mas o que o
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Altíssimo ganha com nossa submissão ou perde com nossa obstinação? Uma bondade falsificada visa à esperança de algum bem, ou ao temor de algum mal; e de ambos Deus é absolutamente incapaz. Somos todos desagradáveis para a sua justiça severa; não há ocasião em que ele deveria pretender, pela oferta graciosa de perdão, agravar o pecado e a sentença contra quem o recusar. Quem com coração triste e quebrantado, e que sinceramente odeie seus pecados, e procura perdão pelo Mediador, achará em sua experiência o ser poupado pela misericórdia, como asseguram as mais altas expressões disto nas Escrituras, e que excede a todos os seus pensamentos.
4. Inferimos que Deus está pronto para perdoar, por ele ser tão lento para punir. Apesar de todos os atributos divinos serem iguais em Deus, e não haja um acordo completo entre eles, mas há uma diferença em suas operações externas, João declara: "Deus é amor," que significa a sua bondade comunicativa, exercício este que é mais livre e agradável para ele do que os atos de vingança da justiça. “porque não aflige, nem entristece de bom grado os filhos dos homens.”, Lam 3.33. Sua misericórdia em dar e perdoar como os fluxos de água de uma fonte; atos de justiça são forjados a partir dele (como o vinho a partir das uvas) pelo peso nossos pecados. No primeiro dia do julgamento, o Salvador foi prometido antes que a maldição fosse determinada, como lemos no início do livro de Gênesis. Não obstante os homens pecadores quebram as suas leis, e pisam sobre ela perante
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a sua face; eles resistem e entristecem ao seu Espírito; e ainda assim ele retarda a execução do juízo, porque a longanimidade pode levá-los ao arrependimento.
Isso será exibido por considerar que a tolerância de Deus para com os pecadores não é,
1. Por falta de descoberta de seus pecados, a justiça humana pode suportar que uma pessoa culpada escape da punição por falta de provas claras, mas isto não se aplica à justiça do céu. "Deus é luz" no que diz respeito à sua pureza e onisciência. Seus olhos de fogo penetram através das mais densas trevas em que os pecados são cometidos, e todas as artes da dissimulação usadas para cobri-los. Ele vê todos os pecados dos homens, com o olho de um juiz, "E não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas.", Hb 4.13. Por isso se diz: "Deus vai exigir o que é passado”, e irá observar o que está por vir, para julgamento.
2. Não se trata de um defeito de Seu poder que os maus são poupados. Grandes príncipes são por vezes impedidos do exercício da justiça, quando a pessoa culpada é apoiada por um partido predominante contra eles, porque o poder de um príncipe não está, em si mesmo, mas naqueles que são seus súditos. Davi foi obrigado a poupar Joabe, após o assassinato de Abner, por causa de sua participação no exército, "os filhos de Zeruia, eram muito duros” para ele, e ele temia sua resistência rebelde. Mas o poder de Deus é inerente em si mesmo, e não depende de
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qualquer criatura: O Senhor é exaltado em seu próprio poder. Ele não teme ninguém, e deve ser temido por todos. Com um golpe de onipotência, ele pode destruir todos os seus inimigos para sempre. Ele pode, com maior facilidade subjugar os rebeldes mais obstinados, do que podemos respirar. Sua força é igual à sua autoridade, ambas são verdadeiramente infinitas. Os culpados são poupados, por vezes, pela parcialidade viciosa de príncipes aos seus favoritos, ou uma negligência miserável da justiça, mas o alto e santo Rei é, sem acepção de pessoas: ele odeia o pecado com ódio perfeito, e está irritado com o ímpio todos os dias . A Escritura nos dá conta porque a execução é adiada: “O Senhor não retarda o juízo (como alguns o julgam demorado), mas é longânimo para com todos, não querendo que ninguém pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento." "Ele espera ser gracioso", e poupa os homens na expectativa da sua salvação.
5. Parece que Deus está pronto a perdoar, em que, após o primeiro sinal de humildade e penitência dos que creem, ele os perdoa presentemente.
Se considerarmos quanto tempo os homens continuam em um curso de pecados, e quanto recusam as ofertas de misericórdia por serem culpados, isto pode justamente ser esperado, que Deus com desdém rejeite as suas petições ou não seja buscado sem um longo exercício de arrependimento, e contínuas, submissas e fervorosas solicitações de sua misericórdia. Mas
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o Rei do céu não mantém qualquer condição, o "trono da graça" está sempre aberto e acessível a penitentes humildes: quando seus corações estão preparados, seu ouvidos estão inclinados para ouvi-los. Davi, depois de praticar pecados muito desagradáveis, e ter ficado por longo tempo em estado de impenitência, mas no seu quebrantamento quanto à sua maldade, resolveu se humilhar por um reconhecimento triste disto, e ele foi restaurado ao favor divino. "Eu disse que ia confessar os meus pecados, e tu perdoaste a maldade do meu pecado." O arrependimento de Efraim é um exemplo admirável das entranhas compassivas de Deus para com os pecadores: “Bem ouvi que Efraim se queixava, dizendo: Castigaste-me, e fui castigado como novilho ainda não domado; converte-me, e serei convertido, porque tu és o Senhor, meu Deus. Na verdade, depois que me converti, arrependi-me; depois que fui instruído, bati no peito; fiquei envergonhado, confuso, porque levei o opróbrio da minha mocidade. Não é Efraim meu precioso filho, filho das minhas delícias? Pois tantas vezes quantas falo contra ele, tantas vezes ternamente me lembro dele; comove-se por ele o meu coração, deveras me compadecerei dele, diz o Senhor." (Jer 31.18-20).
O filho pródigo em sua resolução de regressar ao seu Pai, e considerando a si mesmo como totalmente indigno de ser recebido como um filho, enquanto ele estava no caminho, seu pai o viu à distância, e correu para ele, lançou-se sobre seu pescoço e o beijou, e perdoou a sua
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rebelião passada inteiramente. O publicano com sua alma ferida disse: “Senhor, sê propício a mim, pecador!”, e foi justificado, e não o fariseu orgulhoso.
6. É um argumento convincente, que Deus está pronto a perdoar o pecado, que ele dá graça aos homens para prepará-los para a sua misericórdia perdoadora. O arrependimento e a fé são plantas sagradas que não brotam da nossa terra, mas têm suas raízes no céu. "Deus dá o arrependimento para a vida." Atos 11. "A fé não é de nós mesmos, é dom de Deus." Ef. 2. Em nosso estado corrompido o pecado é natural ao homem, e tem inteiramente possuído todas as suas principais faculdades. "O pendor da carne é inimizade contra Deus", Rom 8. A vontade é rebelde, e fortemente inclinada a paixões sedutoras: as tentações são tão numerosas e deliciosas, que os pecadores se aventuram a ser infelizes para sempre, para desfrutar os prazeres do pecado, que morrem na degustação. É verdade, que tais são as inclinações invioláveis da natureza humana para a felicidade, que nenhum homem pode amar a morte sem disfarces, nem escolher a condenação por si mesmo; ainda o afeto ao pecado é tão soberano, que não irão abandoná-lo até a morte. A sabedoria de Deus nos diz: "aqueles que me odeiam amam a morte", Prov 9. Nosso Salvador reprovou os judeus com compaixão, "mas não quereis vir a mim para terdes vida." João 5. Esta é a causa de sua permanência em um estado de culpa para sempre.
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Agora tal é a misericórdia de Deus, que ele dá o seu Espírito, para ajudar os homens por sua iluminação, prevenção, contenção e graça, a abandonar seus pecados, para que possam ser salvos, e se eles melhoraram fielmente os graus mais baixos de graça (embora eles nada possam reivindicar por direito), ele teria de boa vontade lhes dado mais graça; mas eles são tão avessos a Deus, e inclinados fortemente para o mundo presente, que eles resistem por muito tempo aos movimentos da pura graça em seus corações, até que os ventos do Espírito expirem, e não mais reviva, de acordo com essa terrível ameaça: "o meu Espírito não mais lutará com o homem, pois ele é carnal.”, Gênesis 6.
3. Chego agora a perceber que Deus é abundante em perdão. Este Deus tem declarado em palavras tão plenas e expressivas, como pode satisfazer abundantemente os espíritos mais tenros e temerosos: "Buscai o SENHOR enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao SENHOR, que se compadecerá dele, e volte-se para o nosso Deus, porque é rico em perdoar. Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos.” (Is 55.6-9).
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O apóstolo diz: "Deus é rico em misericórdia”, Ef 2. Não é dito que ele é rico em substância, ainda que a terra seja do Senhor, e toda a sua plenitude. Ele é rico em suas próprias perfeições, e não em coisas externas. Não é dito, que é rico em poder, embora ele seja todo-poderoso, nem no juízo, mas na misericórdia; isso significa que de todas as perfeições divinas, nada brilha tão radiantemente quanto a sua misericórdia. Isso reflete um brilho em seus outros atributos. Sua bondade é a base da sua glória. Ele perdoou dez mil talentos ao servo que estava insolvente, e seu tesouro é interminável.
Vou considerar agora a extensão de sua misericórdia perdoadora, e a inteireza da mesma.
1. A sua extensão, no que diz respeito ao número e à qualidade dos pecados que são perdoados.
Primeiro, o número deles. Davi, depois de uma consideração atenta da pureza e da perfeição da lei de Deus, irrompe em uma grande ansiedade, "Quem pode entender os seus erros? Quem pode enumerar as muitas transgressões a esta regra estreita do nosso dever?" Em muitas coisas que tudo ofendem. Somos obrigados perpetuamente a obedecer e a glorificar a Deus, mas em cada ação, mesmo em nossos deveres religiosos, há muitos defeitos e impurezas que requerem o perdão. Quantos enxames de pensamentos fúteis e inúteis, de avarezas carnais; pensamentos orgulhosos, invejosos e vingativos e desejos alojados nos corações dos homens? Quantas palavras vãs fluem de seus lábios? Quantos milhares de ações pecaminosas
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continuam com eles? Quando a consciência esclarecida reflete seriamente sobre os nossos pecados de omissão e comissão, quão surpreendente é seu grande número? O que um amontoado montanhoso parece? Eles chegam tão baixo como o inferno, e sobem tão alto quanto o céu. Iria cansar a mão de um anjo anotar os perdões que Deus concede a um crente penitente.
Em segundo lugar, o perdão divino se estende para os pecados de todos os tipos e graus, habituais e reais. Embora nenhum pecado seja absolutamente pequeno, sendo cometido contra a majestade de Deus, no entanto, comparativamente, com relação à sua qualidade e às circunstâncias, há uma diferença evidente entre eles. Alguns são de uma tintura mais fraca, alguns são de um teor mais profundo; alguns ferem ligeiramente a consciência. Pecados de ignorância e fraqueza, pecados de paixões, pecados contra a luz, que nada mais são do que a natureza do pecado, pecados contra misericórdias, que na linguagem do apóstolo, são um "desprezo da bondade de Deus", pecados contra os votos solenes, pecados cometidos habitual e presunçosamente, como se Deus fosse ignorante ou indiferente e alheio, ou impotente para punir os infratores; esses carregam uma maior culpa, e expõem a uma punição mais terrível. Agora, um perdão gracioso é oferecido no evangelho a todos os pecadores, seja qual for a qualidade e as circunstâncias de seus pecados. A promessa é abrangente para todos os tipos de
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pecados, quão variados e poderosos possam ser, seja de quem for. Além disso, para nos encorajar a nos arrependermos e crermos, Deus promete perdão aos pecados das mais ferozes provocações. Judá tinha violado a aliança com Deus por suas idolatrias impuras, mas ele se oferece para recebê-los. "Tu te prostituíste com muitos amantes, mas ainda assim, torna para mim, diz o Senhor."
Recaídas em pecados rebeldes argumentam uma forte propensão para eles, e extremamente agravam a sua culpa, mas Deus promete perdão para eles: “Convertei-vos filhos rebeldes, eu curarei as vossas rebeliões." Há casos eminentes da misericórdia redentora de Deus gravados na Escritura. O apóstolo tendo enumerado muitos tipos de pecadores culpados de crimes enormes, idólatras, adúlteros, diz aos Coríntios, “e tais fostes alguns de vós, mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus." Há uma espécie de pecadores excluídos da promessa geral de misericórdia, aqueles que pecam contra o Espírito Santo. O motivo da exceção não é, que o Espírito Santo é superior em dignidade ao Pai e ao Filho, porque todos eles são coeternos e coiguais, mas em razão de suas operações, ou seja, a revelação da verdade e da graça de Deus no evangelho. Agora, a malícia obstinada e contradizente da verdade do evangelho brilhando nas mentes dos homens, e o desprezo perverso da graça do evangelho, é imperdoável para a infinita misericórdia. Aqueles que são
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culpados do pecado, têm se transformado na imagem do diabo, e a salvação não pode alcançá-los. Mas nenhum outro é excluído do arrependimento e do perdão.
2. Vejamos agora a extensão, a medida, a inteireza do perdão oferecido aos pecadores que revela a grande misericórdia de Deus.
1. O perdão é tão completo quanto livre, de acordo com a sua excelente bondade: a imputação da culpa cessa, e a obrigação de punição foi abolida. Nós temos evidências claras disso na Escritura. Deus assegura àqueles que se arrependem e se convertem, "ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve: ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã." O perdão é mais do que um adiamento ou suspensão do julgamento, é uma liberdade perfeita: um crente arrependido é tão livre da acusação da lei como um anjo inocente. "Não há condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito." Rom 8. Nossa limpeza das impurezas do pecado é imperfeita, portanto, devemos estar sempre nos purificando, até que cheguemos à pureza absoluta, mas o nosso perdão é perfeito. É irrevogável, temos a certeza, que, tanto quanto o leste dista do oeste, Deus remove as nossas transgressões de nós. Tão logo esses pontos distantes possam ser unidos, assim a culpa pode ser fixada sobre aqueles a quem Deus perdoou. O profeta declara que "Deus vai subjugar nossas iniquidades, e lançá-las no fundo do mar, Sl 103, de onde eles nunca podem
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subir. Deus promete: “Eu perdoarei as suas iniquidades, e delas não mais me lembrarei." Miq 7. O perdão é completo e final. É a miséria dos ímpios "eles já estão condenados" Jer 31.34. Vivem por um indulto e suspensão de julgamento: é a segurança abençoada dos crentes, que eles "não cairão sob condenação. Há uma tal inconstância na natureza dos homens, que muitas vezes se arrependem e revogam os favores e privilégios que eles têm concedido, eles gostam hoje, e rejeitam amanhã as mesmas pessoas, mas o bendito Deus não está sujeito a alterações ou contingências. Seu amor, seu propósito, sua promessa ao seu povo, são inalteráveis.
2. A inteireza deste grande benefício é evidente em que Deus restaura o seu amor e favor para todos os que são perdoados. Príncipes, algumas vezes perdoam ofensores, mas nunca mais os recebem em seu favor. Absalão foi chamado do banimento, mas por dois anos não foi admitido para ver o rosto do rei. Mas Deus magnifica e manifesta o seu amor por aqueles a quem Ele perdoa. Ele não os distingue dos anjos que sempre lhe obedecem. Ele perdoa os nossos pecados inteiramente como se eles nunca tivessem sido cometidos, e se reconcilia conosco, como se ele nunca tivesse sido ofendido. Temos a descoberta mais clara disto na parábola do filho pródigo. Poderia ter sido esperado, que seu pai devesse tê-lo repreendido por seu obstinado abandono de sua casa, por ter desperdiçado sua parte na herança na perversidade e na luxúria, e que por um
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constrangimento amargo fosse obrigado a retornar; não, ele carinhosamente o abraça e cancela toda a dívida de seus crimes passados com um beijo mais carinhoso; e enquanto o pobre penitente presumia apenas que seria recebido como um servo, ele foi restaurado da maneira mais carinhosa à dignidade e à relação de um filho, a alegria universal foi difundida por toda a família pelo o seu retorno. Se o nosso Salvador não tivesse feito essa relação com todas as suas circunstâncias cativantes, os nossos corações estritamente impuros nunca presumiriam e nos prometeriam esse amor compassivo de Deus pelos pecadores arrependidos. Mas quem imita o filho pródigo em seu retorno, deverá enfrentar a realidade para superar a ilustração. Vou acrescentar alguns exemplos deste amor de Deus para aqueles que se arrependem. Maria Madalena havia sido culpada de pecados, mas nosso Salvador graciosamente recebeu as manifestações de sua dor e de amor, para o espanto de Simão: "Ela lavou os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os cabelos da sua cabeça, e os beijou", e ele, depois de sua ressurreição apareceu pela primeira vez a ela. Isto é recordado pelo evangelista, com uma infinita ênfase de seu amor, que "apareceu primeiramente a Maria Madalena, da qual tinha expulsado sete demônios." Pedro, em cuja negação de Cristo, havia uma mistura de infidelidade, ingratidão e impiedade, prometeu que iria morrer com ele ou para ele, e ainda que não sendo questionado com terror por um
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magistrado armado, nem surpreendido por um examinador sutil, mas sendo perguntado por uma empregada negou a Cristo, mas ele foi restaurado para a honra de seu ofício, e o carinho de seu mestre. É muito observável, que quando ele apareceu a Maria Madalena, ele lhe pediu que anunciasse a seus discípulos e a Pedro a sua ressurreição, ele particularmente menciona Pedro, para levantar o seu espírito abatido, com esta nova garantia do seu amor.
Este privilégio feliz pertence a todos os crentes arrependidos, porque quem Deus perdoa ele elege, e adota em sua família, e os torna herdeiros do céu. O primeiro feixe de misericórdia brilha no perdão de nossos pecados, o que é uma garantia infalível de nossa libertação do castigo do pecado no inferno, e da nossa obtenção das alegrias do céu. Nosso Salvador por seus sofrimentos meritórios e voluntários pagou nosso resgate da morte eterna, e comprou para nós o direito à vida eterna. "A quem Deus justifica, ele glorifica”. O efeito formal da justificação é a nossa restauração no favor perdido de Deus, e dessa fonte fluem todos benefícios abençoados. Deus declara a respeito de seu povo: "Eles serão para mim particular tesouro, naquele dia que prepararei, diz o SENHOR dos Exércitos; poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve.”, Mal 3.17.

Edition Notes

Published in
Rio de Janeiro, Brasil

The Physical Object

Format
Paperback
Pagination
viii, 511p.
Number of pages
511
Dimensions
21 x 14,8 x 2 centimeters
Weight
611 grams

ID Numbers

Open Library
OL25938312M

Work Description

Religião cristã

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